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"Estamos a ser ocupados pelos nossos fraternos aliados"

A 10 de Setembro de 1968, o diário conservador francês Le Figaro publica uma carta de uma mulher residente em Praga e militante do Partido Comunista Checoslovaco, um documento que revela bem o medo e a perplexidade que tomou conta das ruas da cidade, causados pela intervenção militar soviética. Mas não deixa também de mostrar diversas formas originais de resistência que uniram o povo contra os ocupantes.  

"Meus queridos amigos,

Agora que estamos no quinto dia da ocupação, e porque sou uma eterna optimista, espero encontrar uma forma de vos fazer chegar esta carta:

Oiço a rádio durante todo o dia. É muito difícil, devido às cada vez mais frequentes interferências que afectam as emissoras. Oiço a rádio para saber o que se diz no mundo sobre a situação do nosso país. Bem, eles não dizem tudo, e, acima de tudo, não estão a transmitir um quadro verdadeiro. Eu imploro-vos que digam a verdade tal como ela é e tal como eu vos vou tentar descrever.

Na noite passada, de 20 para 21 de Agosto, fui acordada pelo barulho intenso de carros e aviões. Pensei para mim mesma: "valha-me Deus, devia haver alguns limites no processo de democratização, as pessoas não deviam ser acordadas às duas da manhã!" Decidi que ia queixar-me ao comité local de cidadãos, fechei a janela e voltei para a cama. Às seis da tarde de hoje, 21 de Agosto, a campaínha da porta começou a tocar "feita doida". Fui abri-la e eis que o meu amigo, Captain M., entra desesperado no apartamento a chorar e a gritar "Estamos a ser ocupados!". A sério que pensei que era uma piada. Corri até à janela e vi tanques, tanques soviéticos, a descer a rua um atrás do outro com as suas armas prontas a disparar. Os soldados sentados nos tanques apontavam as espingardas automáticas às nossas janelas. Vocés conhecem-me, e sabem que lutei na Resistência [contra os Nazis] numa célula de jovens comunistas. No dia 15 de Março de 1939, vi tanques Nazis a cruzar a nossa fronteira. Assim, embora eu seja certamente uma mulher educada, comecei logo a suar como um soldado, e comecei a dizer coisas sem sequer pensar.

Uma hora depois, eclodiu uma batalha junto ao edifício da rádio. Vocês sabem onde vivo. O meu filho acordou com o barulho, e, quando lhe disse que tínhamos sido invadidos, ele perguntou-me, "São os alemães ocidentais?". Tive que lhe dizer, "Não, são os nossos fraternos aliados!". Durante uma hora inteira deitámo-nos no chão do apartamento para nos protegermos do intenso tiroteio.

Fomos trabalhar às 9h da manhã. Em frente ao edifício da rádio conversávamos com jovens soldados russos que, rodeados por checos, olhavam para nós, sobressaltados. Quando saíamos, reatavam-se os combates. E assim foi durante quatro dias e cinco noites. Os soviéticos alvejaram pessoas sem razão aparente e em locais inesperados. Helicópteros sobrevoavam-nos as cabeças para monitorizar a situação no terreno. Das 10 da noite às 9 da manhã, não podemos sair de casa. Apesar das condições, continuamos a ir trabalhar. Vamos trabalhar e depois regressamos a casa.

As únicas armas que temos são panfletos e os slogans gravados nas paredes. Para confundir o invasor, já não existem números nas portas nem nomes das ruas. A ausência de mapas e de indicações nas estradas torna mais difícil a colocação avançada das tropas invasoras. Restam apenas duas sinaléticas: Moscovo - 1800 km e Berlim - 300km. Há uma excepcional unidade e fraternidade entre as pessoas. A estátua de St Wencelas está decorada pela bandeira checa como símbolo da resistência, e coberta de cartazes em Russo com os dizeres "O que vão contar à vossa mãe? Vão dizer-lhe que morreu gente aqui na Checoslováquia?"; "Tropas soviéticas, vão para casa"

Nunca houve uma invasão tão imprudente ao longo da história, nem uma resistência tão unida. Sob o pretexto de que vinham em nossa ajuda, cinco estados "fraternos" invadiram-nos, e provavelmente ainda não sabem porquê. Não encontraram políticos para formar um governo. Estes estrangeiros prenderam o nosso Primeiro Secretário, Alexander Dubček, o nosso Primeiro Ministro, Oldřich Černik, o nosso Presidente da Assembleia Nacional, Josef Smrkovský, bem como o Presidente da Frente Nacional. As tropas tomaram imediatamente controlo dos gabinetes e ministérios do Partido Comunista. O Presidente da nossa República, Ludvík Svoboda, é um prisioneiro no Castelo.

