“Não poderíamos ter obtido a liberdade e uma paz justa na África do Sul sem a ajuda dos povos do mundo inteiro que, com acções não-violentas como os boicotes e os desinvestimentos, encorajaram os seus governos e o mundo dos negócios a renunciarem a anos de apoio ao regime de apartheid”. Assim discursava Desmond Tutu perante os estudantes da universidade americana de Berkeley.
Pois foi precisamente na campanha internacional de boicote ao regime racista sul-africano, nos anos 1980-90, que se inspiraram os palestinianos em 2005, ao lançarem ao mundo um apelo de solidariedade para com a sua luta contra a ocupação. Uma coligação de dezenas de organizações de trabalhadores, mulheres, estudantes e outras representantes do conjunto da sociedade palestiniana, dava assim origem à campanha conhecida como BDS – de Boicote, Desinvestimento e Sanções. A campanha declarava como objectivos principais os de pressionar Israel a cumprir o direito internacional, a conceder direitos iguais aos palestinianos israelitas e a reconhecer o direito de retorno dos palestinianos expulsos pelos colonos desde 1948.
A “arma táctica” do boicote
Esta pressão só pode ser eficaz se prejudicar a economia e a imagem de Israel. Por isso, os seus alvos são o poder político e militar, as empresas e todas as pessoas e organizações que defendem ou se comprometem com a política de ocupação. A BDS não pretende promover comportamentos individuais de boicote aos produtos israelitas que chegam às lojas da Europa ou do resto do mundo. A preocupação é antes de organizar campanhas perseverantes e contínuas, focadas em alvos bem definidos, susceptíveis de terem bons resultados. Parafraseando Nelson Mandela, o boicote é “uma arma táctica” e não uma questão de princípio.
Uma dessas campanhas bem sucedidas, foi sem dúvida aquela que fez perder contratos milionários à multinacional Veolia, sobretudo na Suécia, em França e no Reino Unido, pelo seu envolvimento na construção da linha de eléctrico que une os colonatos construídos à volta de Jerusalém. Ao fim de sete anos de pressão BDS e de 20.000 milhões de dólares em concursos e contratos perdidos, a Veolia acabou por vender todos os seus negócios em Israel em 2015. Mais recentemente, outra multinacional francesa, Orange, retirou-se de Israel, rompendo a sua colaboração com a empresa israelita Partner Communications, devido à pressão dos activistas BDS.
Não são poucos os fundos de pensões – em particular suecos, noruegueses e holandeses – que desinvestiram de empresas israelitas como Elbit Systems, Africa Israel Investments, Danya Cebus e G4S, ou de bancos israelitas, todos eles implicados na política de apartheid ou na construção de colonatos. Os exemplos são numerosos dos êxitos conseguidos em campanhas pelo desinvestimento na economia israelita. A insuspeita Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento atribuiu à campanha BDS grande parte da responsabilidade pela queda de quase 50% do investimento estrangeiro em Israel em 2014, em relação ao de 2013.
Mas um dos aspectos da BDS com maior impacto e que mais tem inquietado o poder israelita é sem dúvida o boicote académico e cultural. Em Outubro e Novembro de 2015, mais de 600 académicos de renome de várias universidades britânicas assinaram uma declaração de adesão ao boicote contra Israel e de recusa de relações com universidades israelitas, bem conhecidas pelo seu apoio e colaboração com o governo, as polícias e o exército israelitas na política de limpeza étnica na Palestina. Mais de 120 académicos irlandeses publicaram logo de seguida uma carta semelhante de adesão ao boicote académico institucional contra Israel. No campo cultural, inúmeros músicos, entre os quais se destacam Roger Waters, Elvis Costello, Carlos Santana, mas também muitas centenas de outros; cineastas, entre os quais Ken Loach, Mike Leigh e Jean-Luc Godard, escritores e intelectuais, entre os quais Noam Chomsky, Naomi Klein, Alice Walker, Henning Mankell, Robert Fisk, e tantos outros, juntaram-se ao boicote, dando um impulso extraordinário a este movimento que percorre todos os continentes desde a América à Índia.
Uma fatia generosa do orçamento de Estado é todos os anos destinada ao combate à BDS internacional e à propaganda de uma imagem de Israel enquanto país moderno, ecológico, tolerante em relação às minorias LGBT
Como diz Eyal Sivan, cineasta israelita, apoiante do boicote cultural, "Israel já não quer convencer, mas tornar-se atractivo". Para além do enorme aparelho propagandístico colocado ao serviço da campanha Brand Israel, preocupada em vender ao mundo a imagem simpática da "única democracia do Médio Oriente", o Estado sionista alicia artistas e intelectuais a visitarem e actuarem em Israel com cachets milionários, "irrecusáveis" para muitos deles. Mas uma minoria cada vez maior tem a dignidade de os recusar. Num artigo publicado em 23 de Fevereiro, a RTP Notícias dava conta da recusa por parte dos actores nomeados para os óscares de uma oferta israelita em 2016 que incluía uma viagem a Israel no valor de 55 mil dólares.
Portugal não tem ficado alheado da campanha BDS. A primeira grande acção fez-se em 2010, com um conjunto de organizações a pressionarem a EPAL para que cancelasse um acordo de cooperação com a empresa de exploração e distribuição de água israelita Mekorot, o que acabou por acontecer.
Também em 2010, uma acção conjunta do Comité de Solidariedade com a Palestina e do grupo Panteras Rosa, com a participação de outras organizações, fez uma acção contra a aceitação de um apoio israelita por parte do Festival Queer. Um dos realizadores, o canadiano John Greyson, retirou os seus filmes do festival ao tomar conhecimento do apoio israelita e obrigou os organizadores a lerem uma declaração sua em público, explicando as razões da sua retirada.
Ao longo destes anos, muitos músicos portugueses, entre os quais Dulce Pontes, Ana Moura, Sara Tavares e António Zambujo, e outros profissionais como o arquitecto Souto Moura ou o chef Avillez, foram contactados pelo Comité de Solidariedade com a Palestina para que se juntassem à campanha de boicote cultural e cancelassem a sua participação em eventos organizados ou financiados pelo Estado israelita. Apenas Dulce Pontes e Sara Tavares cancelaram os seus espéctaculos em Telavive, sem no entanto terem declarado publicamente os motivos da sua decisão.
Se as formas de resistência que têm usado os palestinianos contra a opressão são muitas e variadas, a forma de solidariedade e de apoio a essa resistência mais eficaz ao nosso alcance, aqui na Europa, é sem dúvida a de forçar o isolamento internacional de Israel através da BDS, com os mesmos métodos que ajudaram ao isolamento da África do Sul e ao fim do seu regime de apartheid. Então poderemos orgulhar-nos de ter contribuído para o fim da bárbara opressão israelita exercida sobre o povo palestiniano, cujo início foi decretado há exactamente cem anos com a Declaração Balfour.
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Elsa Sertório é membro do Comité de Solidariedade com a Palestina