1 - Chovem as perguntas sobre a reativação e alargamento dos chamados BRICS.
As esquerdas dos vários continentes tentam definir este sujeito pouco identificado. Juntam-se nesta plataforma internacional, conhecida pelas iniciais dos países que a compõem, repúblicas e monarquias, democracias e ditaduras, regimes teocráticos, regimes laicos, estados com pluralismo partidário e estados de partido único.
Como logo se intui, não foi a proximidade de sistemas de governo ou de modelo social que os aproximou. Não foi nenhuma ideologia particular nem qualquer programa político a aplicar em seus países que motivou esta retoma. Neste grupo coexistem aliados e inimigos dos EUA inimigos entre si, países centristas no conflito geopolítico declarado pela NATO contra a China.
Os BRICS não são ainda formalmente uma organização internacional, funcionam como um fórum desde 2006, mas detêm um Banco de Desenvolvimento. Ao Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, associam-se agora Argentina, Egito, Etiópia, Irão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
Ou seja, estes Estados valem 46% da população mundial e reconhecidos ativos de tecnologia avançada, petróleo, minérios estratégicos, alimentos, uma rede comercial global e várias potências nucleares e espaciais. Historicamente, o grupo formou-se em contraponto às receitas do FMI, por iniciativa da Rússia. Hoje, a motivação subiu de tom e questiona a hegemonia do dólar no sistema financeiro mundial, embora não tenha introduzido nenhum plano B, para se lhe opor. Parece ser apenas esta a motivação imediata do "pronunciamento" destes Estados. Sublinho este "parece", pois existiram outras motivações.
2 - É antiga a contestação ao dólar como moeda-padrão internacional, cujo desligamento de reservas de ouro foi unilateralmente decidido pelo Presidente Nixon. É um facto incontestado que os EUA manipulam o câmbio do dólar e enriquecem por essa via, prejudicando todos os outros países. Na atualidade, outra questão se juntou aqui: será que a desglobalização "política", que a guerra de agressão russa à Ucrânia desenvolveu, encontra na iniciativa dos BRICS o embrião de um sistema de pagamentos alternativo nas trocas internacionais?
Estes países não têm condições políticas nem financeiras para uma moeda escritural, mesmo que houvesse convergência no apuramento de uma unidade de conta, a concorrer com o dólar
A situação não aponta para esse cenário. O banco é incipiente e destina-se a projetos de desenvolvimento. Estes países não têm condições políticas nem financeiras para uma moeda escritural, mesmo que houvesse convergência no apuramento de uma unidade de conta, a concorrer com o dólar. Não têm condições políticas, já que isso implica um grau de integração política muito exigente entre países de natureza e histórias muito diferentes. Basta ver o terreno acidentado do euro. Não há condições financeiras porque isso constituiria um risco enorme para o Yuan, chamado a compensar dificuldades externas e a descompensar a situação interna. É duvidoso que se constitua deste modo um sistema financeiro alternativo mas a prescindibilidade do dólar nas trocas comerciais ou transações financeiras intra-grupo é uma perspetiva gradualista, simpática aos BRICS.
Do ponto de vista da esquerda brasileira, mas também de alguma direita, trata-se de contrariar o imperialismo americano, realizar a contra-hegemonia com o principal parceiro do Brasil e da Argentina, a China. Atrair o Sul Global e os aliados do Norte para uma recomposição dos poderes no mundo. A visão da esquerda brasileira não é necessariamente coincidente, é até contraditória, com a estratégia chinesa da "Rota da Seda" onde o governo de Beijing se quer afirmar a si própria como potência, ou com o governo de Modi que quer um novo equilíbrio leste/oeste.
3 - Este grupo de países não questiona o sistema capitalista, sequer o imperialismo. A China quer mesmo assumir a vanguarda do capitalismo. Seria uma ousadia intelectual pretender que ali se esconderia o prenúncio de um "campo" antiimperialista porque a China se reclama retoricamente do socialismo. Nenhuma ingenuidade pode justificar não perceber o peso económico e social determinante da burguesia chinesa, dentro e fora do partido comunista.
Este grupo de países não questiona o sistema capitalista, sequer o imperialismo
Tampouco os BRICS podem ser apresentados como um "bloco" progressista, com uma maioria de ditaduras no seu seio e esmagamento de direitos humanos em quase todos, e feroz opressão das mulheres em alguns destes países. Pretender que o multilateralismo se desenvolverá sem referências democráticas mínimas não é base segura para defender a Carta das Nações e as conquistas de civilização sobre a derrota do fascismo na 2ª guerra mundial.
Tampouco os BRICS podem ser apresentados como um "bloco" progressista, com uma maioria de ditaduras no seu seio e esmagamento de direitos humanos em quase todos, e feroz opressão das mulheres em alguns destes países
Houve, igualmente, quem tentasse aparentar os BRICS ao movimento dos "Não-alinhados" dos anos 60 e 70 do século passado. Foram países não alinhados nem com os EUA nem com a URSS e defendiam os princípios da Conferência de Bandung, Princípios de não-agressão e solução política dos conflitos, direito de legítima defesa, dissolução dos blocos político-militares, repúdio pelo neo-colonialismo e, em primeiro lugar, proteção dos Direitos Fundamentais. Essa fotografia não bate bem com os BRICS.
4 - A aceleração do processo BRICS deve muito à imposição das sanções económicas à Rússia, o que já vinha acontecendo com Cuba e Venezuela, sanções em larga escala e de prejuízo vital para as economias afetadas. Vários de estes países podem até ter condenado na ONU a agressão russa da Ucrânia mas não aceitam o monopólio americano das sanções. O que a Casa Branca decide é obedecido internacionalmente por governos e empresas financeiras ou comerciais, começando pelo saque de reservas e depois por bloqueio de transações, com retaliações a quem fure o bloqueio. E nas costas da Rússia veem as suas próprias debilidades se forem ameaçados pelos EUA.
A aceleração do processo BRICS deve muito à imposição das sanções económicas à Rússia
É claro que a eleição de Lula no Brasil deu outra garantia a este movimento para não ter apenas a chancela chinesa para a dinamização do processo.
Acompanhei a campanha de Lula e participei em alguns seminários de política externa em São Paulo e toda esta visão era pensada, era programática e muito desenvolvida por Celso Amorim, agora assessor especial do presidente para a diplomacia externa.
E nesta matéria das sanções, para além de terem razão sobre o monopólio da moeda-padrão, têm também razão quanto a este iníquo instrumento de guerra suja, dirigida pelos EUA.
5 - Em conclusão, a vocação financeira dos BRICS no sistema internacional parece limitada. O seu papel reúne contestação justa a regras impostas pelos EUA na globalização. Não têm proposta política para articular nada que se assemelhe a um movimento democrático dos povos. Não são, contudo, um mero biombo para a China, como acusa Washington.
a vocação financeira dos BRICS no sistema internacional parece limitada. O seu papel reúne contestação justa a regras impostas pelos EUA na globalização
Objetivamente, este "pronunciamento" dos BRICS foi uma resposta à Cimeira da NATO de Madrid deste ano que definiu a China como inimigo principal da organização e a Rússia como inimigo secundário. Objetivamente, foi, sem dúvida, uma resposta política, mesmo que formalmente tal não conste dos documentos da reunião dos BRICS. E essa confrontação é um aviso aos falcões do Pentágono.
A agressão da Rússia à Ucrânia e a guerra criminosa que aí conduz, imitando as invasões americanas, não pode servir de argumento para ameaçar a larga maioria dos países do mundo que não se reveem no domínio do imperialismo americano.
Artigo de Luís Fazenda