Não há vidas sem mácula. A vida longa, intensa e plena de Mário Soares não é excepção, mesmo sendo ele uma figura excepcional. De que Mário Soares falamos, que Mário Soares recordamos hoje? O Mário Soares da Fonte Luminosa e do socialismo na gaveta, o líder do PS que arrastou toda a direita atrás de si? Ou o Mário Soares da luta antifascista e do exílio e que, mais tarde, nos apertos da democracia, se levantou contra a direita, quer no combate a Cavaco quer, tempos depois, na oposição à troika e ao governo de Passos e Portas?
Não podemos falar de um e ignorar o outro, o próprio não nos perdoaria, como um dia me disse, sem ponta de arrependimento: “Eu fui isso tudo, eu fiz isso tudo, para o bem e para o mal”, a meio de um longo desabafo sobre a amargura e a inquietação com que olhava para os caminhos seguidos pela social-democracia europeia e o seu PS, sem esconder a sua irritação com as facilidades oferecidas aos mercados e à alta-finança pelos governos europeus liderados por partidos socialistas ou trabalhistas, tratados por ele com dureza e alguns palavrões.
Não sei se alguma vez terá reconhecido que, também ele, contribuiu – e de que maneira - para que tivessemos chegado ao ponto a que chegámos, às arbitrariedades que marcam os tempos que correm e que tanto o revoltavam, julgo que com a maior sinceridade. Num homem que se guiou mais pela intuição do que pela convicção, essa dúvida fica por esclarecer.
Não podemos falar de um e ignorar o outro. Mas podemos escolher qual recordamos. E eu quero recordar o Mário Soares com quem, nos últimos anos, conversava ao fim da tarde, no seu gabinete da Fundação. Já afastado da política activa, Mário Soares não falava de outra coisa que não fosse de política, com indisfarçado prazer, entusiamo e vontade, como se o dia seguinte dependesse daquela conversa. Desculpem o lugar comum mas lembrava um jovem a dar os primeiros passos na política.
Soares pressentia o isolamento que crescia em torno da direita troikista, queria envolver tudo o que estava descontente com Cavaco e Passos, sentia-se frustrado com um PS que lhe parecia anestesiado. E foi assim que, em 2013, nasceram as sessões da Aula Magna, a primeira contra a austeridade, a segunda em defesa da Constituição, ambas um sucesso, que lhe alimentaram o desejo de uma terceira que, razões conhecidas, acabaram por não permitir.
Mário Soares é uma daquelas raríssimas personalidades sobre as quais já tudo se disse e tudo se lhe reconheceu ao longo da própria vida. Duvido que alguma coisa tenha ficado por dizer. Do que não duvido é da sua consagração pela História como fundador da democracia portuguesa e da segunda República. Na nossa História é esse o seu lugar.
Texto publicado no Expresso de 7 de janeiro