Este artigo explora o movimento da neurodiversidade e ideias já existentes, ao mesmo tempo em que propõe um modelo de organização para melhor representar pessoas neurodivergentes, mulheres, pessoas LGBTQ+, não binárias e outras comunidades oprimidas dentro dos movimentos socialistas e de esquerda.
Como ponto de partida, neurodivergente refere-se a indivíduos cujo funcionamento neurocognitivo difere do que os padrões sociais dominantes definem como “normal”. Isto inclui condições como autismo, TDAH, TOC, dispraxia e doença de Parkinson, entre outras. [1]
O ativismo assume muitas formas, influenciado pelas experiências e contextos de vida. Para mim, estar em atividade tem frequentemente significado lidar com ambientes sensoriais desconfortáveis ou dolorosos, aprender papéis ativistas e outras capacidades, adaptar-me a formas desafiadoras de aprendizagem e assumir encargos emocionais adicionais para lidar com interações sociais e hierarquias.
Embora o ativismo frequentemente junte pessoas marginalizadas, ele também implica sacrifícios. Permanecer em silêncio sobre dificuldades pessoais, investir muito tempo e esforço emocional e sobrecarregar-se para sustentar campanhas frequentemente recai sobre um pequeno grupo de ativistas dedicados. Por vezes, os espaços ativistas são influenciados por formas tradicionais de organização, incluindo estruturas hierárquicas de comando e estilos de liderança autoritários enraizados em normas masculinas tradicionais de dominação, controlo e, às vezes, oportunismo político.
Contudo, os aspetos pessoais, organizacionais e políticos do ativismo estão profundamente interligados, devem ser discutidos em conjunto e requerem esforços coletivos para transformar a maneira como nos organizamos.
“Não pareces autista”: desmascarar estereótipos
Sou autista com um diagnóstico formal, que é a principal lente pela qual abordo este artigo, juntamente com minhas experiências como mulher a viver sob o capitalismo. Reconheço os meus privilégios e que minha perspetiva é moldada por uma visão ocidental. Embora eu não fale por todas as pessoas autistas ou neurodivergentes, nem por todas as mulheres, espero contribuir a este debate mais amplo.
É também importante reconhecer a validade das pessoas autistas sem diagnóstico. Muitas enfrentam barreiras como o preconceito dentro do sistema médico, limitações financeiras e acesso restrito a serviços. Esses desafios são ainda maiores para pessoas de origens marginalizadas. Pessoas autistas que buscam cuidados de afirmação de gênero enfrentam dificuldades adicionais ao ter um diagnóstico, e muitas mulheres, pessoas trans e não binárias são diagnosticadas apenas tardiamente na vida devido a critérios diagnósticos ultrapassados e estigmas culturais.
Historicamente, as diretrizes de diagnóstico do autismo foram influenciadas por estereótipos centrados nos homens, levando muitas pessoas a não serem diagnosticadas ou a receberem diagnósticos errados com base em género, raça ou classe. As investigações iniciais de Hans Asperger – cuja cumplicidade com o regime nazi foi exposta – descreveram a síndrome (hoje parte do espectro autista) como uma condição que afetava “meninos inteligentes, porém problemáticos”, de origens brancas e privilegiadas. Esta perspetiva estreita excluiu mulheres, pessoas não binárias e pessoas negras dos critérios diagnósticos iniciais, reforçando a teoria do “cérebro masculino”. Até recentemente, a proporção de diagnósticos entre homens e mulheres era de aproximadamente quatro para um. No entanto, esta disparidade está a mudar, e hoje sabemos que o autismo pode se manifestar de formas diversas entre as pessoas. [2]
Estereótipos, como a crença de que pessoas autistas não têm empatia, têm voz monótona e estão concentradas em áreas técnicas, são prejudiciais e contribuem para equívocos. Mesmo aqueles que demonstram traços tidos como “masculinos” podem ser ignorados durante o diagnóstico. O livro Unmasking Autism, de Devon Price, dá voz a uma variedade de experiências, discute o impacto de mascarar traços autistas e destaca o capacitismo enfrentado por quem se assume autista.
