O problema com a IA é o problema com o capitalismo

02 de abril 2023 - 11:15

O medo dos trabalhadores da nova tecnologia de inteligência artificial faz sentido. Ela tem potencial para eliminar empregos. Mas se não vivêssemos sob o capitalismo, a IA poderia ser usada para nos libertar do trabalho penoso, em vez de nos lançar na pobreza. Por Nathan J. Robinson.

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Imagem gerada pelo Dall-E a partir do prompt: humanoid robot creating art on a canvas with many colors in art noveau style.
Imagem gerada pelo Dall-E a partir do prompt: humanoid robot creating art on a canvas with many colors in art noveau style.
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Ultimamente, tenho experimentado programas de geração de imagens de inteligência artificial. O poder deles é surpreendente. Não são apenas bons no aspeto técnico da criação de “arte”, mas parecem ser genuinamente criativos, produzindo trabalhos que não apenas correspondem à competência de um artista altamente qualificado, mas também podem ser surpreendentes, interessantes e até bonitos.

Claro, tudo ainda depende do humano que entra no prompt para dizer à IA o que fazer, mas ninguém que veja estas coisas em ação pode duvidar de que estamos a entrar numa nova era muito estranha, na qual muito do que poderia ser feito manualmente será em breve automatizado.

Muitos artistas estão revoltados com os novos programas de IA – e com razão. Alguns estão furiosos porque os seus trabalhos foram usados ​​como dados de treino sem a sua permissão. Outros temem que os clientes empresariais simplesmente recorram às máquinas para fazer o trabalho que costumava ser feito por mãos humanas.

A inteligência artificial está a fazer com que o custo da geração de imagens caia a pique. Numa economia capitalista, onde todos dependem para sobreviver do valor do seu trabalho no mercado, uma queda maciça no valor de uma capacidade causará amplo sofrimento.

A arte está longe de ser o único domínio prestes a ser transformado pela IA generativa. Advogados, programadores, pesquisadores de mercado, agentes de atendimento ao cliente, analistas financeiros e muitas outras profissões correm o risco de ver grande parte do seu trabalho automatizado num futuro próximo.

O extremamente bem-sucedido ChatGPT da OpenAI não apenas escreve más piadas e poesia um pouco melhor, mas também ajuda a escrever trabalhos de investigação publicados em prestigiadas revistas científicas. Os modelos também estão a ficar melhores. O recém-lançado GPT4 já está a ser usado para escrever livros inteiros.

Os poderes desta nova tecnologia são assustadores. Já há vigaristas a usarem a capacidade de gerar “deepfakes” realistas para enganar as pessoas e fazê-las pensar que os seus familiares estão a pedir dinheiro. A desinformação de aparência confiável pode ser agora produzida à velocidade da luz, um desenvolvimento especialmente infeliz num momento em que temos falta de meios de comunicação social confiáveis.

Embora Noam Chomsky, Gary Marcus, Erik J. Larson e outros tenham apresentado argumentos convincentes de que o medo de uma “superinteligência” artificial a chegar a curto prazo é exagerado, existem todos os tipos de maneiras pelas quais a tecnologia, tal como já existe, pode causar estragos na sociedade.

As pessoas estão certas em ficar apavoradas com as disrupções que a IA pode causar nas nossas vidas, mas quando pensamos sobre o que realmente são essas disrupções, fica claro que o principal problema não é o desenvolvimento da tecnologia em si. Introduzida sob um sistema económico e político diferente, poucos dos riscos seriam tão graves.

O problema é que a nova AI generativa está a ser introduzida numa sociedade capitalista que está mal equipada para lidar com ela.

Os artistas, por exemplo, não têm medo da IA ​​em grande parte porque temam que uma máquina seja melhor a criar arte. Os xadrezistas não pararam de jogar xadrez quando o programa de computador Deep Blue derrotou o grande mestre Garry Kasparov. E se a arte é feita para prazer e auto-expressão, não importa o que os outros possam fazer.

