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Covid-19: um inimigo sem rosto

É de prever que os impactos da pandemia na saúde mental cresçam nos próximos meses, sobretudo com o aumento do desemprego e da crise económica. Por Ana Paula Freitas.
Foto de José Luis Navarro, Creative Commons.

Os medos cumprem uma função instintiva de manter o ser humano vivo. Se não tivéssemos essa qualidade estaríamos constantemente a colocar a nossa vida em risco. É um instinto básico de proteção. O medo é certamente tão antigo quanto a vida. Ele está profundamente enraizado nos seres vivos que sobreviveram à extinção e evoluíram ao longo de milhões de anos. Por isso as suas raízes são profundas no âmago do nosso ser psicológico, biológico e social. É um dos nossos sentimentos mais íntimos e mais mobilizadores. O medo impele à ação e procura um objeto de representação, um “monstro” para ser combatido, abatido ou, em última instância, mobilizar-nos para a fuga. O medo é a força propulsora do desenvolvimento humano, mesmo quando essa força significa violência e guerra. Ele promove uma leitura rápida sobre o mundo. Essa capacidade de leitura varia de individuo para individuo, de cultura para cultura, de época para época. Os medos de hoje não são os de ontem! Eles dependem e em larga medida do conhecimento ou da ignorância de cada um e determinam as estratégias de superação ou confronto. Por isso o medo é também a força que condiciona a liberdade e um meio de domínio e de subjugação.

Aprendemos o medo com a família e com os amigos – eles são os nossos “companheiros de tribo”. Como os outros animais, nós humanos aprendemos a ter medo por meio das nossas experiências de vida. Mas também aprendemos por meio da observação, testemunhando acontecimentos ocorridos com os “nossos”. E aprendemos com instruções, como o ensino e a educação formal. É deste modo que perpetuamos os modos de pensar, agir e de sentir próprios de uma cultura, de uma tribo ou de uma família. São estas características que nos permitem falar de “nós” e dos “outros” – os diferentes. Estabelecemos comparações com base nesse referencial. Elas permitem-nos avaliar rapidamente o nosso espaço de segurança.

O medo torna-se ilógico e muitas vezes “estúpido” quando, mais do que proteger, ele impõe privação e limita a participação e a qualidade de vida. Se a lógica é lenta e implica raciocínio, o medo é rápido e funciona por impulso. Em situações de perigo, temos que ser rápidos. Primeiro fugimos ou lutamos, depois pensamos… no que ainda houver para pensar! Por isso o medo pode tornar-nos violentos e incapazes de raciocinar com coerência. Ou, pelo contrário, tornar-nos incapazes de reagir ou de nos mobilizar para uma ação assertiva.

O medo do contágio do COVID19 traz agregado uma forte ansiedade que invade todo o espaço mental. A ansiedade é talvez a emoção que mais frequentemente é reportada como fator de sofrimento profundo neste período de pandemia.

Fatores individuais de stress

A situação atual é uma fonte de stresse para a população em geral, mas torna-se particularmente difícil para aqueles que viviam já em situações limites, com doenças mentais ou comportamentos aditivos; para os cuidadores informais com idosos a seu cargo; para os que têm empregos precários e/ou empregadores inflexíveis; quando existe uma sobrecarga de trabalho (doméstico ou profissional), quando é necessário ter dois empregos ou trabalhar mais mais horas para garantir a segurança económica; quando existem relações familiares abusivas e/ou de subjugação.

Em circunstâncias normais, lidar com a incerteza e a ambiguidade é já um grande desafio para a maioria de nós. A pandemia trouxe para a nossa vida diária o medo feito de desconhecimento, de incertezas e de impossibilidade de controle pessoal e, independentemente da sua preocupação e da sua vontade entender, essa realidade não mudará. Portanto, é inevitável que o nível de ansiedade suba rapidamente e se torne difícil a coerência e racionalidade na avaliação das circunstâncias pessoais.

O sentimento de congruência é um dos fatores que está mais fortemente ligado à saúde mental e mais aumenta a probabilidades individual de desenvolver uma perturbação mental. A congruência é a capacidade de compreender, controlar e dar sentido aos eventos stressantes. As pessoas com alto senso de congruência têm menos probabilidade de sofrer de uma depressão grave e têm de si mesmas uma maior perceção sobre os recursos que possuem para lidar com os desafios e as ambiguidades.

