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“Não tenho nenhuma resistência à legalização do uso terapêutico da canábis”

Em entrevista ao podcast Quatro e Vinte, João Goulão, diretor do SICAD e responsável pela implementação da descriminalização das drogas em Portugal, defende mudanças na lei para afastar definitivamente os consumidores dos tribunais.
João Goulão
João Goulão. Foto esquerda.net

João Goulão, Coordenador Nacional para os Problemas da Droga, das Toxicodependências e do Uso Nocivo do Álcool, fez o balanço dos quinze anos de descriminalização e falou do contexto nacional e internacional da política de drogas no podcast publicado no esquerda.net (ouça aqui a entrevista).

A propósito das anunciadas iniciativas legislativas para legalizar o uso terapêutico da canábis, João Goulão afirmou não ter reservas sobre a matéria e estar disposto a dar o seu contributo, embora sublinhe que esse debate deve partir da iniciativa dos “colégios da especialidade da Ordem dos Médicos, Infarmed, entre outros”.

“Em determinadas situações clínicas, tenho lido bastantes trabalhos importantes sobre isso, parece não haver dúvidas e haver mesmo uma produção acrescida de evidência científica relativamente à bondade da utilização de produtos de canábis ou da própria canábis para coadjuvantes das terapêuticas de determinadas doenças. Não tenho nenhuma resistência relativamente a isso”, afirmou o diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD).

João Goulão alertou no entanto para a necessidade dos legisladores separarem o uso terapêutico do uso recreativo. “Uma é da competência de instâncias médicas.(…) Já a outra é uma questão sobre o que queremos da nossa sociedade e como ela se posiciona em relação à proteção do cidadão contra efeitos potencialmente nocivos – se acha que deve assumir a posição de o defender a todo o custo e contra a sua vontade, ou não”, sublinhou, criticando a “falta de seriedade que há na mistura das duas situações”.

Legalização da canábis tem “ganhos potenciais”, mas Portugal não está “com a faca ao peito”

Quanto à legalização da canábis para uso recreativo, Goulão mantém reserva sobre a sua posição pessoal e prefere manter a posição que Portugal tem assumido nos fóruns internacionais: “Estivemos na linha da frente e introduzimos alterações quando enfrentámos uma solução calamitosa. Agora estamos um pouco na expetativa de ver os resultados que outros, ao ensaiarem as suas experiências, vão colher em termos de saúde individual e coletiva”, afirmou ao Quatro e Vinte. Ao contrário da mudança implementada em 2001 para responder à “situação calamitosa” do consumo da heroína, hoje em dia “não temos a faca ao peito, de termos de mudar a todo o custo”.

Questionado sobre se, à semelhança de ex-responsáveis políticos e de agências governamentais noutros países, considerava vir a defender a publicamente a legalização após sair das funções que ocupa, João Goulão reforçou a necessidade de avaliar com a distância e o recuo necessários o desenrolar das experiências norte-americanas e uruguaia. “Cinco anos talvez já nos dê para ter alguma ideia e se calhar eu reformo-me antes disso”, respondeu.  

“Gostaria de ter mais evidência de que o processo de legalização não se traduz num disparar dos consumos ou do aumento das consequências para a saúde. Há ganhos potenciais que eu reconheço sem dificuldade: o controlo de qualidade ou a cobrança de taxas num país tão necessitado delas“, referiu. “Mas será que temos vantagem em juntar [a canábis] a produtos como o álcool e o tabaco?“, acrescentou, questionando-se sobre que enquadramento regulador teria esse modelo de legalização.

Acórdão do Supremo veio “complicar o espírito da lei” da descriminalização

Se Portugal é apontado internacionalmente como um exemplo de sucesso na sua abordagem de enquadrar o consumidor no sistema de saúde e não no sistema criminal, a verdade é que o relatório do SICAD aponta para 400 condenações em tribunal por consumo de drogas, no caso de consumidores que excediam a quantidade limite prevista na lei. Por exemplo, quem plantar canábis em casa para não alimentar o tráfico, facilmente ultrapassa o limite de 25 gramas previstos na lei.

Para João Goulão, este é um dos aspetos a repensar na lei em vigor. “O que acontece é que entretanto houve um acórdão do Supremo que veio complicar estas coisas, ao assumir que alguém, embora mero utilizador, que seja intercetado na posse de uma quantidade superior aos tais dez dias, é mesmo passível de procedimento criminal. É uma intercorrência bastante posterior à aprovação da lei que veio complicar um bocado o seu espírito”, aponta o coordenador do SICAD.

Para repor o espírito original da lei que retirava os consumidores dos tribunais, Goulão defende que no que toca aos limites, a lei “devia ser alterada ou repensada”. No entanto, considera que a fixação de limites foi “uma excelente ideia”, ao impedir a discricionaridade no momento da polícia decidir se o consumidor vai para tribunal ou para a comissão de dissuasão da toxicodependência (CDT).