Investigações também indicam uma conexão entre autismo e ser LGBTQ+. Ambos os grupos compartilham um histórico de terem sido sujeitos a práticas prejudiciais, incluindo terapias comportamentais como a ABA (Análise do Comportamento Aplicada) e a terapia de conversão gay, ambas desenvolvidas por Ole Ivar Lovaas, com efeitos psicológicos a longo prazo. [3]
Além disso, rótulos como “alta funcionalidade” e “baixa funcionalidade” simplificam demais as experiências das pessoas autistas. O “funcionamento”, frequentemente definido por padrões capitalistas de normalidade, geralmente significa parecer uma pessoa não autista, como manter um emprego, mesmo que se enfrente dificuldades com estímulos sensoriais, funções executivas ou saúde mental devido à necessidade de mascarar. O termo “baixa funcionalidade” pode perpetuar o estigma e o isolamento, fazendo com que as necessidades e capacidades de pessoas autistas sejam negligenciadas.
Alienação e Saúde Mental
A teoria da alienação de Karl Marx descreve como as pessoas se tornam alienadas do seu trabalho, dos produtos que produzem, de outros trabalhadores e de si mesmas sob o capitalismo. Num mercado competitivo, valoriza-se o lucro e o crescimento contínuo, em vez do bem-estar coletivo. Isso inclui a natureza, os ambientes sensoriais, exigências no trabalho e os sistemas de cuidado e apoio necessários.
O impacto dessas pressões é especialmente evidente nos desafios de saúde mental enfrentados por pessoas autistas. Investigações mostram que pessoas autistas têm risco significativamente maior de suicídio e auto-mutilação. Um estudo apontou que isso pode ser resultado da necessidade de mascarar traços autistas, ajuda inadequada e sentimentos internalizados de ser um fardo, entre outros fatores. Também há uma falta significativa de estudos sobre saúde mental nas interseções entre autismo, identidade não binária, LGBTQ+ e racial/étnica. No entanto, está bem documentado que pessoas autistas e LGBTQ+ enfrentam taxas desproporcionalmente altas de problemas de saúde mental e risco de suicídio. [4]
O sentimento de alienação também se estende ao mundo do trabalho. A sociedade prioriza o lucro em detrimento do bem-estar, valorizando as pessoas com base na sua produtividade. Aqueles que cumprem os padrões do “trabalhador produtivo” são explorados pelo seu trabalho excedente – o valor que geram além do que recebem. Por outro lado, pessoas que não conseguem cumprir esses padrões devido à deficiência, doença, saúde mental ou outros motivos são rotuladas como fardos e relegadas a “população excedente”. O Estado cria instituições para decidir quem é “merecedor” ou “não merecedor”, e os meios de comunicação social reforçam a narrativa estatal de que estas pessoas estão a tentar explorar o sistema. [5]
Atualmente, adultos autistas enfrentam taxas extremamente altas de desemprego. Na Irlanda, apenas 16% das pessoas autistas têm emprego a tempo integral e 32% estão em algum tipo de trabalho remunerado. [6] Janine Booth, ativista sindical autista, explora a experiência de trabalhadores autistas no seu livro Autism Equality in the Workplace. [7] Booth destaca que o foco não deve ser mudar as pessoas autistas para se encaixarem nos ambientes de trabalho mas sim transformar os locais de trabalho e organizar para dar voz às pessoas autistas.
O objetivo não deve ser fazer com que pessoas autistas se adaptem melhor a sistemas feitos para explorá-las. Precisamos transformar os locais de trabalho e construir um ativismo sindical de base que dê voz às pessoas autistas e demais trabalhadores com deficiência. Junto a isso, precisamos de sistemas de cuidado e apoio que beneficiem a todas e todos, baseados na solidariedade e não no lucro, centrados no cuidado com as pessoas e o planeta, e não na exploração.
Movimento da Neurodiversidade
O paradigma da patologia afirma que existe uma única forma “normal” de funcionamento cerebral, em vez de reconhecer a neurodivergência como uma parte natural e saudável da diversidade humana.
