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Relato de Istambul: "Em três dias, as pessoas aprenderam a tomar as ruas"

O esquerda.net entrevistou Mehmet Ali Uzelgun, o investigador do ISCTE que participou nos primeiros dias do protesto da praça Taksim e assistiu de perto aos confrontos com a polícia e à resposta da sociedade turca numa poderosa onda de solidariedade e protesto.
Protesto no parque Gezi. Foto Mehmet Ali Uzelgun.

Participaste no movimento que originou o maior protesto social na Turquia nos últimos anos. Como foram esses dias antes da repressão?

Em primeiro lugar, há que dizer que o primeiro-ministro quase tornou numa questão pessoal este projeto de construir um centro comercial num dos últimos espaços públicos de Istambul. O plano foi rejeitado pelo conselho regional de proteção da natureza e cultura e a resposta dele foi “nós rejeitamos essa rejeição”. Foi então que as pessoas que queriam “rejeitar a rejeição da rejeição” começaram a juntar-se e a construir uma unidade para esta luta.

Na segunda-feira (27 de maio), um grupo de pouco mais de cem pessoas juntou-se para uma ação de ocupação no parque Gezi junto à praça Taksim. Eram na maioria estudantes e pessoas que exigiam ter uma palavra a dizer nas decisões que se tomam em seu nome com implicações na vida da cidade. Queriam apenas que a sua voz fosse ouvida. Foi a estes que o primeiro-ministro chamou "marginais” e “bêbados".

Ao contrário do que julga o governo, estas pessoas não eram simplesmente "os amigos das árvores", mas sim pessoas politizadas: feministas, objetores de consciência, e gente libertária sem filiação partidária.

Quando fui para o parque Gezi na quarta-feira de manhã haveria cerca de cem pessoas a dormir ali em tendas. Éramos duzentas ou trezentas pessoas que ali estávamos a debater com um copo de chá na mão. Nesses primeiros três dias da ocupação, a polícia apareceu sempre por volta das 5 da manhã e com grande brutalidade: agrediam as pessoas, queimavam as tendas, prendiam alguns e os outros tinham de fugir. Foi impressionante ver nas redes sociais as pessoas a gritarem "por favor, deixem-nos levar os nossos pertences!". Os polícias batiam sempre, mas as pessoas não atiravam pedras nem procuravam confrontá-los. Enfim, aconteceu o que era normal na Turquia: a polícia reprime e as pessoas recuam.

Foi isso que se viu nos primeiros três dias e a cada dia que passava, a par da violência, aumentava também o número de manifestantes. Na manhã de quinta-feira (30 de maio) a praça já tinha mais gente, incluindo artistas bastante famosos. Eu estava convencido que a polícia não voltaria lá. Mas na manhã seguinte voltaram com a mesma violência e prenderam muita gente. Um rapaz foi barbaramente agredido e teve de ser operado no hospital. A repressão conseguiu fechar o parque e expulsar de lá as pessoas. Penso que esse foi o dia chave, tudo aconteceu nesse dia.

Logo aí decidi que não ia abandonar aquele protesto. Felizmente não fui o único, veio gente de toda a cidade apoiar-nos, dezenas de milhares, talvez mais de cem mil pessoas. A reação popular não era apenas contra as sucessivas imposições do governo sem querer saber da opinião das pessoas, era contra a repressão brutal contra os manifestantes pacíficos. E à medida que os manifestantes chegavam e davam força ao protesto, começaram a responder à polícia. Era sobretudo gente de esquerda, mas também todo o tipo de gente que queria dizer “basta” desta regime opressor. Nessa altura, o movimento ganhou a força necessária para se transformar numa revolta popular. E já depois das duas da manhã, recuperámos a praça Taksim. Creio que foi aí que o protesto ganhou outra dimensão, a de um levantamento popular.

Como é que um protesto local conseguiu ganhar esta dimensão e ser o rastilho para despoletar a tensão social no país?

Olhemos para o contexto: o governo conseguiu juntar a sua agenda neoliberal à agenda religiosa conservadora, que é duramente imposta através da polícia. Quando o governo avança com projetos urbanísticos - como este da praça Taksim -, ou de uma barragem ou uma central elétrica a carvão, há sempre oposição popular. Podem ser 200 ou 2000 manifestantes, para o governo tanto faz: se forem 2000, põem lá 10 mil polícias; se forem 10 mil, põem 20 mil polícias. Nos últimos cinco anos tem sido esmagado qualquer tipo de resistência a estes projetos, seja nas grandes cidades ou fora delas.