Perigo das smart-shops “foi demasiado empolado nos media”

Confrontado com os dados dos relatórios produzidos pelo organismo que dirige, que vieram contrariar a ideia criada pelos media acerca do disparar do consumo de drogas sintéticas no período em que as smart-shops as vendiam sem restrições, João Goulão reconheceu que “as prevalências de uso foram sempre mais ou menos residuais” e que o assunto “foi demasiado empolado na altura ao nível da comunicação e dos espaço público”.

No entanto, diz que a legislação que obrigou ao encerramento destas lojas, que vendiam todo o tipo de substâncias químicas sob a capa legal de adubos para plantas, foi “uma boa medida” que trouxe “alguns ganhos relativos”, ao encaminhar a aquisição dessas substâncias para a internet, que restringe o acesso aos detentores de cartão de crédito e com mais informação sobre as substâncias.

Jovens consumidores vão continuar na mira das comissões de dissuasão

Em 2015, as CDT lidaram com 10.380 processos de pessoas apanhadas pela polícia com pequenas quantidades de substâncias ilícitas, sobretudo jovens e estudantes. Ao todo são 28 processos diários, 24 dos quais por posse de canábis. Estarão as CDT transformadas numa máquina burocrática de perseguição aos consumidores de canábis à custa dos contribuintes? João Goulão refuta a acusação e diz que a aposta na sinalização dos mais jovens faz parte da estratégia de “prevenção indicada” que identifique situações de potencial risco a montante do consumo.

“O que se trata aqui é de encaminhar estes jovens não para um serviço de tratamento de dependentes mas para respostas existentes na nossa comunidade que possam apoiá-lo nessa situação de crise e evitar que aquele fator suplementar de stress, ocorrendo em simultâneo com o consumo de substâncias, possa vir a ocasionar a transformação daquele consumo num consumo mais problemático”, explicou João Goulão. Por outro lado, “a esmagadora maioria dos consumidores problemáticos sabem onde se dirigir quando querem”, pelo que a utilidade nesta incidência sobre os mais jovens “que estão em lua de mel com a substância, às vezes com uma falha significativa de informação acerca do que está em jogo (…) é útil e permite-nos inverter tendências de crescimento da prevalência”, justificou.

“Enquanto aqui se discute a legalização, noutros países o debate é sobre a pena de morte”

O responsável pelo SICAD tem representado o país nos fóruns internacionais, nomeadamente nas Nações Unidas, onde o peso dos países ultraproibicionistas domina os organismos que lidam com o tema da droga e toxicodependência. “A décalage entre os diversos países e zonas do mundo é muito grande. Estamos aqui a discutir a bondade ou pertinência de caminhar para a legalização, mas há países em que a discussão em cima da mesa é abolir ou não a pena de morte para crimes conexos com a droga. Penso que é importante olharmos para o futuro mas também para quem ficou para trás”, aponta João Goulão.

No entanto, em relação a Portugal, Goulão recorda que as críticas das estruturas da ONU para o controlo de estupefacientes ao modelo de descriminalização se foram esfumando com o tempo, ao ponto dos responsáveis terem apontado o caso português como um exemplo de boas práticas. “Eu diria que este facto ter ocorrido numa estrutura tão pesada e com consensos tão difíceis, o presidente ter tido uma afirmação deste tipo indicia, apesar de tudo, uma evolução civilizacional que tem ocorrido no seio das próprias estruturas da ONU”, diz João Goulão.

“É evidente que receamos o peso excessivo da Federação Russa, por exemplo, eventualmente das Filipinas – quero crer que não chegue a atingir uma posição de relevo – mas as posturas e políticas hoje desenvolvidas são francamente preocupantes, em Singapura, Malásia, nessas zonas do mundo há posturas muito retrógradas”, acrescenta Goulão, referindo em particular a resistência às políticas de redução de danos, encaradas em muitas partes do planeta como uma contemporização com o uso. É como se fosse um incentivo eu distribuir seringas ou abrir uma sala de consumo assistido”, lamenta.

 

 


Transcrição da entrevista a João Goulão (ouvir aqui):

Foi publicado há poucos dias o relatório sobre a situação da droga e toxicodependência em Portugal, com dados de 2015. Já conhecemos os benefícios que teve a descriminalização em matéria de saúde pública. Mas como é que nos comparamos com outros países europeus no que toca ao consumo de drogas, nomeadamente países onde a lei é mais criminalizadora?