O termo “neurodivergente” foi cunhado por Kassiane Asasumasu em 2000, enquanto o conceito de “neurodiversidade”, referindo-se à variação no funcionamento neurocognitivo, foi criado pelo grupo autista ‘InLv’ em 1996. A ideia mais ampla da diversidade neurológica já era discutida em muitos espaços autistas durante os anos 1990, sem um “dono” único. [8] O movimento neurodivergente ganhou força com a Internet, que permitiu que pessoas autistas se conectassem, compartilhassem experiências e desafiassem as narrativas patologizantes sobre o funcionamento neurológico.
Nick Walker publicou o ensaio Throw Away the Master’s Tools em 2012. Walker define o paradigma da patologia como a crença de que existe uma única maneira “normal” de estrutura e funcionamento do cérebro, e que qualquer desvio disso é errado. Em contraste, o paradigma da neurodiversidade vê a neurodivergência como parte natural e saudável da diversidade humana, assim como variações de etnia ou género. Walker argumenta que não há uma mente “normal” ou “correta”, e que as dinâmicas sociais em torno da neurodiversidade são similares a outras formas de desigualdade social. Esta mudança de paradigma precisa acontecer tanto na consciência individual quanto na cultura mais ampla. [9]
Mais recentemente, o livro Empire of Normality, de Robert Chapman, oferece uma análise marxista profunda do desenvolvimento do “Império da Normalidade” junto com o crescimento do capitalismo.
Chapman examina como os entendimentos predominantes sobre normalidade e neurodivergência na sociedade são moldados pelas relações materiais em constante mudança do capitalismo. Analisa as opressões interseccionais de género, raça e classe, colocando a neurodivergência no centro. Um dos seus insights é que “já que o paradigma da patologia e a forma como ele naturaliza conceções cada vez mais restritas de normalidade cresceram justamente para refletir as necessidades da economia capitalista, essas condições materiais precisam ser mudadas e não apenas o nosso pensamento”. Isto exige uma mudança que vai para além da mera mudança de atitudes e pensamentos, mas uma mudança nas “estruturas mais profundas da sociedade”. [10]
Unidade no Cuidado Coletivo e na Ação
Podemos buscar inspiração no movimento da neurodiversidade para reconhecer o valor de todas as pessoas, independentemente do seu funcionamento neurocognitivo. Como diz Chapman, “são necessários todos os tipos de mentes para que a sociedade funcione” – e eu estendo isso às organizações ativistas, especialmente socialistas e anticapitalistas. Também sou influenciada pelo artigo de Penny Duggan sobre organização feminista. [11]
Tipicamente, a organização coletiva é muito discutida em espaços não hierárquicos, menos em organizações com liderança centralizada. No entanto, há problemas na falta de estrutura, como destacado em The Tyranny of Structurelessness. [12]
Apresento uma definição de organização coletiva para fomentar o debate em espaços ativistas. Quem está marginalizado frequentemente questiona o funcionamento interno, enquanto quem está no poder pode considerar essas preocupações como distrações das lutas “reais” ou crises imediatas.
Definição
Organização coletiva envolve ativistas reunindo-se numa plataforma política comum para reconhecer e valorizar diferentes mentes, origens e experiências que influenciam estratégias e intervenções nas lutas. Nas reuniões, somos todos iguais, e debater ideias não é apenas um processo político, mas ajuda a construir estratégias e fortalecer a organização a longo prazo.
Os espaços e organizações ativistas podem reproduzir ideologias e dinâmicas de poder da sociedade. É essencial refletir e confrontar isso nas atividades do dia a dia, incluindo questões como comunicação, acesso ao conhecimento, capital social, organização (planeamento, formato de reuniões, avisos prévios, procedimentos), acessibilidade e preconceitos inconscientes de género, deficiência ou outras opressões. Remover barreiras e empoderar vozes silenciadas deve ser incentivado e facilitado.
