O ano de 1968 tinha sido alucinante em vários continentes e em muitas arenas. Portugal não fora excepção, apesar de todas as limitações à liberdade que são conhecidas e os chamados «católicos progressistas» estavam especialmente activos. Tinham-se multiplicado grupos mais ou menos clandestinos de padres e leigos, cada vez mais politizados e em conflito crescente com a hierarquia da Igreja, as reuniões e os trabalhos de elaboração e expedição de documentos prolongavam-se, em ambientes cheios de fumo pela noite dentro e estava longe de ser raro fazermos directas para os empregos.
Podia enumerar muitas situações, mas limito-me ao caso do Pe. Felicidade Alves por estar directamente ligado ao tema deste texto. Prior da paróquia de Santa Maria de Belém desde 1956, a partir de 1967 as suas intervenções começaram a causar incómodo e, no início de 68, ausentou-se estrategicamente para Paris para prosseguir estudos de Teologia Ecuménica. De visita a Lisboa por ocasião da Páscoa, resolveu fazer uma comunicação ao Conselho Paroquial, na presença de oitenta pessoas, comunicação essa que desencadeou um longo e atribulado processo que iria culminar no seu afastamento da paróquia, na suspensão das funções sacerdotais e, já em 1970, na excomunhão (ou seja, exclusão da própria comunidade eclesial). Tudo isto porque, na comunicação de 19 de Abril, se discutiram muitos problemas que iam da necessidade da abolição da censura ao direito à informação e à discussão da guerra colonial.
Desligado da paróquia, o Pe. Felicidade não parou e ficou a dever-se-lhe a iniciativa do lançamento dos Cadernos GEDOC (Grupos de Estudos e Intercâmbio de Documentação, Informações e Experiências): onze números publicados em 1969 e 1970, não datados para escaparem à obrigação de submissão a censura prévia, e não clandestinos, mas sim assumidos por trinta e um fundadoresi. A ideia era não deixar cair a dinâmica revelada em muitas acções de centenas de pessoas que se tinham associado à polémica do caso de Belém e fazê-lo à luz do dia para permitir encontros e discussões abertas.
Para não matar a iniciativa à partida, os objectivos dos Cadernos foram definidos em termos propositadamente genéricos e relativamente «inocentes»: «estar na linha da vanguarda cristã»; «prestar ouvidos atentos aos apelos dramáticos do mundo de hoje, repensar essas interpelações à luz da mensagem cristã»; «fornecer informação para que os leitores formem uma opinião pessoal esclarecida»; «fomentar intercâmbios de modo a formar uma autêntica cooperativa espiritual».
Mesmo assim, não tardaram as reacções da hierarquia da Igreja. Pouco depois do lançamento do nº 1, o Cardeal Cerejeira dirigiu uma longa comunicação ao clero de Lisboa (24.02.1969) onde afirmou: «Ocorre desde já observar, este Grupo que reclama (mas mal a propósito), “o Concílio não pode ser um logro”, esquece e abandona o mesmo Concílio numa contestação que se processa contra a sua letra e espírito. Quer-se dentro da Igreja, e tudo faz à margem dela, fora da obediência e comunhão com a sua autoridade, divinamente instituída, e até contra ela. (…) É, pois, obrigado pela defesa da unidade do rebanho a nós confiado, que desautorizamos aquele Grupo, organizado à margem da Igreja, mas declarando-se “dentro dela”, embora quebrado o vínculo da unidade com o Bispo, para sem missão pugnar por outra Igreja».
Um dos membros fundadores dos GEDOC era o então cónego Abílio Tavares Cardoso, ex-reitor do Seminário dos Olivais, que respondeu à comunicação do Cardeal declarando, entre outras coisas (17.03.1969): «A contestação que larva no interior da Igreja é para mim, hoje, o argumento mais forte da sua credibilidade. (…) Os graves incómodos decorrentes de continuar a pertencer a um grupo “desautorizado” são parte do normal sofrimento de uma Igreja convidada a “nascer de novo”. Resolvi, portanto, na dor e na esperança, continuar a fazer parte do grupo GEDOC».
Se estas reacções existiram desde o início, ao reler por ordem os onze Cadernos vê-se que, à medida que se foi avançando no tempo, à componente de polémicas relacionadas com a renovação da Igreja se juntou uma atenção crescente orientada para a dimensão política. E terá sido por isso que a PIDE permitiu a publicação de dez números antes de intervir.
