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"A Batalha de Praga", de Flausino Torres

A Primavera de Praga de 1968 foi testemunhada pelo historiador e militante comunista português Flausino Torres, pai do arqueólogo Cláudio Torres, que dava aulas na Universidade Karlova. Horrorizado, Flausino Torres assistiu aos tanques soviéticos esmagando a experiência de um "socialismo sem ditadura; socialismo com democracia, com minorias; socialismo sem censura à imprensa". É um extracto do relato que escreveu na altura, "A Batalha de Praga" que pode ser lido abaixo.

 
27/8/68 - No dia 21, quarta-feira, pelas 7 horas da manhã, entram-nos pela porta dentro três compatriotas - entre eles a Maria [pseudónimo de Mercedes Ferreira]: "Rebentou a guerra! A Checoslováquia foi invadida pelos Sovietes! Às 11 horas da noite de ontem 20, algumas centenas de tanques atravessaram a fronteira: a Polónia, a Hungria, a RDA, a Bulgária, a União Soviética, entraram cada um por seu lado!" Ficámos meio-atordoados! Seria possível? A União Soviética, a Pátria do Socialismo, como era costume chamar-lhe - e como quase oito dias depois certas emissoras facciosas continuavam a chamar-lhe - invadia um país amigo...? Seria crível, depois da Conferência de Bratislava, de que tudo partira satisfeito como pareciam mostrá-lo as imagens da TV? Ficámos todos atordoados; continuámos todos atordoados com o que estávamos ouvindo. Fomos imediatamente para o Centro, onde a batalha rugia. Centenas de tanques rolavam barulhentamente, pesadamente, pelas ruas calcetadas de Praga. Não se viam homens, não se viam soldados, naquela manhã em que atravessámos a cidade de autocarro: tanques, tanques e somente tanques; carros blindados e metralhadoras; canhões compridíssimos dum verde cinzento, tudo num verde cinzento. Os transportes não existiam; eu voltei a casa à tarde a pé: 14 quilómetros.

'Não sei se estou sonhando', dizia um amigo. 'Não cheguei a terminar as férias; estávamos naquela cidadezita de que lhe escrevi; num hotel junto da fronteira da Alemanha Democrática. Tinha levado comigo alguns jornais alemães e russos para me pôr em dia com os acontecimentos e ver o que pensavam os nossos vizinhos acerca dos acordos da conferência. E foi na noite de 20 para 21, lá pelas 12 horas, quando começámos a sentir um barulho estranho, um ruído ensurdecedor. Os empregados logo nos avisaram de que carros e mais carros entraram pela fronteira e atravessavam as ruas da cidade'. E respirava fundo, o meu amigo. Depois continuou, sem parar: 'Decidimos logo vir imediatamente para Praga. E na manhã seguinte metemo-nos ao caminho. E para fugir ao movimento que prevíamos intenso pela estrada fora, pusemos a desviar-nos para as estradas não principais: os tanques rolariam pelas mais largas e em melhor estado. Mas enganámo-nos'. E dizia isto ainda emocionado e com a voz embargada: 'Todas as estradas que tentámos vinham pejadas de uma variedade inumerável de veículos motorizados; e as estradas eram tão estreitas para aqueles mastodontes que por vezes corremos riscos de sermos cilindrados. Por vezes tivemos que descer para a margem da estrada e mesmo para a valeta para dar passagem. E nunca viemos senão com um tanque pela frente e outro por detrás! E isto durante duzentos quilómetros; isto durante 6 horas, tanto quanto durou a viagem. Minha mulher ficou doente, e está ainda doente. Foi ela que conduziu sempre!' (...).

Os carros - tanques e outros - foram assaltados no primeiro dia, somente no primeiro dia, pela juventude - eu vi com os meus olhos, rapazes e raparigas empunhando bandeiras, falando com os pobres soldados, os soldados soviéticos que muito se parecem, na atitude, com os parolitos portugueses (eu imaginava-os de outra forma): explicavam-lhes que a Checoslováquia era um país livre que estava tentando uma nova experiência socialista, uma experiência em novos moldes: socialismo sem ditadura; socialismo com democracia, com minorias; socialismo sem censura à imprensa; socialismo e liberalismo; sobretudo socialismo sem corrupção, sem mentira, sem falsas estatísticas, sem criminosos, sem lançamentos da janela abaixo; sem espionagem interna.

Mas eles, os pobrezitos dos soldados, respondiam: 'Vocês estavam fazendo a contra-revolução!'.

- 'Mas onde vêem vocês a contra-revolução? Onde estão os contra-revolucionários?'.
 
- 'Nossos Dirigentes disseram-nos que lavrava aqui a contra-revolução, é porque é verdade!

É espantoso tudo isto; é esmagadora esta resposta! Tinham recebido educação socialista os que assim falavam?