As nossas emissoras não são ilegais como apregoam as rádios estrangeiras. Há programas de rádio legais que, por causa deste ataque, foram obrigados a passar à clandestinidade. O Congresso Especial do nosso partido não é ilegal. São os nosso "irmãos" que forçam as autoridades legítimas (o Presidente, o Governo, o Parlamento e os jornais) a operarem clandestinamente. O mesmo fizeram com o Partido Comunista, num estado soberano e aliado. Mas continuamos a trabalhar! Os jornais vão saindo, mesmo com as papelarias e tipografias sob ocupação. A rádio funciona, temos onze emissores em onze regiões checas e escolavacas a transmitir. Como conseguem? Mais tarde revelaremos. Mas a rádio desempenha um papel crucial, dado que são os nosso únicos meios de contacto directo. A vida cultural pura e simplesmente parou, os teatros e cinemas estão fechados...(Maldição! Mais tiroteio em frente da nossa casa....e é meia-noite!). Numa questão de dias, Praga tornou-se uma cidade cercada!

Quando os soldados invasores nos fazem perguntas, não sabemos nada nem conhecemos ninguém. Depois de debater com eles, o que infelizmente tem-se mostrado inútil, decidimos ignorar os ocupantes. Havia um panfleto que dizia: "O circo soviético voltou a Praga...Não os alimentem, não lhes dêem água, não os provoquem."

Na noite de 25 para 26 de Agosto, houve mais tiroteios na nossa rua. Ontem dispararam contra uma ambulância, e mataram um motociclista. Tudo isto continua, e está a tornar-se cada vez pior.

Lembrem-se de nós, e ajudem-nos dizendo e transmitindo a verdade! As linhas de telefone e de distribuição do correio foram cortadas. Por favor tentem enviar-me um simples postal para ficar a saber que receberam a minha carta. Eles estão a revistar tudo, claro. Um dia este jogo terá que respeitar certas regras. Por agora, elas não existem, e por isso ninguém pode ter a certeza de nada."

Tradução de Miguel Reis

(...)

Neste dossier:

Primavera de Praga

Em 1968, a experiência checoslovaca de democratizar o socialismo, a Primavera de Praga, foi esmagada pela invasão dos tanques da União Soviética e de outros países do Pacto de Varsóvia. O Esquerda.net reuniu neste dossier artigos e reportagens a rememorar os acontecimentos e documentos da época, em particular um relato do português Flausino Torres, a carta de seis comunistas portugueses exilados criticando a invasão, e uma carta de Flausino Torres pedindo a suspensão de Álvaro Cunhal do PCP.

Cronologia

1968 foi um ano intenso: a guerra do Vietname mobilizava exércitos de combatentes e uma opinião pública quase planetária; em França, o mês de Maio assinalaria a criação de uma frente ampla de estudantes e operários na contestação da exploração capitalista, Israel e o Líbano envolveram-se num aceso conflito, Marcelo Caetano Caetano substituiu Salazar. E a Humanidade conseguiu colocar uma nave na órbita da lua. Em Agosto, os tanques soviéticos irrompiam em Praga para pôr fim aos ímpetos reformistas do Socialismo de Rosto Humano proposto por Alexander Dubcek. Fica uma breve cronologia dos acontecimentos de Praga.

Exposição: 40 anos depois, checos revivem repressão da Primavera de Praga

Uma selecção de histórias e objectos da colecção de Palach integram a exposição que o Museu Nacional da República Checa inaugurou esta semana. Num "flashback" da invasão, a exposição inclui um tanque de guerra T-54 soviético na frente de um imponente edifício, ainda equipadas com as metralhadoras de 1968.

Dubcek: Um homem de boa vontade isolado no reino dos cínicos

Uma retrospectiva da trajectória política de Alexander Dubcek feita pelo diário francês Le Monde na edição de 5 e 6 de Janeiro de 1969, onde o autor dá conta que «Dubcek era um herói, um "estratega genial" ou um novato e um fraco? As opiniões continuam muito diferentes.»