Na Torre do Tombo, em processo próprio elaborado por aquela polícia política, há vastíssima documentação sobre o assunto, mas limito-me ao essencial. Foi feita uma rusga à Tipografia Leandro, em Abril de 1970, e apreendidos todos os exemplares que aí se encontravam. Entre Abril e Maio, foram presos Manuel Mourão, o Pe. José da Felicidade Alves e Nuno Teotónio Pereira. Saíram os três em liberdade, sob caução e com termo de identidade e residência, em 25 de Maio. Em 16 de Junho, foi preso o então cónego Abílio Tavares Cardoso que saiu nas mesmas condições dos outros, quatro dias mais tarde. Depois destas prisões, ainda foi publicado um Caderno – o nº 11 – na clandestinidade, por razões óbvias. Mas tornou-se impossível continuar.
Entretanto, começámos a ser chamados para interrogatórios todos ou quase todos os primeiros aderentes do GEDOC e alguns outros – cerca de setenta pessoas no total. Tipicamente, foi-nos perguntado como tínhamos tido conhecimento da existência dos Cadernos, qual o grau de colaboração que mantínhamos com os mesmos, como recebíamos os diferentes números. Foi depois elaborado um processo contra os arguidos que tinham estado presos e que acabaram por ser absolvidos pelo Tribunal Plenário.
Muito mais haveria a dizer, mas o que fica, ao reler agora a colecção dos Cadernos, é que ela retrata bem a profunda crise que se vivia na Igreja, naquela mudança de década do séc. XX – uma grande inquietação e uma dolorosa apreensão quanto a desfechos inevitavelmente próximos. Muitos títulos o mostram: O Concílio terá sido um logro? A contestação na Igreja, A crise do clero, Sacerdotes: de quem? Porquê? Como? Etc., etcii.
Para além da preparação da publicação, houve muitas reuniões dos Grupos de Estudos. Numa delas, que teve lugar em 27 e 28 de Setembro de 1969, participaram setenta e cinco pessoas e foram discutidos Problemas da relação Igreja-Estado em Portugal. Estava-se então em plena preparação para a campanha eleitoral das legislativas de Outubro de 1969, os membros do GEDOC decidiram dar um contributo para um «Debate Nacional» e elaboraram depois do encontro um longo documento onde se propunha, por exemplo, a necessidade de lutar por uma legislação que separasse «radical e absolutamente o foro religioso do foro civil» no domínio do casamento, a abolição «das aulas de Religião e Moral no ensino oficial» e da «Mocidade Portuguesa como movimento único a assumir as iniciativas e actividades não escolares da juventude».
O fim dos Cadernos GEDOC foi mais uma machadada importante, para muitos, nas hostes (ainda) militantes dos tais «católicos progressistas». Os seus protagonistas mais directos só tinham tentado cumprir funções, com profunda convicção e grande generosidade, mas perceberam que, em termos de publicações, só restava lugar para clandestinidade: seis anos de Direito à Informação, entre 1963 e 1969, em 1971, sete cadernos sobre a guerra colonial e sete números do Boletim de Acção Colonial em 1972 e 1973. Muitos foram também aqueles que se se integraram então em organizações de acção política de carácter mais radical.
O que se seguiu? Tudo apreendido, prisões e torturas terríveis de alguns dos protagonistas por diversos motivos. Até… ao «dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio».
Este texto baseia-se num capítulo de Entre as brumas da memória – Os católicos portugueses e a ditadura, Joana Lopes, Âmbar, 2007.
i Lista dos primeiros membros dos GEDOC: Maria Amélia Leite Pinto – Maria Helena Neves – Pe.António Correia – Maria Inês Manarte – Manuel Moita – Pe.Abílio Tavares Cardoso – Pe.João Maria Salvado Ribeiro – Maria Gabriela Ferreira – Luís Gorjão Henriques – Teresa Amado – Pe.Fernando Belo – Pe.José da Felicidade Alves – Margarida Maria Alpoim Aranha – José Martins Avillez – Maria Natália Duarte Silva – Pe.José Monteiro – Pe.António Jorge Martins – José Manuel Galvão Teles – Pe.Fernando Melro – Pe.Alberto Neto Simões Dias – Eduardo Veloso -- Joaquim de Albuquerque Brandão Osório de Castro – Carlos Bettencourt – Almerinda Marques Teixeira – Maria Joana de Menezes Lopes – Isabel Maria Reis da Costa Picoito – Margarida Sousa Lobo – Miguel João Rodrigues Bastos – Nuno Silva Miguel – Maria Lívia Menezes – Carlos Moraes Magro.