A expansão dos BRICS

Neste artigo, Ana Garcia considera que se pode analisar os BRICS a partir de pelo menos três dimensões: pela “visão de cima”, eles procuram acumular capacidades contra as potências tradicionais; na perspetiva intra-bloco, as relações comerciais assentam na tradicional divisão internacional do trabalho; e na relação com outros países em desenvolvimento, influenciando e acumulando poder económico.

07 de outubro 2023 - 17:44
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Cimeira dos Brics na África do Sul

Atualmente, o grupo BRICS – originalmente Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – atravessa um momento político notável. Na recente cimeira realizada na África do Sul, o grupo formalizou o convite a seis novos membros: Argentina, Arábia Saudita, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irão. Isto consolida o carácter geopolítico dos BRICS, uma vez que incluem, por um lado, um aliado histórico dos Estados Unidos no Médio Oriente, a Arábia Saudita, e, por outro, o Irão, que sofre sanções dos EUA. A China mediou recentemente a retomada das relações diplomáticas entre ambos.

Os BRICS constituíram-se como uma plataforma política e económica desde o final da década de 2000. A sua ascensão reforçou o imaginário profundamente enraizado de “modernização” e “desenvolvimento” no Sul Global, dando origem ao optimismo sobre a capacidade destes países de se tornarem numa alternativa à hegemonia ocidental. Hoje, as tensões – e as expectativas – sobre o papel internacional dos BRICS cresceram na esfera geopolítica. De um ponto de vista histórico, é importante que a América Latina e a África apoiem a diversificação de parcerias económicas que possam contrariar a omnipresença dos Estados Unidos e da Europa.

Podemos analisar os BRICS a partir de pelo menos três dimensões

Podemos analisar os BRICS a partir de pelo menos três dimensões. A primeira é a “visão de cima”, quando analisamos o sistema internacional como um quadro formado por Estados-nação relativamente coesos e com um interesse nacional que procuram preservar ou aumentar o seu poder num ambiente de competição entre eles. Esta abordagem confunde-se com as análises geopolíticas dos BRICS.Nesta perspectiva, os BRICS procuram acumular capacidades económicas, políticas e militares contra as potências tradicionais, particularmente os Estados Unidos e a Europa.

A primeira é a “visão de cima”, nesta perspectiva, os BRICS procuram acumular capacidades económicas, políticas e militares contra as potências tradicionais, particularmente os Estados Unidos e a Europa

No seu início, no contexto da crise financeira de 2008, os BRICS procuraram atuar de forma coordenada nos fóruns multilaterais para pedir reformas nas instituições de governação económica e política global, especialmente no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, mas também (por parte do Brasil e da Índia) no Conselho de Segurança da ONU. Esta agenda reformista foi um ponto de tensão com as potências ocidentais, que têm tentado atrasar ou mesmo impedir tais reformas nas instituições criadas no pós-guerra, despertando as expectativas de alguns segmentos sociais sobre o potencial “contra-hegemónico” dos BRICS.

As questões relativas à segurança internacional já ganhavam terreno em cada cimeira dos países BRICS. No entanto, as tensões geopolíticas ganharam protagonismo com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2017, quando este país centrou a sua atenção na contenção da expansão tecnológica da China. Em 2022, com a invasão russa da Ucrânia, o mundo voltou a ser representado como “Ocidente contra Leste”, e a aliança China-Rússia, no seio dos BRICS, deu definitivamente o tom geopolítico, e não económico, do grupo. Nesta perspectiva, o grupo está a tornar-se cada vez mais uma aliança geopolítica, em vez de económica.

Outra forma de ver os BRICS é numa perspectiva “horizontal” (ou lateral), ou seja, analisando as relações intrabloco, tentando identificar convergências e assimetrias entre os países. No domínio da saúde, por exemplo, os BRICS têm tentado aumentar a sua cooperação, estabelecendo grupos de trabalho e memorandos de entendimento. Ao mesmo tempo, a pandemia testou a cooperação, e os países BRICS não coordenaram uma posição conjunta sobre a flexibilização temporária das patentes de vacinas nos debates da Organização Mundial do Comércio.

