Estratégias da China no estrangeiro

A China está a empregar duas estratégias, para implantar o seu poder económico: por um lado, fortalece os laços económicos com os BRICS e, por outro lado, posiciona-se em novos mercados asiáticos, africanos e europeus através da iniciativa das novas rotas da seda.

07 de outubro 2023 - 17:42
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Xi Jinping na cimeira dos BRICS - 2023

A brochura intitulada China’s Overseas Expansion: An Introduction to its One Belt, One Road and BRICS Strategies («A expansão da China no estrangeiro: Uma introdução às estratégias das “novas rotas da seda” e dos BRICS») foi publicada em 2017 por um grupo de organizações não-governamentais sediadas principalmente em Hong Kong. Esta brochura pretende explicar as estratégias chinesas no âmbito dos BRICS e no quadro da iniciativa das novas rotas da seda (“One Belt, One Road” ou “Belt and Road Initiative”).

A brochura foi publicada em 2017 por um grupo de organizações não-governamentais sediadas principalmente baseadas em Hong Kong e reeditada em 2018, apresentando discursos proferidos por Robin Lee, Mung Siu-tat, Au Loong-yu, Chaminda Perrera e Fahmi Panimbang no Fórum dos Povos sobre a iniciativa das novas rotas da seda (NRS) e dos BRICS.

A principal autora da obra, Robin Lee, parte da constatação de que a China é agora uma força maior do capitalismo global. Desde o anúncio da política de abertura e de reforma em 1979 (ou seja, a introdução de reformas que abriu a via para a economia de mercado), a China tem registado de facto um crescimento exponencial, atraindo numerosos investimentos directos estrangeiros (IDE) através das suas zonas económicas especiais (como Shenzhen) e, posteriormente beneficiando da sua integração na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001.

O governo chinês procura agora implantar o seu poder económico, incentivando as empresas chinesas a investir no estrangeiro

O Partido Comunista Chinês (PCC), por outro lado, reviu as suas prioridades: se outrora a atração de IDE para a China era o objectivo principal, o governo procura agora implantar o poder económico chinês, incentivando as empresas chinesas a investir no estrangeiro. Para fazer isso, a China está a empregar duas estratégias, por um lado, fortalecendo os seus laços económicos com os BRICS e, por outro lado, posicionando-se em novos mercados asiáticos, africanos e europeus através da ambiciosa iniciativa das novas rotas da seda.

BRICS, um primeiro benefício para a China

Os BRICS são países muito diferentes, mas unidos pelo seu rápido crescimento e pela sua preponderância nos assuntos regionais. Desde 2009, os seus governos têm-se reunido regularmente com o objectivo declarado de “servir os interesses comuns dos mercados emergentes, mas também de construir um mundo harmonioso, pacífico e próspero”. A sua cooperação resultou na criação do Novo Banco de Desenvolvimento e num fundo de reserva em moeda estrangeira, o Contingent Reserve Arrangement. Mas será que os BRICS representam uma alternativa viável ao neoliberalismo e ao imperialismo ocidental? De forma alguma, segundo Robin Lee.

As instituições financeiras desenvolvidas pelos BRICS têm ligações substanciais com o FMI e o Banco Mundial

As instituições financeiras desenvolvidas pelos BRICS têm ligações substanciais com o FMI e o Banco Mundial. Um exemplo: o fundo de reserva impõe aos países membros que tenham atingido 30% das suas quotas de endividamentos autorizados para que apresentem um pedido de empréstimo condicionado ao ajustamento estrutural do FMI. Através da criação de novas instituições financeiras, os BRICS na realidade apenas procuram explorar em seu próprio benefício o funcionamento neoliberal estabelecido pelas potências ocidentais. Esta análise é inteiramente consistente com a rapacidade que os BRICS demonstram no continente africano, em particular na China.

Os BRICS representam uma alternativa viável ao neoliberalismo e ao imperialismo ocidental? De forma alguma

A China é o principal contribuinte financeiro dos BRICS e também o que mais ganhará com a sua cooperação. Entre 2008 e 2013, a sua taxa de crescimento foi duas vezes superior à dos outros membros. Pequim participa em mais de 85% do comércio intra-BRICS. É um dos três principais destinos de exportação de cada um dos outros membros. Não é por acaso que a sede do Novo Banco de Desenvolvimento se situa em Xangai e não em Nova Delhi.

As estratégias económicas e comerciais da China no âmbito dos BRICS são prejudiciais ao ambiente e minam os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras. Por exemplo, Pequim procura estabelecer uma zona de comércio livre entre os BRICS, o que levará a uma concorrência prejudicial para os trabalhadores e trabalhadoras, especialmente nas economias mais fracas do grupo. A apropriação dos recursos naturais africanos pelas empresas chinesas é a manifestação de uma nova forma de imperialismo chinês. Esta apropriação também se insere no âmbito da iniciativa novas rotas da seda, desenvolvida pelo governo chinês desde 2013.

