Início dos anos 80, aparecem umas imagens estranhas. Centenas de homens em cenas que parecem bíblicas, ou então um formigueiro, trabalham num terreno enlameado e escavado. Eram imagens fora deste tempo, fora de qualquer tempo. Eram imagens de garimpeiros na Serra Pelada no Brasil, procuravam o mais precioso dos materiais, aquele que em si representa riqueza, o ouro. Percebia-se nas imagens que essa riqueza era uma miragem, mais um eldorado, como tantos que povoaram o imaginário desde o século XVI. Alguém iria ficar rico com aquele ouro, mas não os que ali tinham um trabalho duríssimo e a miragem de uma pepita maior que os libertasse daquele calvário. O fotógrafo era Sebastião Salgado que ascendia de uma vez à galeria dos grandes fotógrafos. Impacto semelhante tiveram as fotografias de desmantelamento de navios no Bangladesh, uma tarefa sobre humana com a pequenez dos homens e o gigantismo dos navios.
Vendo as fotografias pensei: É isto que eu quero fazer. É isto que quero mudar. Ainda por cima era um tipo que tinha o nome do meu avô e, ao contrário dos nomes mais conhecidos da fotografia, não era nem francês, nem americano.
Salgado já tinha antes fotografado o Portugal do PREC. Essas imagens eram difíceis de encontrar e objeto, para mim, de grande curiosidade, porém, sem saber qual o autor, algumas fazem parte da nossa memória coletiva. Dois camponeses conversam com um grande retrato de Lenine como fundo. Estaríamos em Portugal de 1975 ou na Rússia de 1918?
O trabalho, as migrações, tornaram-se nos temas centrais de Salgado. Passou a ser visto como o principal herdeiro dos fotógrafos “humanistas” de uma geração que, por essa altura, ia desaparecendo. Salgado era o continuador de Cartier-Bresson ou Eugene Smith. Apesar de a sua influência, até por ter a base de trabalho em Paris, ser a fotografia francesa, é com o W. Eugene Smith que encontro as maiores semelhanças. As suas imagens tendem a ser intemporais como as da “Spanish Village” que o fotógrafo americano publicou em 1950. Também se dá uma viragem para as questões ambientais.
Obituário
Sebastião Salgado (1944-2025): a imagem como instrumento da transformação social
Não só com as fotografias, mas também criando, com a sua mulher Lélia, a Fundação Terra e um espaço natural de mata atlântica importante no estado de Minas Gerais, Brasil, Salgado vai tendo uma ação ambiental cada vez mais importante. A fotografia também mudava, entretanto, e o seu gigantesco Genesis que o levou aos quatro cantos do mundo é sobretudo digital. Genesis é uma espécie de Arca de Noé. Pinguins na Antártida, elefantes em África, aves e macacos na amazónia, são os animais, são as pessoas e os seus habitats. Não creio que a passagem ao digital lhe tenha sido benéfica, a facilidade e o sobre tratamento com céus e paisagens dramatizadas enfraquecem as suas imagens. A pureza e a dureza dos seus trabalhos iniciais são agora excessivamente esteticizadas. E perdemo-nos a olhar para aquele sol que desponta por trás da nuvem, quando a ação está cá em baixo, na terra. Uma pequena deceção numa série grandiosa e grandiloquente.
A obra de Salgado é o nosso mundo, a exploração e as más condições de trabalho. A condição humana, mas também a condição do planeta, os seus riscos.
É um lugar-comum dizer que morrendo o homem fica a obra, aplica-se completamente a Salgado. As suas fotografias ficam na nossa memória coletiva na memória coletiva da humanidade. Algumas por aquilo que queremos que mude, outra por aquilo que queremos preservar. Um grande fotógrafo, mas, acima de tudo, um grande homem.
Uma ocasião rara para ver algumas das suas fotografias é a exposição “Venham mais cinco”, com trabalhos seus entre os de outros fotógrafos estrangeiros que por cá passaram (na revolução a que se podia ir de Renault 4) em 1974 e 1975. Parque Industrial da Mutela, frente à Lisnave.