Em trabalhos anteriores demonstrámos que existem assimetrias económicas entre os países, dada a preponderância económica da China. Nas relações comerciais, por exemplo, três dos países BRICS - Brasil, Rússia e África do Sul - mantêm excedentes comerciais com a China, mas as suas exportações consistem principalmente em produtos agrícolas e minerais primários: soja, minério de ferro, petróleo bruto e refinado, carvão, manganês e outros hidrocarbonetos. A Índia, único país dos BRICS com défice comercial com a China, também costuma exportar produtos primários para o seu parceiro asiático, bem como medicamentos. Entretanto, as exportações intra-BRICS da China consistem em peças telefónicas, máquinas de processamento de dados e semicondutores. Neste sentido, as relações comerciais intra-BRICS remontam à tradicional divisão internacional do trabalho, com a China no seu centro. Esta interdependência assimétrica tende a perpetuar a desindustrialização da economia brasileira a médio prazo, uma vez que o Brasil perdeu para a China o seu lugar como principal exportador de produtos manufaturados para outros países sul-americanos.

as relações comerciais intra-BRICS remontam à tradicional divisão internacional do trabalho, com a China no seu centro

Uma terceira forma de analisar os BRICS baseia-se nas suas relações com outros países e regiões em desenvolvimento de África, Ásia e América Latina. Seria uma visão “vertical” (ou de baixo para cima), uma vez que cada país BRICS atua como uma potência regional que procura influenciar e acumular poder económico com outros da “periferia”. Por vezes, a atuação das grandes empresas multinacionais dos BRICS na África e na América Latina reproduzem práticas de exploração de matérias-primas, trabalho e recursos naturais, gerando novos ciclos de acumulação e expropriação. Segundo especialistas, a influência económica da China em África levou a uma reformulação das relações intra-africanas: em vez das ideias do pan-africanismo, estas relações são agora retratadas através das lentes do “Sul Global” e da “Cooperação Sul-Sul”, sendo esta uma narrativa que traz os interesses chineses para o continente.

a atuação das grandes empresas multinacionais dos BRICS na África e na América Latina reproduzem práticas de exploração de matérias-primas, trabalho e recursos naturais, gerando novos ciclos de acumulação e expropriação

Por seu lado, o especialista Carmody (2015) argumenta que os capitais sul-africanos e chineses geralmente trabalham em conjunto para explorar os recursos naturais e dominar os mercados em África. Tanto em África como na América Latina, há quem analise as relações com a China como desiguais e dependentes do comércio e do investimento, que servem para garantir o fornecimento de matérias-primas do país asiático e promover a abertura de mercados para a venda de produtos e serviços de alta tecnologia por parte de empresas chinesas.

Para o Brasil, este é um momento de oportunidades e desafios. Um BRICS forte e expandido é bom para o Brasil como membro fundador do bloco e líder regional na América do Sul. Ao mesmo tempo, o grupo aumenta a sua forte base económica nos combustíveis fósseis, bem como acentua um maior défice democrático, o que representa um desafio para o Brasil na sua tentativa, por um lado, de ser protagonista nas negociações sobre o clima e impulsionar uma transição energética justa e, por outro, difundir ideias de democracia e direitos sociais, como pretende o atual governo Lula. O país deve manter a sua relativa autonomia face às tensões internacionais entre as potências e negociar melhores condições nas relações intra-BRICS. A transferência de tecnologia Sul-Sul e a cooperação efetiva em áreas como a saúde, o meio ambiente, a agricultura e a energia são fundamentais para alcançar melhores condições sociais de vida e de trabalho para a maioria das nossas populações.

Artigo de Ana Garcia, doutora em Relações Internacionais no Instituto de Relações Internacionais-PUC-Rio, publicado em Latinoamérica21 a 8 de setembro de 2023 Traduzido para português de Portugal por Carlos Santos para esquerda.net

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