Na noite desse primeiro dia de ocupação, de 21 para 22, ouviu-se o matraquear das metralhadoras e o estoiro do canhão. Ordem de recolha às 10 horas: 'Cuidado que eles fazem fogo sem prevenir'.

Na manhã seguinte, a entrada de muitas ruas estava tomada; entre elas, aquelas em que estava a Agência de Notícias, a do Correio Central e a da Rádio. Nessa mesma manhã começou o combate pela posse da Rádio, o combate do aço contra os corpos sem armas, sem uma única arma. À noite ainda resistiam, sem dar um tiro para fora. O povo - louco, enfurecido por horas - atacava os tanques; com que armas? Uma ou outra garrafa Molotov! Diz-se que alguns soldados morreram queimados dentro deles. O que se sabe é que começaram a cair os checos. Entre eles um heróizito de 15 anos que foi espatifado junto da estátua que se encontrava ao cimo da Praça Venceslau: nos dias seguintes as calças ensanguentadas do primeiro mártir da liberdade estavam penduradas no pedestal; e de então para diante não acabou a romagem da juventude ao túmulo de flores - simbólico túmulo na base da estátua! - que ali são sempre renovadas. E quem passa vê sempre uma pequena multidão e duas guardas imobilizadas - à maneira checa - de bandeira em punho: emocionante aquele pequeno herói, que passará a ser um "santo" da Liberdade. As lágrimas de homens e mulheres caem sobre as flores.

É incrível que aqueles barbudos, aqueles cabeludos que tinham até aí causado a irritação, a troça, a crítica do homem vulgar entregassem suas vidas pela Pátria com a mesma facilidade com que se negavam a cortar o cabelo: na Praça da Velha Cidade, junto do monumento em que João Huss fala ao povo, foram alguns fuzilados depois de uma troca de palavras que não chegou a meio minuto! Fuzilados como quem atira a coelhos! Soldados socialistas fuzilaram jovens socialistas porque, na sua opinião - na opinião de Breznev - estava-se aqui desenvolvendo a contra-revolução. (...)

Onde os canhões foram mais raivosos foi naqueles 200 metros em frente da Rádio: tanques, canhões, metralhadoras dum lado; árvores, eléctricos, automóveis, pessoas desarmadas, do outro. Dum lado, portas fechadas do edifício e emissões em todas as línguas durante o dia e noite sem descanso; do outro, uma tentativa de domínio que cada vez encontrava menos resistência. Durante horas, algumas casas, no outro lado da rua, ardiam. Eu vi o destroço na altura em que ainda se não podia passar de um lado para o outro da rua mas em que - serenados os ânimos - os checos olhavam silenciosos para aquela parte da cidade. E foi aí que vi pela primeira vez a Cruz Suástica, a cruz hitleriana, desenhada no bidon de gasolina dum carro soviético invasor - um tanque socialista! O símbolo nazi num tanque socialista. E daí em diante várias vezes vi, com os olhos que não queriam acreditar no que viam, a 'foice e o martelo' cruzadas pela cruz suástica! Um jovem, ao escutar o fogo das metralhadoras ao longe, no caminho para Kacherov, perguntava-me: 'Socialismo ou fascismo?'. Um velhote, apontando para um tanque soviético que 'defendia' uma ponte de caminho-de-ferro, junto de Krc, dizia: 'Socialismo, socialismo...'. (...)

Transcrito do livro "Flausino Torres, Documentos e Fragmentos Biográficos de um Intelectual Antifascista", de Paulo Torres Bento editado pela Afrontamento

 

O livro "Diário de Praga" , de Flausino Torres, já foi publicado pela Afrontamento.

(...)

Neste dossier:

Primavera de Praga

Em 1968, a experiência checoslovaca de democratizar o socialismo, a Primavera de Praga, foi esmagada pela invasão dos tanques da União Soviética e de outros países do Pacto de Varsóvia. O Esquerda.net reuniu neste dossier artigos e reportagens a rememorar os acontecimentos e documentos da época, em particular um relato do português Flausino Torres, a carta de seis comunistas portugueses exilados criticando a invasão, e uma carta de Flausino Torres pedindo a suspensão de Álvaro Cunhal do PCP.

Cronologia

1968 foi um ano intenso: a guerra do Vietname mobilizava exércitos de combatentes e uma opinião pública quase planetária; em França, o mês de Maio assinalaria a criação de uma frente ampla de estudantes e operários na contestação da exploração capitalista, Israel e o Líbano envolveram-se num aceso conflito, Marcelo Caetano Caetano substituiu Salazar. E a Humanidade conseguiu colocar uma nave na órbita da lua. Em Agosto, os tanques soviéticos irrompiam em Praga para pôr fim aos ímpetos reformistas do Socialismo de Rosto Humano proposto por Alexander Dubcek. Fica uma breve cronologia dos acontecimentos de Praga.

