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Obrigado, Lorde, por defenderes os direitos humanos dos palestinianos

Para travar a opressão, é preciso começar com um apelo dramático à tomada de consciência da sociedade israelita, que leve à perceção de que há custos a pagar pela negação da liberdade e igualdade a milhões de seres humanos palestinianos. Por Yousef Munayyer.
A cantora neozelandesa Lorde cancelou a sua atuação agendada para 5 de junho de 2018, em Telavive, na sequência dos apelos de ativistas do grupo Boycott, Divestment and Sanctions (Boicote, desinvestimento e sanções – BDS). Foto de Constanza.CH, Wikimedia Commons.

Quando soube que a internacionalmente aclamada cantora, compositora e produtora musical Lorde estava a reconsiderar a decisão de atuar em Israel... tive o bom pressentimento de que iria cancelar o concerto. Este fim-de-semana, foi o que fez. "Recebi um número impressionante de mensagens e cartas e tive muitas discussões com pessoas defendendo vários pontos de vista, e acho que a decisão correcta neste momento é a de cancelar o concerto", disse em comunicado.

Acredito que a história recordará a sua decisão como um passo importante no caminho para a liberdade, a justiça e a igualdade na Palestina/Israel.

Os ativistas pelos direitos dos palestinianos foram rápidos a mostrarem-lhe o seu apoio. Mas nem toda a gente concorda com a decisão de Lorde, e uma vista de olhos sobre os meios de comunicação social revela o início da reação que já começou por parte de apoiantes de Israel. Roseanne Barr chamou Lorde de "fanática", enquanto que outros acusam-na de ter cedido à "pressão" da BDS — uma linguagem curiosa, dado que ela respondeu a uma carta de fãs e decidiu renunciar ao que certamente teria sido um concerto lucrativo.

Os incentivos eram muito fortes para que ela atuasse em Telavive, como o são para todos os artistas que enfrentam a decisão de renunciar a uma oportunidade lucrativa. Qualquer pressão que tenha havido veio apenas da sua própria consciência depois de ter tomado conhecimento, pesado e discutido a questão com cuidado. Lorde também parece ter tomado em consideração os pedidos dos fãs, como a carta aberta de admiradores seus judeus e palestinianos neozelandeses pedindo-lhe que cancelasse o seu concerto, uma carta que vale a pena ler.

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Ainda assim, muitos questionaram a sua decisão. Um dos produtores israelitas do seu concerto ainda encontrou maneira de insultá-la quando ela explicava a sua decisão, dizendo que tinha sido "ingénuo de pensar que uma cantora da sua idade conseguiria lidar com a pressão". É bom lembrar que Lorde tem 21 anos e que na sociedade israelita é-se recrutado aos 18 anos, e considerado perfeitamente capaz de lidar com a responsabilidade de tomar decisões sobre a vida e a morte, armado com metralhadoras pesadas frequentemente apontadas para crianças palestinianas. Não só Lorde é uma adulta plenamente capaz de tomar as suas próprias decisões como tomou a decisão correta e muito mais sensata do que alguns outros artistas que infelizmente não conseguiram responder ao apelo ao boicote.

Penso que todos os artistas deviam tomar a mesma decisão que Lorde. E nunca foi mais urgente para eles fazê-lo do que neste momento. Tomemos um tempo para rever o contexto em que teve lugar a decisão de Lorde. Nos dias e semanas antes desta decisão, o presidente Trump fez a sua declaração sobre Jerusalém. A resposta israelita que se seguiu aos protestos dos palestinianos foi típica da sua brutal ocupação militar.

Vale a pena refletir sobre alguns casos em particular. Tomemos por exemplo o assassinato de Ibrahim Abu Thuraya. Duplamente amputado, Abu Thuraya perdeu as duas pernas num ataque aéreo israelita há dez anos. Na semana passada, foi baleado por um atirador israelita na cabeça enquanto protestava no interior da faixa de Gaza cercada.

Não deveria ser preciso dizer que não há razão alguma para o uso de força letal contra um amputado desarmado. Não deveria ser preciso dizer que o seu assassinato deveria chocar a consciência pública. Mas isso não aconteceu. Como é hábito, a investigação militar israelita não encontrou nenhum delito e a sociedade israelita nem sequer piscou. Alguns até afirmaram que Abu Thuraya era um terrorista; um homem em cadeira de rodas que sustenta a sua família lavando carros, e era conhecido por ter subido a uma torre eléctrica para amarrar no alto uma bandeira da Palestina durante uns protestos.