As novas rotas da seda manifestam o advento de um novo imperialismo Chinês

Lançada em 2013 pelo Presidente Xi Jinping, a iniciativa novas rotas da seda (NRS) é um projeto titânico para restaurar e expandir a antiga rota da seda, que se desenvolveu principalmente durante a dinastia Han (221 AC - 220 DC). Ela é composta em primeiro lugar por um “cinturão” terrestre, a rota da seda económica terrestre (“Cinturão Económico da Rota da Seda”, «Silk Road Economic Belt», SREB), que cobrirá a Birmânia, a Ásia Central e a Ásia Ocidental, chegando à Europa através da Rússia. A sua segunda componente é uma “estrada” marítima, a rota marítima da seda do século XXI («21st Century Maritime Silk Road», MSR), que se estenderá do Sudeste Asiático até à Europa, passando por Índia, Sri Lanka e Quénia. A iniciativa tem como objetivo oficial facilitar a integração financeira e o comércio entre as partes interessadas e afirma que se opõe a “todas as formas de protecionismo”. Em termos concretos, esta integração financeira e comercial é conseguida através da construção de portos de águas profundas, linhas ferroviárias, estradas e auto-estradas, redes eléctricas, mas também oleodutos, gasodutos, centrais nucleares e a carvão, feitas graças a investimentos e empréstimos massivos chineses. Em maio de 2017, 68 países e organizações internacionais tinham assinado acordos de cooperação com a China no âmbito da NRS.

Para financiar o número impressionante de projectos abrangidos pela nova rota da seda, Pequim teve de mobilizar as suas reservas financeiras a um nível sem precedentes. Em 2013, o Banco de Desenvolvimento da China já previa reservar mais de 890 mil milhões de dólares americanos para o desenvolvimento de mais de 900 projetos em todo o mundo. A NRS também beneficiou de 50 mil milhões de dólares de um fundo ad hoc, o Fundo de desenvolvimento da rota da seda, bem como de 100 mil milhões de dólares do Banco asiático de investimento nas infraestruturas.

A iniciativa afirmará o papel do yuan como moeda de estatura internacional e permitirá à China posicionar-se como uma potência regional e mundial

A China pode beneficiar enormemente deste ambicioso plano. A iniciativa afirmará o papel do yuan como moeda de estatura internacional e permitirá à China posicionar-se como uma potência regional e mundial, o que poderá levá-la a desafiar os Estados Unidos pelo papel de potência líder na Ásia (ou mesmo fora dela). Os acordos abrirão novos mercados para a China e melhorarão o potencial de investimento das suas empresas. Isto permitir-lhe-á resolver os problemas de sobreprodução industrial que enfrentou recentemente, assim como enviar alguns dos seus muitos trabalhadores para o estrangeiro. As novas rotas da seda são, portanto, vistas como uma bênção por certas regiões pobres da China, que integraram a iniciativa na sua estratégia de desenvolvimento, mas Robin Lee prevê muitos efeitos nocivos como resultado desta iniciativa.

Consequências económicas e ambientais das novas rotas da seda

Os projetos das NRS irão, de facto, reforçar um sistema neoliberal cujas consequências catastróficas para o ambiente, as economias locais e os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras já são conhecidas. Um grande número de investimentos vão contribuir para o esgotamento dos recursos naturais e a destruição da biodiversidade local, agravando ao mesmo tempo a poluição do ar, da terra e da água. Como exemplo, podemos citar os investimentos chineses na criação de novas centrais eléctricas a carvão no Paquistão. Alguns projectos são acompanhados pela expulsão forçada de comunidades locais, como é o caso do Camboja, onde a China controla um quarto das terras agrícolas.

Também se constataram numerosas violações dos direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras: trabalho informal ou sem contrato, horas de trabalho excessivas, salários abaixo do mínimo local, violações gerais dos códigos laborais locais e e do código laboral chinês, violação das convenções laborais da OIT. Muitas vezes é difícil para os trabalhadores e trabalhadoras lutar colectivamente para fazer valer os seus direitos. Quando surgem conflitos, as empresas chinesas não hesitam em pagar aos sindicalistas ou à polícia para escapar às sanções.