A união das duas agendas, a neoliberal e a religiosa, mistura-se recorrendo ao marketing político para o governo se mostrar com uma imagem democrática. Por exemplo, na passada sexta-feira o primeiro-ministro acusou-nos de sermos fascistas!... A complexidade política na Turquia permite ao governo manobrar para dividir a oposição.

O grupo inicial que protestava em defesa do Parque Gezi opunha-se claramente a estas duas agendas. Mas no sábado (1 de junho) juntaram-se a nós muitas pessoas que poderíamos chamar laicas ou nacionalistas-soft, mas que se identificam como sendo de esquerda, sociais-democratas, republicanos. São apoiantes do partido fundado por Kemal Ataturk, o Partido Republicano do Povo (CHP), que é agora o maior partido da oposição. A polícia recuou nessa altura e as ruas de Istambul foram em grande medida libertadas. Foi uma grande festa, mas o primeiro-ministro continuou a insultar estas pessoas, garantindo que o projeto era para avançar. Nessa altura, a violência já tinha alastrado ao resto do país.

A repressão policial foi acompanhada pelo exército?

Não, normalmente não precisam dos militares, nos últimos anos nunca se chegou a esse ponto. A polícia turca é muito forte, todos os anos entram milhares de efetivos. E o processo de ascensão deste poder neo-conservador ou islamista soft, como preferirem, foi marcado pelo afastamento dos militares - que antes dominavam o regime - do centro da ação política. Se compararmos com o que acontecia há dez anos atrás, hoje o exército não está presente na política, o que é bom. Esse era um dos objetivos da esquerda, mas acabou por ser conseguido por este governo. Se antigamente, sempre que os militares falavam, havia o risco do governo cair, agora já não intervêm no campo político.

Mas é verdade que o CHP tem defendido que o exército apoie este movimento e derrube o Governo. Correndo o risco de simplificar em demasia, podemos identificar duas linhas neste protesto: uma minoritária, a dos que querem que o exército tome conta do movimento e derrube o governo e outra, maioritária, dos que vêem neste protesto uma luta contra o neoliberalismo e preferem criar condições para a resistência popular nas comunidades locais sem a intervenção de qualquer poder armado.

É impossível prever o que irá acontecer daqui para a frente, mas que saídas vês para a atual situação?

O que posso dizer é que vi as coisas mudarem muito rápido: vi pessoas que nunca participaram numa manifestação a envolverem-se em confrontos diretos com a polícia. Na sexta-feira vi toda a gente vestida com t-shirts e agora vou à internet e vejo que toda a gente usa óculos de proteção contra o gás… Em três dias, as pessoas aprenderam muito sobre como tomar as ruas.

Esta foi a primeira vez que as pessoas sentiram que conseguem afastar a polícia para desobedecerem a uma ordem do governo, neste caso para que não entrassem naquela praça. Nesse sentido, foi espantoso! O que se segue, ninguém sabe. Não acredito que o governo vá cair, mas o maior partido da oposição pode tentar transformar este movimento numa grande frente antigovernamental. Não sei se isso será possível, mas uma coisa já foi feita: acabou o controlo total sobre a sociedade, os media, a cabeça das pessoas. Agora há outra voz, a de um povo que sabe que pode dizer não e resistir. A partir de agora, o importante é conseguir traduzir esta resistência sem precedentes num movimento com um discurso político mais claro e rigroso.

O papel dos media, em particular das televisões, foi muito criticado por silenciarem os protestos que abalavam Istambul...

Há que entender como funciona esse controlo, já não é a censura direta que havia no regime militar. Agora o governo é mais moderno, ou mais ocidental… Não há censura direta, mas os grandes grupos mediáticos, como de outros setores da economia, sabem que serão prejudicados financeiramente se derem espaço às críticas das posições do governo. Isto resulta obviamente num controlo total e contradiz o discurso neoliberal que promete mais liberdade e uma sociedade mais aberta. Na verdade, é ao contrário: é a prova que neste tipo de regimes mistos - Europa/Ásia ou Islão/Democracia - a agenda neoliberal não nos dá uma sociedade livre e aberta, mas cada vez maior controlo, privatizando o que é de todos. Só assim pode funcionar na perfeição, como aliás a China é um bom exemplo disso.

A razão do crescimento económico turco deve-se a um regime opressivo que impõe as suas escolhas sem discussão pública e reprime as opiniões diferentes, apelidando-as de terroristas ou marginais. E a situação dos media mostra bem como o controlo social do governo funciona: basta ver que ao mesmo tempo que a CNN Internacional mostrava os protestos na praça Taksim, a CNN turca passava um programa sobre pinguins…

Mas à falta de democracia na informação, o papel das redes sociais foi determinante…

Na sexta-feira, quando vi toda aquela gente a juntar-se, sinceramente não acreditei que poderíamos vir a tomar a praça outra vez. Mas quando a notícia se começou a espalhar nas redes sociais, sobretudo através do twitter, e começámos a ouvir que se estava a juntar gente em Londres, em Nova Iorque e nas maiores capitais do mundo com cobertura dos media internacionais, aí sim, passei a acreditar. Porque se existe pressão a partir do estrangeiro, então deixámos de ser aqueles desgraçados que ali estão a levar porrada.