As tarefas devem ser distribuídas de forma justa, considerando capacidades diferentes devido a circunstâncias pessoais, cuidados ou deficiências. Diferentes necessidades de aprendizagem devem ser apoiadas como parte do processo coletivo.
A liderança não deve ser uma estrutura de comando de cima para baixo. Isto também se aplica ao trabalho comunitário mais amplo, onde há desigualdade de poder entre ativistas experientes e as comunidades. A liderança deve evitar monopólios de decisão e resistir ao tokenismo ou estereótipos sobre ativistas.
A liderança, individual ou coletiva, deve ser responsável, transparente e informada pelas experiências e perceções dos ativistas e das pessoas nas lutas. Fóruns estruturados de balanço, debate e reflexão devem fazer parte de uma organização democrática e viva. O objetivo não é silenciar vozes minoritárias mas construir liderança real nas organizações e comunidades.
O cuidado com ativistas não é uma responsabilidade individual mas coletiva. Seja em relação à saúde mental, cuidados infantis em eventos, acessibilidade ou outras barreiras, devemos agir com solidariedade. Devemos reconhecer que o pessoal é sempre político e que há limites que devem ser respeitados.
A prática do cuidado coletivo deve substituir a linguagem e a tradição do sacrifício burocrático. Isto deve-se refletir nas estruturas, na comunicação, no apoio a ativistas e na abertura para métodos criativos de organização.
Considerações Finais
Para mim, a libertação neurodivergente é inseparável da construção de organizações socialistas fortes e democráticas e de movimentos mais amplos – online, em sindicatos, lutas pela habitação, resistência à extrema-direita e outras campanhas. Trata-se de criar espaços onde ativistas –neurodivergentes, mulheres, LGBTQ+, pessoas não binárias etc. – possam organizar-se coletivamente, desafiar o funcionamento interno dos espaços ativistas, construir organizações e contribuir com as lutas das quais fazem parte.
A forma como nos organizamos não é uma questão abstrata separada do projeto político. Ela determina a tomada de decisões, que vozes são ouvidas, como as estratégias são formadas e se estamos construindo movimentos e lideranças – ou a queimar ativistas por ganhos de campanha de curto prazo.
O movimento da neurodiversidade, incluindo as reivindicações mais amplas em torno da deficiência e do cuidado, não são questões secundárias; fazem parte da nossa consciência de classe sobre como nos organizamos, enfrentamos opressões, construímos solidariedade e movimentos.
Notas
1- Nick Walker, ‘Neuroqueer Heresies: Notes on the Politics of Neurodiversity’ (Weird Books for Weird People, 2021).
2- Devon Price, ‘Unmasking Autism: The Power of Embracing Our Hidden Neurodiversity ’ (Monoray, 2022).
3- Jodie Hare, ‘Autism Is Not a Disease’ (Verso, 2024).
4- Anne V. Kirby et al ‘Are Autistic Females at Greater Risk of Suicide’, Wiley Online Library, vol. 17, Issue 5 pp. 898-905.
5- DCU Study,9/05/2024,https://tinyurl.com/2s3zx289
6- Robert Chapman, ‘Empire of Normality: Neurodiversity and Capitalism’, (Pluto Press 2023).
7- Janine Booth, ‘Autism Equality in the Workplace: Removing Barriers and Challenging Discrimination’, (Jessica Kingsley 2016).
8- Martijn “McDutchie” Dekker’s blog, ‘A correction on the original of the term neurodiversity ’, 13/07/2023.
9- Nick Walker, ‘Neuroqueer Heresies: Notes on the Politics of Neurodiversity’ (Weird Books for Weird People, 2021).
10- Robert Chapman, ‘Empire of Normality: Neurodiversity and Capitalism’, pg5, pg137 (Pluto Press 2023).
11- Penny Duggan, The feminist challenge to traditional political organisations, 21/11/2023.
12- Jo Freeman(first published in 1972), https://www.jofreeman.com/joreen/tyranny.htm
Publicado originalmente na Rupture. Traduzido para português pela revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.
JK é colaboradora da revista ecossocialista Rupture.