O buraco negro da memória

Nesta reportagem publicada há dez anos na revista Vida Mundial, Daniel Oliveira recorda os acontecimentos da Primavera de Praga e a "Revolução de Veludo", que ocorreu em 1989.

Só os tanques soviéticos pararam a participação popular

Em, 1968, a então Checoslováquia lançou o pânico no campo do "socialismo real". A reabilitação da crítica democrática e um verdadeiro levantamento pacífico viravam do avesso o bastião avançado do Pacto de Varsóvia na Europa. O Partido-Estado subvertia-se a partir de dentro. Uma revolução? Só os tanques soviéticos puderam parar a experiência de participação popular daqueles poucos meses.

"Estamos a ser ocupados pelos nossos fraternos aliados"

A 10 de Setembro de 1968, o diário conservador francês Le Figaro publica uma carta de uma mulher residente em Praga e militante do Partido Comunista Checoslovaco, um documento que revela bem o medo e a perplexidade que tomou conta das ruas da cidade, causados pela intervenção militar soviética. Mas não deixa também de mostrar diversas formas originais de resistência que uniram o povo contra os ocupantes. 

"Que Álvaro Cunhal seja suspenso"

No dia 5 de Novembro de 1968, Álvaro Cunhal reúne-se em Praga com os comunistas portugueses. A meio da reunião tensa, Cunhal expulsa da sala, aos gritos, o jovem Álvaro Bandarra, que procurava apresentar as razões para criticar a invasão soviética. Flausino Torres dirige-se então a Cunhal: " Jamais voltarei a apertar-te a mão! Mandaste sair aquele jovem. Pois tu é que deves abandonar o grupo, a direcção do grupo [o Partido]!(...)". Depois, escreveu uma carta ao Comité Central do PCP pedindo um inquérito e a suspensão de Cunhal do Partido.

Carta dos portugueses exilados na Checoslováquia sobre a invasão soviética

Seis comunistas portugueses exilados na Checoslováquia acompanharam com angústia a invasão soviética. "Sem esperar as decisões de dirigentes de qualquer escalão", relata Flausino Torres, "declarando-nos imediatamente pelo lado da justiça, cumprindo um dever à luz dos princípios." A carta seria seguida por uma segunda, datada de 16 de Setembro, que já reage à "decisão vergonhosa da Direcção do Partido Comunista Português".

"A invasão não teve o consentimento das autoridades constitucionais da Checoslváquia"

Esta declaração do presidente da República Socialista da Checoslováquia, general Ludvik Svoboda, aos microfones da rádio Praga no dia 21 de Agosto, deixa claro que não foram as autoridades constitucionais checoslovacas que fizeram qualquer pedido de intervenção militar, e chama os seus concidadãos a enfrentar o desafio e a manifestarem "a adesão ao socialismo, à liberdade e à democracia."

Declaração da agência TASS sobre a intervenção militar na Checoslováquia

No próprio dia 21 de Agosto, a agência Tass, a agência de notícias oficial da União Soviética, divulgou esta declaração, em que afirma que a invasão foi feita a pedido dos "militantes e homens de Estado da República Socialista Checoslovaca" e que o motivo foi a ameaça que as "forças contra-revolucionárias", em conluio "com as forças exteriores hostis ao socialismo" faziam pesar sobre o regime socialista checoslovaco.

Uma "Primavera" esmagada

A "Primavera de Praga" foi sufocada há 40 anos. As possibilidades de democratizar as "democracias populares" a partir do seu seio reduziram-se drasticamente; mas permanecerá o seu exemplo, como gesto colectivo de audácia e de combatividade, de entrega generosa, que encheu as ruas de Praga e de outras cidades e que levou muito mais longe a vontade de combater o estalinismo como forma pervertida e enquistada de um poder autoritário e burocrático.

"A Batalha de Praga", de Flausino Torres

A Primavera de Praga de 1968 foi testemunhada pelo historiador e militante comunista português Flausino Torres, pai do arqueólogo Cláudio Torres, que dava aulas na Universidade Karlova. Horrorizado, Flausino Torres assistiu aos tanques soviéticos esmagando a experiência de um "socialismo sem ditadura; socialismo com democracia, com minorias; socialismo sem censura à imprensa". É um extracto do relato que escreveu na altura, "A Batalha de Praga" que pode ser lido abaixo.