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Ultimamente, tenho experimentado programas de geração de imagens de inteligência artificial. O poder deles é surpreendente. Não são apenas bons no aspeto técnico da criação de “arte”, mas parecem ser genuinamente criativos, produzindo trabalhos que não apenas correspondem à competência de um artista altamente qualificado, mas também podem ser surpreendentes, interessantes e até bonitos.
Claro, tudo ainda depende do humano que entra no prompt para dizer à IA o que fazer, mas ninguém que veja estas coisas em ação pode duvidar de que estamos a entrar numa nova era muito estranha, na qual muito do que poderia ser feito manualmente será em breve automatizado.
Muitos artistas estão revoltados com os novos programas de IA – e com razão. Alguns estão furiosos porque os seus trabalhos foram usados como dados de treino sem a sua permissão. Outros temem que os clientes empresariais simplesmente recorram às máquinas para fazer o trabalho que costumava ser feito por mãos humanas.
A inteligência artificial está a fazer com que o custo da geração de imagens caia a pique. Numa economia capitalista, onde todos dependem para sobreviver do valor do seu trabalho no mercado, uma queda maciça no valor de uma capacidade causará amplo sofrimento.
A arte está longe de ser o único domínio prestes a ser transformado pela IA generativa. Advogados, programadores, pesquisadores de mercado, agentes de atendimento ao cliente, analistas financeiros e muitas outras profissões correm o risco de ver grande parte do seu trabalho automatizado num futuro próximo.
O extremamente bem-sucedido ChatGPT da OpenAI não apenas escreve más piadas e poesia um pouco melhor, mas também ajuda a escrever trabalhos de investigação publicados em prestigiadas revistas científicas. Os modelos também estão a ficar melhores. O recém-lançado GPT4 já está a ser usado para escrever livros inteiros.
Os poderes desta nova tecnologia são assustadores. Já há vigaristas a usarem a capacidade de gerar “deepfakes” realistas para enganar as pessoas e fazê-las pensar que os seus familiares estão a pedir dinheiro. A desinformação de aparência confiável pode ser agora produzida à velocidade da luz, um desenvolvimento especialmente infeliz num momento em que temos falta de meios de comunicação social confiáveis.
Embora Noam Chomsky, Gary Marcus, Erik J. Larson e outros tenham apresentado argumentos convincentes de que o medo de uma “superinteligência” artificial a chegar a curto prazo é exagerado, existem todos os tipos de maneiras pelas quais a tecnologia, tal como já existe, pode causar estragos na sociedade.
As pessoas estão certas em ficar apavoradas com as disrupções que a IA pode causar nas nossas vidas, mas quando pensamos sobre o que realmente são essas disrupções, fica claro que o principal problema não é o desenvolvimento da tecnologia em si. Introduzida sob um sistema económico e político diferente, poucos dos riscos seriam tão graves.
O problema é que a nova AI generativa está a ser introduzida numa sociedade capitalista que está mal equipada para lidar com ela.
Os artistas, por exemplo, não têm medo da IA em grande parte porque temam que uma máquina seja melhor a criar arte. Os xadrezistas não pararam de jogar xadrez quando o programa de computador Deep Blue derrotou o grande mestre Garry Kasparov. E se a arte é feita para prazer e auto-expressão, não importa o que os outros possam fazer.
O problema é que, no nosso mundo, os artistas têm que viver da sua arte vendendo-a, e por isso têm que pensar no seu valor de mercado. Estamos a introduzir uma tecnologia que pode destruir completamente o sustento das pessoas e, num sistema económico de livre mercado, se as tuas capacidades diminuírem de valor, estás tramado.
É interessante falarmos sobre empregos “em risco” de serem automatizados. Sob um sistema económico socialista, automatizar muitos empregos seria uma coisa boa: outro passo no caminho para um mundo onde os robôs fazem o trabalho duro e todos desfrutam da abundância. Deveríamos ficar entusiasmados se os documentos legais pudessem ser escritos por um computador.
Quem quer passar o dia todo a escrever contratos? Não podemos ficar entusiasmados com isso, porque vivemos sob o capitalismo e sabemos que, se o trabalho paralegal for automatizado, mais de trezentas mil pessoas, só nos EUA, enfrentarão a perspetiva de tentar encontrar outro trabalho sabendo que os seus anos de experiência e formação são economicamente inúteis.
O ludismo é uma abordagem racional à automação numa sociedade capitalista. Se as máquinas ameaçarem o teu trabalho, luta contra as máquinas. Mesmo um reacionário como Tucker Carlson disse que os políticos deveriam intervir para acabar com a automação, por exemplo, proibindo camiões autónomos, porque ter milhões de pessoas desempregadas causaria muita perturbação social. Mas essa solução é absurda: por que teríamos pessoas a fazer trabalho desnecessário que poderia ser feito por robôs? Os camionistas têm a saúde prejudicada e não conseguem ver suas famílias por longos períodos. Mesmo quando uma máquina pode fazer o trabalho duro, vamos obrigar as pessoas a fazê-lo?
Podemos expandir nossa imaginação muito além da de Carlson. E se descobrir que o seu trabalho pode ser automatizado fosse emocionante? E se isso significasse que um trabalhador poderia ser pago enquanto o robô fazia o trabalho?
E se fosse assim: uma vez que o trabalho para o qual te formaste foi automatizado, recebes uma pensão de automação e podes descontrair para o resto da tua vida. Todos estariam a rezar para que o seu trabalho fosse o próximo da lista.
Não devemos temer a IA. Francamente, eu adoraria se uma máquina pudesse editar artigos de revistas para mim e eu pudesse ficar sentado na praia, mas tenho medo disso porque ganho a vida a editar artigos de revista e preciso manter um teto sobre a minha cabeça. Se alguém pudesse fazer e vender uma revista rival igualmente boa quase de graça, eu seria incapaz de me sustentar com o que faço. O mesmo se aplica a todos os que trabalham para viver no atual sistema económico. Têm de ficar apavorados com a automação porque o valor do trabalho é muito importante e grandes flutuações no seu valor colocam em perigo todas as esperanças e sonhos de alguém.
A maioria dos outros problemas que a IA poderia causar realmente resume-se a problemas de como o poder e a riqueza são distribuídos na nossa sociedade existente. Como o mundo está organizado em estados-nação militarizados, temos que nos preocupar que a tecnologia de IA seja usada em novas super-armas aterrorizantes.
Como permitimos que golpes e fraudes florescessem na nossa economia do faroeste, veremos muitas pessoas ficarem ricas usando a IA para atacar consumidores desafortunados. A motivação do lucro já é socialmente destrutiva, mas a IA tornará isso muito pior, porque permitirá que as empresas descubram como enganar e explorar as pessoas com mais eficiência.
As novas tecnologias estão a ser desenvolvidas por grandes empresas privadas que não têm nenhum incentivo para garantir que um benefício para elas seja um benefício para todos.
Precisamos ser claros sobre a fonte dos problemas com a IA. Eles são reais e vão acelerar a crise que os socialistas se dedicam a ajudar a humanidade a resolver, mas o problema não é a tecnologia em si. A tecnologia deveria ser uma ferramenta de libertação. A menos que transformemos o sistema económico, no entanto, esta será uma ferramenta para uma maior exploração e predação.
Nathan J. Robinson é o editor da revista Current Affairs.
Texto publicado na Jacobin Brasil. Traduzido por Sofia Schurig a partir da versão publicada na Jacobin. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.