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Os motivos da decisão do BCE

As políticas de austeridade, cujo primeiro objetivo era forçar o pagamento aos bancos alemães do que estes tinham emprestado aos países periféricos, estavam também a criar um problema às exportações alemãs. Foi devido a este dilema que Draghi decidiu comprar dívida pública.
O risco de que toda a zona euro entrasse em recessão fez com que as vozes de alarme disparassem e forçassem o BCE a comprar bónus públicos. Foto de Infomatique

Os establishments (a palavra que se utiliza na literatura anglo-saxónica para definir os que mandam) financeiros, económicos, mediáticos e políticos de um país sempre tentam fazer crer à maioria da população que são eles que representam o país e que os seus interesses são os de toda a população. Existe todo um aparelho ideológico-mediático para promover esta perceção. Vimo-lo já em Espanha quando os maiores meios de informação indicaram que os Estados Unidos invadiram o Iraque ou que a Espanha apoiou essa invasão, esquecendo que não foram os EUA (com os seus 300 milhões de habitantes) que invadiram o Iraque, mas sim as tropas dos Estados Unidos, enviadas pelo governo dos EUA, eleito por apenas 34% da população adulta, a qual, segundo as sondagens, se opunha à invasão. E esquecendo também que a Espanha (40 milhões de espanhóis) não apoiou a invasão do Iraque, mas sim o governo Aznar, também eleito por apenas 30% da população maior de idade, e que teve de confrontar-se com milhões de espanhóis nas ruas que se opunham a essa invasão. Na realidade, as sondagens mostravam que a maioria dos espanhóis estava contra essa intervenção.

Esta observação vem à luz da perceção generalizada de que “a Alemanha está a ajudar os países da periferia do euro, ajuda que está a ser impopular naquele país”. Ao largo destas últimas quatro semanas li nada menos que 18 artigos em que esta frase, ou parecida, aparecia no texto. A Alemanha, porém, tem classes sociais com interesses diferentes e em muitas ocasiões contrapostos, como ocorre também em Espanha. O establishment está centrado na burguesia financeira (que controla o Bundesbank, o Banco Central alemão) e a burguesia industrial (centrada no setor exportador). Estas burguesias têm toda uma série de instituições ao seu serviço, todas postas à disposição da otimização dos seus interesses. E entre eles está a permanência do euro.

O que se esquece nos artigos que constantemente põem a ênfase na chamada “ajuda” alemã aos países periféricos é que o euro beneficiou enormemente os dois componentes mais importantes desse establishment alemão. E não só a existência do euro os beneficiou, como também a mal chamada “crise do euro” trouxe muitos benefícios a esses establishments. Devido a esta última (a suposta crise do euro), houve um enorme fluxo de capitais dos países periféricos para a Alemanha (uma enorme ajuda destes últimos à Alemanha), que determinou, entre outras consequências, que o Estado federal alemão (enormemente influenciado por esse establishment alemão) tenha conseguido um benefício de 80 mil milhões de euros, resultado de ter juros tão baixos nos seus bónus públicos (consequência do citado fluxo de capitais). Por outras palavras, além da ajuda à banca privada por parte dos investidores dos países periféricos (que se calcula em mais de 160 mil milhões de euros), esses países periféricos ajudam o Estado alemão com uma prenda de 80 mil milhões.

Mas além desta ajuda da periferia ao centro (devido à mal chamada “crise do euro”), existe a ajuda estrutural que decorre do sistema de governo do euro, dominado pelo establishment alemão. A maneira como se estruturou o euro foi resultado de uma arquitetura montada para garantir o domínio do sistema financeiro e económico da Eurozona por parte daquele establishment alemão (ver o meu artigo “O euro não tem problemas, quem os tem são as classes populares”, Social Europe Journal, 17.08.12 em www.vnavarro.org).