O problema é que, no nosso mundo, os artistas têm que viver da sua arte vendendo-a, e por isso têm que pensar no seu valor de mercado. Estamos a introduzir uma tecnologia que pode destruir completamente o sustento das pessoas e, num sistema económico de livre mercado, se as tuas capacidades diminuírem de valor, estás tramado.

É interessante falarmos sobre empregos “em risco” de serem automatizados. Sob um sistema económico socialista, automatizar muitos empregos seria uma coisa boa: outro passo no caminho para um mundo onde os robôs fazem o trabalho duro e todos desfrutam da abundância. Deveríamos ficar entusiasmados se os documentos legais pudessem ser escritos por um computador.

Quem quer passar o dia todo a escrever contratos? Não podemos ficar entusiasmados com isso, porque vivemos sob o capitalismo e sabemos que, se o trabalho paralegal for automatizado, mais de trezentas mil pessoas, só nos EUA, enfrentarão a perspetiva de tentar encontrar outro trabalho sabendo que os seus anos de experiência e formação são economicamente inúteis.

O ludismo é uma abordagem racional à automação numa sociedade capitalista. Se as máquinas ameaçarem o teu trabalho, luta contra as máquinas. Mesmo um reacionário como Tucker Carlson disse que os políticos deveriam intervir para acabar com a automação, por exemplo, proibindo camiões autónomos, porque ter milhões de pessoas desempregadas causaria muita perturbação social. Mas essa solução é absurda: por que teríamos pessoas a fazer trabalho desnecessário que poderia ser feito por robôs? Os camionistas têm a saúde prejudicada e não conseguem ver suas famílias por longos períodos. Mesmo quando uma máquina pode fazer o trabalho duro, vamos obrigar as pessoas a fazê-lo?

Podemos expandir nossa imaginação muito além da de Carlson. E se descobrir que o seu trabalho pode ser automatizado fosse emocionante? E se isso significasse que um trabalhador poderia ser pago enquanto o robô fazia o trabalho?

E se fosse assim: uma vez que o trabalho para o qual te formaste foi automatizado, recebes uma pensão de automação e podes descontrair para o resto da tua vida. Todos estariam a rezar para que o seu trabalho fosse o próximo da lista.

Não devemos temer a IA. Francamente, eu adoraria se uma máquina pudesse editar artigos de revistas para mim e eu pudesse ficar sentado na praia, mas tenho medo disso porque ganho a vida a editar artigos de revista e preciso manter um teto sobre a minha cabeça. Se alguém pudesse fazer e vender uma revista rival igualmente boa quase de graça, eu seria incapaz de me sustentar com o que faço. O mesmo se aplica a todos os que trabalham para viver no atual sistema económico. Têm de ficar apavorados com a automação porque o valor do trabalho é muito importante e grandes flutuações no seu valor colocam em perigo todas as esperanças e sonhos de alguém.

A maioria dos outros problemas que a IA poderia causar realmente resume-se a problemas de como o poder e a riqueza são distribuídos na nossa sociedade existente. Como o mundo está organizado em estados-nação militarizados, temos que nos preocupar que a tecnologia de IA seja usada em novas super-armas aterrorizantes.

Como permitimos que golpes e fraudes florescessem na nossa economia do faroeste, veremos muitas pessoas ficarem ricas usando a IA para atacar consumidores desafortunados. A motivação do lucro já é socialmente destrutiva, mas a IA tornará isso muito pior, porque permitirá que as empresas descubram como enganar e explorar as pessoas com mais eficiência.

As novas tecnologias estão a ser desenvolvidas por grandes empresas privadas que não têm nenhum incentivo para garantir que um benefício para elas seja um benefício para todos.

Precisamos ser claros sobre a fonte dos problemas com a IA. Eles são reais e vão acelerar a crise que os socialistas se dedicam a ajudar a humanidade a resolver, mas o problema não é a tecnologia em si. A tecnologia deveria ser uma ferramenta de libertação. A menos que transformemos o sistema económico, no entanto, esta será uma ferramenta para uma maior exploração e predação.


Nathan J. Robinson é o editor da revista Current Affairs.

Texto publicado na Jacobin Brasil. Traduzido por Sofia Schurig a partir da versão publicada na Jacobin. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.