A coerência desempenha um papel importante na maneira como os indivíduos se apropriam das informações transmitidas pelos vários canais de informação sobre o coronavírus. As pessoas com fraco senso de coerência ou sentido critico, aderem mais a falsas crenças, o que alimenta a ansiedade, gera agressividade, tristeza e atitudes de hipervigilância pessoal.

Além da incongruência e de falsas crenças, fatores como sentir-se estigmatizado, ter baixo nível de confiança nas autoridades, perceber o COVID-19 como uma grande devastadora para si ou para a família, falta de sentido critico, baixa formação académica, o uso da internet/meios de comunicação com informação discrepante e o isolamento geográfico e físico, podem aumentar sintomas de ansiedade ou depressão. As vulnerabilidades acentuam-se e constata-se um aumento de sintomas ou recaídas de pessoas com perturbações mentais. Pessoas com ataques de pânico, sintomas obsessivo compulsivos, depressões, dificuldades de controlo dos impulsos, tendem a desorganizar-se e a acreditarem que não vão conseguir lidar com as suas vidas, com um impacto muito negativo na saúde mental.

Saúde mental no trabalho

A crise pandémica implicou uma reorganização profunda das rotinas do dia-a-dia. A conjugação do teletrabalho, a diminuição do trabalho e dos rendimentos ou a manutenção do local de trabalho habitual com o ensino em casa e o apoio aos filhos ou o cuidado a adultos mais velhos, a vivência de lutos inerentes à pandemia, gerir a distância física de familiares e amigos e a impossibilidade de realizar, fora de casa, as atividades habituais, a necessidade de apoiar familiares doentes, a dificuldade de recorrer ao suporte médico e/ou especializado, entre outras – são fatores de grande instabilidade e de grande stress.

O equilíbrio entre a vida pessoal e profissional nunca foi tão importante quanto agora. De acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), pelo menos 1 em cada 3 pessoas trabalha mais do que 40 horas semanais e quase metade considera insuficiente o tempo que têm disponível para se dedicar a si mesmos, à família e aos amigos e realizar atividades de lazer. Esta realidade é especialmente preocupante no caso das mulheres. E é particularmente relevante no momento que vivemos, pelos diversos constrangimentos e limitações que a pandemia coloca à realização das tarefas e rotinas diárias habituais.

Procurar soluções e estratégias flexíveis para os diferentes papéis e responsabilidades que assumimos, no quotidiano, é imperativo e inadiável. O equilíbrio entre a vida pessoal e profissional é condição indispensável para a saúde, para o bem-estar e para a qualidade de vida. É indispensável para trabalharmos de modo diligente e eficaz, para a produtividade e a competitividade das organizações, para a recuperação económica do país e para a coesão social. Isso implica também de uma evolução na cultura de trabalho e de liderança, com gestores mais humanistas e menos economicistas. Com gestores mais capaz de promover ambientes saudáveis de trabalho, conhecedores da necessidade de equilíbrio entre a saúde dos trabalhadores e a rentabilidade das empresas. O bem-estar e a saúde mental dependem de um conjunto de fatores socioeconómicos como o desemprego, a precariedade laboral, a perda de rendimento, a pobreza e a exclusão social. Sendo de prever que os impactos da pandemia na saúde mental cresçam nos próximos meses, sobretudo com o aumento do desemprego e da crise económica.

Minimizar o impacto da pandemia na saúde mental

As soluções para minimizar este impacto implicam alocar esforços e recursos suficientes para apoio à população, nomeadamente aos mais vulneráveis. Medidas como:

- Colocação de psicólogos nos centros de saúde ou em serviços de apoio à população. Tem ocorrido um aumento dos psicólogos afetos a serviços escolares e autárquicos, afetos a projetos. Situação que, pelos limites temporais impostos pelo decurso dos projetos (nas escolas são colocações anuais), não permite implementar uma intervenção primária de continuidade e com impacto significativo ao nível da saúde mental

- Melhorar os serviços de linha de frente e estabelecer uma rede de psicólogos “sentinela”, treinados em primeiros socorros psicológicos e disponível para intervenções imediatas em situação de crise. O SNS disponibiliza uma linha técnica de apoio psicológico que é uma importante medida preventiva. No entanto sem o acompanhamento “de retaguarda” dos psicólogos da saúde, a medida pode ficar aquém do desejado.