Exposição: 40 anos depois, checos revivem repressão da Primavera de Praga

Uma selecção de histórias e objectos da colecção de Palach integram a exposição que o Museu Nacional da República Checa inaugurou esta semana. Num "flashback" da invasão, a exposição inclui um tanque de guerra T-54 soviético na frente de um imponente edifício, ainda equipadas com as metralhadoras de 1968.

Dubcek: Um homem de boa vontade isolado no reino dos cínicos

Uma retrospectiva da trajectória política de Alexander Dubcek feita pelo diário francês Le Monde na edição de 5 e 6 de Janeiro de 1969, onde o autor dá conta que «Dubcek era um herói, um "estratega genial" ou um novato e um fraco? As opiniões continuam muito diferentes.»

O buraco negro da memória

Nesta reportagem publicada há dez anos na revista Vida Mundial, Daniel Oliveira recorda os acontecimentos da Primavera de Praga e a "Revolução de Veludo", que ocorreu em 1989.

Só os tanques soviéticos pararam a participação popular

Em, 1968, a então Checoslováquia lançou o pânico no campo do "socialismo real". A reabilitação da crítica democrática e um verdadeiro levantamento pacífico viravam do avesso o bastião avançado do Pacto de Varsóvia na Europa. O Partido-Estado subvertia-se a partir de dentro. Uma revolução? Só os tanques soviéticos puderam parar a experiência de participação popular daqueles poucos meses.

"Estamos a ser ocupados pelos nossos fraternos aliados"

A 10 de Setembro de 1968, o diário conservador francês Le Figaro publica uma carta de uma mulher residente em Praga e militante do Partido Comunista Checoslovaco, um documento que revela bem o medo e a perplexidade que tomou conta das ruas da cidade, causados pela intervenção militar soviética. Mas não deixa também de mostrar diversas formas originais de resistência que uniram o povo contra os ocupantes. 

"Que Álvaro Cunhal seja suspenso"

No dia 5 de Novembro de 1968, Álvaro Cunhal reúne-se em Praga com os comunistas portugueses. A meio da reunião tensa, Cunhal expulsa da sala, aos gritos, o jovem Álvaro Bandarra, que procurava apresentar as razões para criticar a invasão soviética. Flausino Torres dirige-se então a Cunhal: " Jamais voltarei a apertar-te a mão! Mandaste sair aquele jovem. Pois tu é que deves abandonar o grupo, a direcção do grupo [o Partido]!(...)". Depois, escreveu uma carta ao Comité Central do PCP pedindo um inquérito e a suspensão de Cunhal do Partido.

Carta dos portugueses exilados na Checoslováquia sobre a invasão soviética

Seis comunistas portugueses exilados na Checoslováquia acompanharam com angústia a invasão soviética. "Sem esperar as decisões de dirigentes de qualquer escalão", relata Flausino Torres, "declarando-nos imediatamente pelo lado da justiça, cumprindo um dever à luz dos princípios." A carta seria seguida por uma segunda, datada de 16 de Setembro, que já reage à "decisão vergonhosa da Direcção do Partido Comunista Português".

"A invasão não teve o consentimento das autoridades constitucionais da Checoslváquia"

Esta declaração do presidente da República Socialista da Checoslováquia, general Ludvik Svoboda, aos microfones da rádio Praga no dia 21 de Agosto, deixa claro que não foram as autoridades constitucionais checoslovacas que fizeram qualquer pedido de intervenção militar, e chama os seus concidadãos a enfrentar o desafio e a manifestarem "a adesão ao socialismo, à liberdade e à democracia."

Declaração da agência TASS sobre a intervenção militar na Checoslováquia

No próprio dia 21 de Agosto, a agência Tass, a agência de notícias oficial da União Soviética, divulgou esta declaração, em que afirma que a invasão foi feita a pedido dos "militantes e homens de Estado da República Socialista Checoslovaca" e que o motivo foi a ameaça que as "forças contra-revolucionárias", em conluio "com as forças exteriores hostis ao socialismo" faziam pesar sobre o regime socialista checoslovaco.

Uma "Primavera" esmagada

A "Primavera de Praga" foi sufocada há 40 anos. As possibilidades de democratizar as "democracias populares" a partir do seu seio reduziram-se drasticamente; mas permanecerá o seu exemplo, como gesto colectivo de audácia e de combatividade, de entrega generosa, que encheu as ruas de Praga e de outras cidades e que levou muito mais longe a vontade de combater o estalinismo como forma pervertida e enquistada de um poder autoritário e burocrático.

"A Batalha de Praga", de Flausino Torres

A Primavera de Praga de 1968 foi testemunhada pelo historiador e militante comunista português Flausino Torres, pai do arqueólogo Cláudio Torres, que dava aulas na Universidade Karlova. Horrorizado, Flausino Torres assistiu aos tanques soviéticos esmagando a experiência de um "socialismo sem ditadura; socialismo com democracia, com minorias; socialismo sem censura à imprensa". É um extracto do relato que escreveu na altura, "A Batalha de Praga" que pode ser lido abaixo.