Ventura e os espectros filosóficos

27 de dezembro 2014 - 22:21

Em Cavalo Dinheiro, Pedro Costa parece querer fechar o ciclo etnoficcional dedicado a uma comunidade de imigrantes de Cabo Verde em Portugal e ao processo de desterritorialização provocado pela demolição do bairro das Fontainhas.

porRui Matoso

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Ventura capturado pelo MFA. Imagem de "Cavalo Dinheiro", Pedro Costa, 2014.

Sobre o filme CAVALO DINHEIRO (Pedro Costa, 2014)

Quer dizer, para lutar contra o inimigo colonialista, todas as forças que possamos juntar, que venham, que venham. Mas não é às cegas, temos que saber qual é a posição de cada um em relação aos colonialistas. Então, nas cidades verifica-se o seguinte: brancos, muito poucos fizeram alguma coisa contra os colonialistas. Primeiro, porque eles são a classe colonial, os que, representam mais o colonialismo na nossa terra; segundo, porque vários não estão para isso, porque têm a sua vida, querem ir- se embora quando ganharem muito dinheiro, não estão para maçadas; e terceiro, porque os brancos, os tugas que vivem na nossa terra, não têm em geral formação política bastante para tomar uma atitude concreta, aberta, contra um regime qualquer, estejam onde estiverem. Amilcar Cabral (Unidade e Luta)


A história de Ventura, imigrante caboverdiano e pioneiro do bairro das Fontainhas, assume agora contornos épicos depois da trilogia: Ossos (1997), No quarto de Vanda (2000) e Juventude em marcha (2006). Em Cavalo Dinheiro, Pedro Costa parece querer fechar o ciclo etnoficcional dedicado a uma comunidade de imigrantes de Cabo Verde em Portugal e ao processo de desterritorialização provocado pela demolição do bairro das Fontainhas.

Vanda emigrou recentemente para a Holanda como tantos outros portugueses violentados pela austeridade económica e social. Ventura continua em Lisboa, mas padece de uma prolongada “doença dos nervos” provocada por um acidente na construção civil, tal como vem acontecendo  com outros imigrantes sujeitos à exploração laboral e d’bóx’ dí chicôt’ má’ júg’ culuniál (debaixo do chicote e jugo colonial).

Pedro Costa transforma a realidade dos corpos, dos interiores domésticos caóticos, das ruínas, dos hospitais e ruas decadentes ou dos labirintos escuros, em imagens visceralmente sublimes, afetuosas mas simultaneamente terríveis, empáticas mas também malditas. Esta qualidade ambígua confere-lhes a possibilidade da “partilha do sensível”, pois as imagens arrastam consigo a condição política e social desta comunidade (des)integrada como mandam as regras do multiculturalismo e a lógica perversa dos bairros sociais.

O filme abre estranhamente (ou não) com fotografias de Jacob Riis que mostram os bairros pobres da América de há cem anos, numa clara alusão à persistência histórica da dominação e das desigualdades sociais na era da globalização. O formato 4:3 do filme causa algum desconforto pictórico e dificuldade retiniana à contemplação estética das imagens barrocas, saturadas de cor (principalmente o vermelho) e dos ambientes obscuros de luz e sombra, que constroem o filme logo após a sequência inicial - grande plano de um retrato naturalista, um rosto de um jovem africano. Uma sonoridade “microscópica” causa também alguma estranheza, ouvem-se  minúsculos detalhes, ecos, passos ao longe, ventos, folhas e outros ruídos ambientais que contribuem para a imersão no universo alucinatório de Ventura.

A tristeza, a melancolia e a alienação foram ganhando terreno desde o Quarto de Vanda, atingindo o paroxismo da doença em Cavalo Dinheiro, equivalendo assim ao processo de liquidificação das sociedades pós-modernas. O que antes era uma fraqueza (aos olhos da classe média) já não existe como força de uma comunidade, o bairro das Fontainhas desapareceu, desterritorializou-se fatalmente no Casal da Boba,  e com ele foi extinto o sentido de pertença que ligava os habitantes entre si e àquele território. Depois da colonização violenta, durante séculos, de Cabo Verde sucedeu-se o desenraizamento na nova terra. A pobreza da vida transformou-se em vida pobre, diminuída e subjugada pelos ditames de uma administração pública ocupada pela destruição do Estado social, por burocracias e abstrações desvitalizantes.

Ventura e os seus companheiros parecem agora sonâmbulos de olhar vago e distante, com gestos arrastados e movimentos tensos. A energia dos seus corpos fora resgatada pelas máquinas trituradoras do regime democrático pós-25 de Abril; ainda assim, as suas cabeças funcionam com uma outra filosofia ligada ainda ao crioulo e à ilha do fogo, são uma espécie de zombies ou fantasmas filosóficos a deambular pela noite que os há-de consumir.

Pedro Costa transforma a realidade dos corpos, dos interiores domésticos caóticos, das ruínas, dos hospitais e ruas decadentes ou dos labirintos escuros, em imagens visceralmente sublimes, afetuosas mas simultaneamente terríveis, empáticas mas também malditas. Esta qualidade ambígua confere-lhes a possibilidade da “partilha do sensível”, pois as imagens arrastam consigo a condição política e social desta comunidade (des)integrada como mandam as regras do multiculturalismo e a lógica perversa dos bairros sociais.

Ventura é um poeta talentoso e homem de emoções excecionais, mas é também um ser humano perdido no limbo entre o mundo e a memória. A sua figura duplamente lendária, o herói mítico do bairro das Fontainhas, um dos seus alicerces, e simultaneamente um dos maiores dramas em gente daquela comunidade, inscreve-se na epopeia de Cavalo Dinheiro como sintoma da sub-representação do seu povo em Portugal. Neste contexto sabe-se, por exemplo, que a imagem pública da Cova da Moura «nunca foi sinónimo de bem-estar, educação ou prosperidade. Pelo contrário, esteve sempre associado à ideia de violência, insegurança, perigo, ou, na melhor das hipóteses, de falta de instrução ou simplesmente pobreza» (in sinopse do filme Ilha da Cova da Moura, Rui Simões, 2010).

É por isso que iconoclastia/iconofilia dos cineastas se revela um contributo pertinente para destruir preconceitos e tornar-nos próximos de “estrangeiros” como Ventura, que afinal,  sabemos agora, faz parte da história recente de Portugal, emocionou-se no dia 25 de Abril de 1974, foi perseguido pela PIDE e pelo MFA, e entrou doravante na história universal do cinema.

Rui Matoso
Sobre o/a autor(a)

Rui Matoso

Investigador e docente universitário
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