- Fortalecer o apoio da comunidade oferecendo, entre outras coisas, mais apoio e melhores condições aos trabalhadores essenciais, como médicos, enfermeiros, professores, técnicos e assistentes operacionais. Sensibilizar as empresas para que promovam ambientes de trabalho saudáveis e protetores da saúde mental dos trabalhadores.

- Reforçar serviços básicos de apoio social às pessoas mais vulneráveis. Serviços com capacidade de responder às necessidades psicossociais básicas ou a emergências sociais (por exemplo: insegurança alimentar, falta de moradia, conflitos e violência familiares).

Cuidar da saúde mental é também cuidar de si – aprenda a meditar

-“Em nada o Homem se aproxima mais dos deuses, do que em dar saúde a outros homens” – Cícero.

Sofremos com a ansiedade quando algo dentro de nós quebra a nossa continuidade psicológica: de repente a mente percebe que algo mais forte a empurra para longe, o coração acelera, o ar parece faltar, os músculos contraem-se, sente-se um “nó” na garganta e a respiração é mais rápida e superficial. Internamente é como se estivéssemos num conflito profundo entre o que somos e o que aspiramos da vida e o que devíamos ser ou julgamos que os outros esperam de nós.

Este discurso interno, constante e disruptivo, causa exaustão, cansaço e dificuldade de analisar, com lógica e com racionalidade, os pensamentos que nos invadem. A ansiedade é esta força impulsionadora de ação que acende as luzes dos alarmes internos. Ela não é negativa nem positiva, apenas geradora de ação. No entanto o corpo prepara-se para agir, mas a mente não acompanha e constrói o céu e o inferno. O pensamento escolhe onde vai viver!

O que fazer para não ficarmos bloqueados pelo medos e pela ansiedade?

Faça um pequeno exercício:

- Feche os olhos e respire profunda, calma e plenamente. Perceba a ansiedade que surge e não se oponha nem ofereça resistência - nem física nem mental. Lembre a máxima de Hermes Trimegistus "nada está parado, tudo se move, tudo vibra". Imagine que a agitação percorre todo o corpo, procure onde se manifesta o desconforto com maior intensidade e coloque a mão nesse ponto. Ao mesmo tempo, imagine um perfume ou uma flor com a qual sinta uma afinidade particular e deixe que esta imagem se instale dentro de si. Lembre-se de que "tudo tem fluxo e refluxo, tudo tem as suas marés, tudo sobe e desce, o ritmo é a compensação"i. O seu pensamento é só pensamento, nada mais do que isso. Deixe fluir os pensamentos. A imaginação é a sua arma secreta, a sabedoria da “criança interior” que todos guardamos em nós, um raio de luz e brilho da essência do seu ser. Relaxe, enquanto respira profunda, calma e plenamente. E, por momentos, sinta só a sua respiração. Viva apenas o momento da sua respiração.

Este exercício simples pode ser feito em qualquer lugar, as vezes que quiser e por qualquer pessoa. Lembre-se que os pensamentos são apenas pensamentos. Os pensamentos não são a realidade. Apenas precisa de fechar os olhos, de se afastar um pouco dentro de si mesmo e confiar, relaxadamente, no seu silêncio interior. O exercício tem o propósito de lembrar o poder da imaginação para o bem-estar psicológico. Precisamos de desenvolver a interioridade, a capacidade de escutar o silêncio do “EU” para evitar entrar em pânico. Para evitar também consequências psíquicas no futuro, quando esta emergência for apenas uma memória. Compreenda que estar sozinho não significa estar em solidão. Fazer silêncio é é só ter a possibilidade de escutar o barulho do pensamento. Se ficarmos parados e acolhermos com aceitação o desconforto - ele passa mais rápido! E mais rápido retomamos a coerência das nossas vidas, cuidando da saúde mental.

 

* Ana Paula Duarte Freitas – Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicologia da Educação e em Necessidades Educativas Especiais.

i Hermes Trimegistus – O três vezes grande – filósofo egipcio (1500 a 2500 a.C.).

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