Agora, tomemos o caso de Ahed Tamimi, também a acontecer enquanto Lorde ponderava a sua decisão. Ahed, uma rapariga de 16 anos da aldeia de Nabi Saleh, pertence a uma família que tem estado na vanguarda dos protestos contra a ocupação israelita. Durante anos, a sua aldeia protestou contra a construção de um colonato israelita ilegal em expansão nas suas terras. Os soldados israelitas, os capangas da ocupação, têm a rotina de usar semanalmente a violência para reprimir os moradores da aldeia. Ahed já viu vários membros da sua família morrerem às mãos desta violenta repressão israelita ao longo dos anos e viu outros serem arrastados para prisões israelitas.

Na semana passada, um vídeo de Ahed a esbofetear um soldado israelita em frente da sua casa tornou-se viral. Pouco antes desse momento filmado, soldados israelitas tinham disparado uma bala revestida de borracha na cara de um dos seus primos mais novos, Mohamed, de 14 anos. A bala foi disparada a uma distância suficiente para partir o maxilar de Mohamed, fazendo o sangue escorrer do seu rosto e resultando numa cirurgia de urgência para a reconstrução do maxilar e coma induzido. Depois de o vídeo de Ahed a bater nos soldados se ter tornado viral, Ahed, o primo e a mãe foram presos e estão detidos, já há dias, sem acusação.

Perante isso, qual foi a resposta na sociedade israelita ao vídeo de uma rapariga que perdeu tanto e colocou a vida à frente de um soldado que podia tê-la tomado num instante? Não foi a de perguntar "Como nos atrevemos?" mas sim "Como se atreve ela!"

O ministro da Defesa de Israel, ele próprio um colono, declarou que "todos os envolvidos, não só a rapariga, mas também os pais e aqueles que os rodeiam não vão escapar ao que merecem". O ministro da Educação israelita, Naftali Bennett, a pessoa responsável pela educação das crianças em Israel, disse que essa criança palestiniana deveria passar o resto dos seus dias na prisão. Esse é o mesmo ministro que disse que o soldado israelita Elor Azaria, que cometeu um assassinato a sangue frio filmado em vídeo, não deveria permanecer "um único dia na prisão". Mas isto não foi o pior de tudo. Michael Oren, um membro do Knesset [parlamento], americano de origem e ex-embaixador nos EUA, questionou se os Tamimis seriam mesmo uma família e focou as roupas americanas suspeitas de Ahed. Aparentemente, os palestinianos que não encaixam claramente nos estereótipos racistas na mente de Oren só podem ser míticos.

A julgar pelas palavras dos seus líderes e da imprensa, os israelitas em geral foram incapazes de ver este momento em Nabi Salehcomo o que ele era: um episódio de uma brutal ocupação militar. Em vez disso, viram uma rapariga desarmada de 16 anos como sendo a agressora e o agente da ocupação fortemente armado, cujo exército mata e prende os membros da sua família e facilita o roubo das suas terras, como, de alguma forma, a vítima. "Quando assisti àquilo, senti-me humilhada, senti-me esmagada", disse Miri Regev, ministra israelita e antiga porta-voz militar, que tratou o episódio de "prejudicial à honra do exército e do Estado de Israel". Pensemos nisso por um momento. Os israelitas, que têm o maior arsenal nuclear per capita do mundo e um dos exércitos mais capazes e poderosos do mundo, que dirigem os seus modernos aviões, tanques e navios contra palestinianos apátridas, foram desonrados, esmagados e humilhados, não por outro exército mas pelas mãos vazias de uma garota de 16 anos.

Coisas como as reações dos israelitas perante Ahed Tamimi ou a sua falta de resposta à morte de Abu Thuraya demonstram como a consciência israelita, quando se trata dos palestinianos que eles controlam, definhou, apodreceu e morreu.

E são momentos como este que demonstram exatamente por que a decisão de Lorde é tão importante e justificada.

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Os líderes israelitas afirmam ao seu povo que as suas políticas e o seu comportamento para com os palestinianos são justificados. Eles são ajudados e incitados nesse empreendimento por uma comunidade internacional que, em vez de sancionar Israel, tem com ele relações comerciais e pelos Estados Unidos que, em vez de responsabilizar Israel pelas suas violações, continua a enviar-lhe uma ajuda de 3,8 mil milhões de dólares ano após ano.