O endividamento dos países parceiros é uma das consequências mais dramáticas da iniciativa das novas rotas da seda

O endividamento dos países parceiros é uma das consequências mais dramáticas da iniciativa das novas rotas da seda. Alguns dos empréstimos oferecidos por Pequim criam uma dívida insustentável para países mais pequenos ou mais pobres, tanto porque as somas de dinheiro mobilizadas são enormes como porque alguns projetos não são adequados às necessidades económicas locais. Na verdade, os bancos chineses por vezes emprestam sem ter em conta a viabilidade dos projetos. Como exemplo, a brochura de Robin Lee recorda que, em 2017, os bancos chineses estão expostos a um volume muito elevado de empréstimos relacionados com investimentos falidos. Desde 1997, apenas 60% dos projetos que beneficiaram de investimentos de capitais chineses foram executados conforme planeado. Os empréstimos são direcionados para megaprojetos cuja rentabilidade não está comprovada. Estes elefantes brancos, como o Aeroporto de Hambantota, no Sri Lanka, que foi renomeado como "o aeroporto mais vazio do mundo", destinam-se, na verdade, a absorver o excesso de capacidade de produção chinesa e a deitar as mãos a ativos estrangeiros. Assim, em 2017, o governo do Sri Lanka, incapaz de fazer face à sua dívida, teve de ceder à China 70% dos direitos de exploração do porto de águas profundas de Hambantota.

em 2017, o governo do Sri Lanka, incapaz de fazer face à sua dívida, teve de ceder à China 70% dos direitos de exploração do porto de águas profundas de Hambantota

Estas concessões são feitas sem consulta democrática, sendo as condições dos empréstimos completamente opacas. As empresas chinesas por vezes conspiram com governos parceiros, sendo-lhes adjudicados projectos de construção sem as licenças necessárias. Esta situação levou a protestos em alguns países, por vezes violentamente reprimidos pelas autoridades. Os governos dos países parceiros apoiam frequentemente a China contra as suas próprias populações, como é o caso do Paquistão. Para facilitar a construção de centrais eléctricas a carvão, o governo isentou as centrais energéticas com o rótulo NRS de uma restrição que data de 2016 à utilização de carvão importado.

Que impacto poderão as novas rotas da seda ter na população chinesa?

As NRS visam fornecer soluções para certas questões internas, como o problema da sobreprodução chinesa, e, segundo o discurso das autoridades, deverão conduzir a transferências de fundos para regiões pobres da China, ajudando assim o seu desenvolvimento e favorecendo uma certa liberalização económica. Xinjiang, uma região desértica do noroeste da China, que tem dificuldades económicas e conflitos étnicos, tornar-se-ia um “centro” financeiro. Nas regiões pobres do centro da China, como Ningxia, existem planos para mobilizar terras aráveis para projetos de exportação no âmbito das NRS. Ao mesmo tempo, segundo as autoridades, as regiões mais ricas do Leste da China poderiam tirar partido da abertura de novos mercados para desenvolver os seus setores terciário e financeiro e especializar-se em tecnologias mais avançadas.

É mais do que provável que as novas rotas da seda sejam uma nova iniciativa que dá prioridade aos lucros das elites e fortalece o domínio do Partido Comunista Chinês

No entanto, a iniciativa das novas rotas da seda terá certamente também consequências negativas na China. Para que o deserto de Xinjiang se torne a “janela para o Ocidente” de Pequim, todos os projetos iniciados serão conduzidos pelo governo central, sem ter em conta a minoria uigure da região, que já enfrenta discriminações muito graves. Como exemplo, a brochura cita o investigador Michael Clarke, que explica que “a intensificação da oposição uigure e tibetana ao governo central levou Pequim a acelerar o desenvolvimento e a modernização económica destas regiões com o objectivo de completar a sua integração no Estado chinês moderno”. Num sentido mais amplo, as NRS só podem contribuir para a intensificação das tensões sociais, porque a iniciativa pressupõe um rápido desenvolvimento em desrespeito pelo saneamento do ar, da água e da terra exigido pelas populações chinesas. As NRS também irão agravar as desigualdades económicas, já extremas na China, cujo coeficiente GINI foi avaliado em 0,73 em 2012, o que significa que o 1% mais rico já detinha um terço da riqueza total. Robin Lee conclui que "à escala nacional, é mais do que provável que as NRS sejam uma nova iniciativa que dá prioridade aos lucros das elites e ao fortalecimento do domínio do Partido Comunista Chinês, em detrimento de melhorias na vida quotidiana dos cidadãos comuns" e da proteção ambiental.

Conclusão

Este trabalho analisa as estratégias expansionistas chinesas levadas a cabo através dos BRICS e das NRS, criticando a ideia de que o desenvolvimento do poder e da influência chinesas poderá apresentar uma alternativa benéfica ao mundo neoliberal para as pessoas comuns. Encoraja a organização de uma resistência vigorosa em resposta às políticas dos BRICS e à implementação das NRS, caso contrário, os futuros investimentos da China prejudicarão a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.

Artigo de Alice Jetin Duceux, publicado em cadtm.org/Les-strategies-de-la-Chine-a-l-etranger, a 22 de junho de 2018. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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