Na verdade, o próprio governo foi legitimado a partir do estrangeiro. Quando chegaram ao poder e derrubaram os militares, achei que teriam grandes dificuldades para o controlar, não só porque não estavam habituados a ele, mas porque os kemalistas dominavam as instituições. Mas então as pessoas começaram a ver as fotos do primeiro-ministro com o Bush e com outros líderes políticos mundiais… aos olhos da maior parte das pessoas isso ajudou muito a legitimar a sua imagem e o seu poder.

Essa foi uma das lições que tirei destes dias: a ação à distância, que muitas vezes desvalorizamos e criticamos, pode ser muito importante. Confesso que nunca tive uma conta no twitter, mas agora entendo como uma pequena nota escrita lá longe é capaz de significar tanto para tanta gente.

E quais são as principais referências de outras lutas com que este movimento se identifica mais?

A Turquia tem sido um país muito fechado ao exterior a todos os níveis. Não me parece que os manifestantes que lá estão agora se revejam diretamente na Primavera árabe ou nas ações Occupy, das quais muitos nem sequer ouviram falar do Occupy. Creio que este movimento será daqui para a frente a referência destas lutas. Nunca tivemos um movimento que juntasse setores tão diferentes da sociedade, com pessoas totalmente despolitizadas ao lado de militantes da esquerda e da extrema-esquerda semilegal e das claques de futebol.

Mas a maior parte das pessoas que se juntaram ao protesto no fim de semana, apoiantes do CHP, são naturalmente inspiradas pela revolução kemalista. A sua motivação é a de lutar contra o conservadorismo e a islamização da organização da sociedade. No último mês houve por parte do primeiro-ministro alguns ataques aos costumes dos turcos. Vocês sabem que sendo a Turquia um país maioritariamente islâmico, as pessoas podem beber bebidas alcoólicas - embora não tão à vontade como aqui em Portugal, em que se bebe nas ruas. O governo quer agora impor uma lei que proíbe a compra de bebidas alcoólicas a partir das dez da noite e o primeiro-ministro fez questão de dizer num debate que seguia a palavra de Deus e não a dos bêbados que tinham escrito a lei em vigor. Toda a gente interpretou esta acusação como sendo contra Kemal Ataturk e os outros pais da nossa Constituição e isso provocou grande descontentamento na sociedade.

Houve uma cidade governada pelo CHP que se recusou a fornecer água para os carros da polícia. Achas que este tipo de resistência ao nível das instituições pode multiplicar-se?

O principal partido da oposição sente uma grande frustração e descontentamento contra o partido do Governo. Há dez anos era o contrário: os kemalistas oprimiam as mulheres que usavam o véu. Agora, os que foram eleitos por essas mulheres estão a vingar-se. Esta frustração, apesar da força do partido da oposição ser pouca, leva a que casos desses, numa pequena cidade aconteçam. Eles farão tudo para atacar o governo, mas como o governo domina as instituições quase por completo, creio que será difícil assistirmos a uma rotura geral a esse nível.

Por outro lado, não tenho grande esperança no CHP, que centra o seu ataque político naquilo que eles chamam de fundamentalismo do governo, que na minha opinião é incorreto. Eles não vêem que por detrás disso está o programa neoliberal, o capital. Só vêem o Islão, isso é um grande problema. E devido a esta análise errada do que se está a passar, até têm perdido terreno nos últimos anos para o partido do governo. Os islamistas sempre tiveram poder na Turquia, mas nunca chegaram aos 50%. Só o conseguem fazer hoje devido a esta combinação sagrada entre a agenda neoliberal e conservadora. Se não somos capazes de ver isto, não os conseguiremos derrubar.

Falta muito para haver uma alternativa ao governo que dê expressão ao sentimento que temos visto nas ruas?

O que precisamos hoje é de iniciativas que abram o debate entre a esquerda radical, que acumula 70 anos de frustrações, com a esquerda kemalista e os seus 10 anos de frustração. Pode ser que assim se consiga criar uma alternativa que em vez dessa frustração traga esperança e consiga juntar forças com os movimentos curdos, feministas, ecologistas e muitos outros, essa nova esquerda que não está organizada em nenhum partido e que, não nos esqueçamos, esteve na origem deste movimento da praça Taksim.

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