Repito que é muito importante sublinhar que foi resultado de uma arquitetura e não, como se critica frequente e frivolamente, resultado de uma incompetência ou de um erro. Foi uma arquitetura que explica que o euro tenha beneficiado enormemente o establishment alemão, ainda que não necessariamente as classes populares alemãs. Na realidade, o euro foi estabelecido para promover o “modelo económico alemão” baseado nas exportações. A famosa “Agenda 2010”, imposta pelo chanceler alemão Schröder, incluiu toda uma série de medidas que afetaram muito negativamente o nível de vida da classe trabalhadora alemã. Foi um ataque frontal ao mundo do trabalho e ao Estado de Bem-Estar alemão. E o seu objetivo era diminuir a procura doméstica (baixando os salários em relação à sua produtividade, e reduzindo os direitos sociais e laborais) a fim de promover as exportações, as quais se converteram no motor da economia alemã. O debate Schröder (a favor do modelo exportador) versus Oskar Lafontaine (a favor do modelo de procura doméstica), que descrevi com detalhe no artigo citado anteriormente, teve uma enorme importância para a Alemanha (e para a zona euro). A vitória de Schröder e Merkel (que manteve as suas políticas) significou a deterioração do mercado de trabalho alemão, com grande aumento dos benefícios empresariais à custa dos rendimentos dos trabalhadores. Estes enormes benefícios empresariais foram a génese de uma enorme acumulação de euros e, portanto, de uma enorme expansão do capital financeiro que investiu não na economia produtiva, mas sim nas áreas especulativas (financiando, por exemplo, a bolha imobiliária espanhola).

No conflito capital-trabalho (o que costumava chamar-se luta de classes, termo proibido e praticamente vetado nos meios do establishment), as burguesias financeiras e industriais foram ganhando e a classe trabalhadora alemã foi perdendo. Para mascarar esse conflito, o establishment alemão fez o que sempre faz nestas situações: mobilizou os sentimentos nacionalistas, criando um “vitimismo” segundo o qual a Alemanha estava a ajudar uns senhores preguiçosos, pouco disciplinados do sul da Europa, que com os seus excessos estavam a criar um problema grave, abusando da generosidade alemã. A maioria da imprensa alemã alimentou essa mensagem que, em parte, convenceu a população. O desagrado do operário alemão em relação ao operário grego, espanhol, português ou italiano, era essencial para que não desviasse o alvo para a própria burguesia alemã. Este vitimismo chauvinista foi essencial para esconder o verdadeiro conflito de classes dentro da própria Alemanha.

O conflito dentro do establishment alemão

Mas as políticas de austeridade, cujo primeiro objetivo era forçar o pagamento aos bancos alemães do que estes tinham emprestado aos países periféricos, estavam também a criar um problema às exportações alemãs, pois boa parte destas iam para os países do sul da Europa. Esta austeridade tinha alcançado um nível que afetava a capacidade importadora desses países, diminuindo assim as exportações alemãs. E é neste conflito que teve lugar a decisão de Draghi de comprar dívida pública. O setor industrial, próximo do ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, estava preocupado. E como esse ministro, o sr, Guido Westerwelle, disse recentemente, o euro significou um enorme benefício para a economia alemã. Esta burguesia industrial começou a temer que as políticas de austeridade promovidas pelo establishment financeiro alemão tivessem ido longe demais. Daí o seu desacordo com as políticas do Bundesbank. As tensões no establishment alemão sobre a decisão do Banco Central Europeu (de comprar ou não dívida pública da Espanha e da Itália) refletiam o conflito entre a burguesia industrial, que queria que Draghi decidisse a favor da compra da dívida pública, e a burguesia financeira (cujo porta-voz é o Bundesbank), que não queria. Pela primeira vez, o BCE fazia algo que não estava aprovado pelo Bundesbank, do qual, até então, tinha sido um mero apêndice. Mas o risco de que toda a zona euro entrasse em recessão fez com que as vozes de alarme disparassem e forçassem o BCE a comprar bónus públicos.

A decisão de Draghi de comprar bónus não é, porém, o que a zona euro precisa. O que deveria ter feito o BCE era o que se atribui ao fundo europeu FEEF, quer dizer, comprar bónus de longo prazo de vencimento, e diretamente ao Estado (o que se chama mercado primário). Em vez disso, comprará bónus públicos a curto prazo, no máximo três anos, o que é muito insuficiente (pois os grandes projetos de um país requerem empréstimos a longo prazo) e no mercado secundário, permitindo assim que os bancos continuem a encher-se de dinheiro. Mais, o BCE comprará bónus só no caso de os Estados pedirem ajuda e se submeterem à disciplina da troika, que acaba de exigir à Grécia que recupere o calendário laboral de seis dias de trabalho semanal, medida acompanhada por uma grande baixa de salários e enormes cortes de gastos públicos, que deprimirão ainda mais a economia desse país.

Publicado na revista digital SISTEMA, 14 de setembro de 2012.

Retirado do site de Vicenç Navarro.

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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Sobre o/a autor(a)

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).
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