Por outras palavras, é dito à sociedade israelita, tanto internamente como externamente, que a sua brutal opressão dos palestinianos está correta. Para os israelitas acabarem com a opressão dos palestinianos, será preciso começar com um apelo dramático à tomada de consciência da sociedade israelita, que leve à perceção de que há custos a pagar pela negação da liberdade e igualdade a milhões de seres humanos palestinianos. A sociedade civil palestiniana abraçou uma ação económica não-violenta sob a forma de BDS [boicote-desinvestimento-sanções] como tática para transmitir esta mensagem e apelar à solidariedade internacional ao fazê-lo.

A escolha de Lorde de responder a este apelo contribui para enviar a Israel a mensagem de que esta situação não é normal e não pode ser normalizada, e que não é possível continuar a ignorar as injustiças que são cometidas contra os palestinianos. Ela junta-se a uma lista crescente de artistas e performers que tomaram a mesma decisão, e muitos mais seguirão os seus passos.

Tal como no caso da África do Sul, os artistas têm um papel importante a desempenhar na procura da paz e da justiça. E, tal como no caso da África do Sul, alguns dos mesmos argumentos que os defensores do apartheid na África do Sul do usaram sem sucesso contra os esforços BDS na altura estão a ser reciclados hoje para defender as políticas de apartheid de Israel na Cisjordânia. Também esses esforços não terão êxito.

Um desses argumentos usados contra a decisão de Lorde chegou do campo "whataboutista". No Twitter, os adversários foram rápidos em apontar que a cantora está a cancelar o concerto em Israel, mas não na Rússia, também culpada de violações dos direitos humanos, e, portanto, os seus esforços de boicote e os do BDS mais geralmente são hipócritas. Isto também é reciclado da propaganda do regime de apartheid sul-africano. Naquela altura, os defensores antiboicote  apontariam para outros países na África e na Ásia com fracos registos de direitos humanos, tal como os defensores de Israel se envolvem em acusar outros hoje a fim de desviar a responsabilidade pela negação dos direitos dos palestinianos. A verdade é que a África do Sul do apartheid não tinha o pior registo de direitos humanos da história, mas foi o pior violador dos direitos humanos dos negros sul-africanos nativos. Da mesma forma, Israel pode não ser o pior ou o único violador dos direitos humanos no mundo de hoje, mas é o pior violador dos direitos humanos dos palestinianos.

Tácticas como boicotes são específicas do contexto e são implementadas pela sua utilidade. Estas táticas foram desenvolvidas pela sociedade civil palestiniana e cada vez mais pela sociedade civil internacional, porque a superestrutura internacional falhou em responsabilizar Israel pelas suas violações. Ao contrário da Rússia ou de outros Estados como a Coreia do Norte, Myanmar ou outros, onde os EUA e outros países implementaram sanções económicas, Israel recebe milhares de milhões de dólares em armas de Washington e recebe proteção incondicional nas Nações Unidas. Dito isto, sempre que um povo oprimido em qualquer lugar do mundo organizar um apelo à solidariedade internacional contra os seus opressores que desprezam o direito internacional e encontram, no entanto, uma maneira de fugir a qualquer responsabilização, como sanções ou embargos de armas, personalidades da cultura devem mostrar-se atentas ao seu apelo como fizeram pelos sul-africanos e como deveriam fazer pelos palestinianos.

Um dia, liberdade, justiça e igualdade reinarão finalmente para israelitas e palestinianos da mesma maneira. Então poderemos todos cantar e dançar sem um pano de fundo de racismo, discriminação e brutalidade. Sonho com o primeiro concerto na minha terra natal depois da liberdade, quando todos os artistas que boicotaram puderem finalmente voltar e actuar. Estou ansioso por ver lá a Lorde como parte de uma linha histórica ao lado de Roger Waters, Lauryn Hill e muitos, muitos mais.

Valerá a pena esperar por esse concerto da liberdade precisamente porque a liberdade é algo por que vale a pena lutar.

26 de dezembro de 2017


*Yousef Munayyer, analista político e escritor, é diretor executivo da Campanha pelos Direitos dos Palestinianos nos Estados Unidos.

Publicado no blogue do Comité de Solidariedade com a Palestina
Traduzido da versão inglesa publicada em: https://forward.com/opinion/390845/thank-you-lorde-for-standing-up-for-palestinian-human-rights/


 

 

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