Nós estamos na média ou abaixo da média europeia relativamente a quase todos os indicadores que têm a ver com consumos – ao nível da prevalência ao longo da vida, prevalência de consumo no último ano e nos últimos 30 dias. Em todos esses indicadores estamos na metade inferior da tabela.

E como é que isso tem evoluído ao longo dos anos?

Com uma tendência de descida relativamente ao uso de todas as substâncias. Particularmente sensível nos grupos etários mais baixos, o que é um bom indicador. Em contrapartida, há um aumento da perceção de risco entre os mais mais jovens.

Em relação à canábis, a tendência nos outros países é para essa perceção de risco diminuir, mas em Portugal está a aumentar. Qual a explicação para isso?

Um conjunto de fatores: o trabalho preventivo, de informação, e também algumas más experiências que alguns utilizadores vão tendo. Não tenhamos dúvidas que a melhor publicidade nestas matérias é a que passa de boca ao ouvido, que circula nos meios onde as coisas acontecem. Claro que o trabalho preventivo exercido pelos técnicos terá o seu peso. Comparando em relação à heroína, eu tenho a convicção de que grande parte do seu declínio teve a ver com um auto-desprestígio pela visibilidade dos efeitos deletérios que foi tendo entre a população. As pessoas foram aderindo cada vez menos e isto tem um efeito que se propaga. Os mais novos foram deixando de aderir a essa substância porque se apercebia daquilo que acontecia. Relativamente à canábis, ela goza de uma enorme complacência na nossa sociedade, como em outras. Mas isto estará de alguma forma a ser invertido em virtude de sustos muito grandes que as pessoas vão apanhando.

Isso tem a ver com alterações que existem relativamente aos produtos de canábis disponíveis. A canábis e os produtos de canábis que hoje circula têm pouco a ver com a canábis tradicional do tempo dos hippies. As estirpes a partir das quais são preparados os produtos que circulam atualmente foram objeto de manipulações genéticas, novos métodos de cultivo. A sua capacidade psicoativa, com o reforço do THC, foi crescendo. Constatamos hoje que ao nível das equipas de tratamento estatais, a canábis já suplantou as outras substâncias em termos de pedidos de ajuda, que têm várias origens: um deles são os tais sustos que as pessoas apanham , com recurso até às urgências hospitalares. Alguns produtos de canábis têm aditivos de canabinóides sintéticos, que ocasiona surtos psicóticos, ataques de pânico com alguma frequência. E isso depois é difundido na comunidade de utilizadores.

Por outro lado há uma ação que considero importante, a da intervenção das Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT). Nós temos uma solução – que muitos dizem que é uma solução de meio caminho – de descriminalizar o uso de todas as substâncias. Essa foi também uma originalidade do sistema português, normalmente a discussão é em torno da clássica divisão, que no meio científico podemos considerar abandonada, entre drogas leves e duras. A descriminalização de todas as substâncias em Portugal teve a ver com a assunção de que o que verdadeiramente interessa é a relação que o indivíduo estabelece com a substância e não a substância ela própria. De todas estas substâncias ilícitas, hoje a canábis é a que motiva maior número de pedidos e alguns deles são encaminhados pelas CDT. Muitas das pessoas intercetadas pelas forças policiais estão na posse de substâncias que ficam abaixo do limite que implica procedimentos criminais. Essas são encaminhadas para as CDT, onde têm oportunidade de discutir com profissionais de saúde o verdadeiro peso do seu uso na sua vida e as reais implicações. O que é facto é que, não sendo compulsivo, muitas das pessoas presentes às comissões aceitam num segundo momento serem encaminhadas para os serviços.

Quando são apanhadas pela segunda vez?

Não, mesmo na primeira. O trabalho pedagógico feito pelas comissões, num primeiro momento, não implica isto. Insisto, não é compulsivo. As equipas técnicas das comissões usam escalas de aferição da dependência, tentando objetivar o mais possível e não ficar apenas ao nível das impressões. Há uma primeira destrinça a fazer entre o dependente e o não dependente. O dependente é aconselhado, incentivado a aproximar-se de estruturas de tratamento – insisto que isto não é compulsivo – mas em relação à pessoa que não é dependente – a grande maioria dos que são presentes às CDT – eu diria que as comissões funcionam como uma instância de prevenção indicada. Há vários níveis de prevenção: ambiental, universal, seletiva e a indicada, dirigida a indivíduos que têm já um determinado comportamento. A  comissão pode assumir que um indivíduo não tem propriamente padrões de dependência, mas coexistem com o seu uso algumas circunstâncias a nível social, psicológico… Vamos imaginar uma situação concreta: um jovem de 18 anos intercetado pela polícia a fumar o seu charro num local público. Vai à esquadra, a substância é-lhe apreendida – é uma queixa frequente dos utilizadores, mas apesar de tudo é ilícito consumir essas substâncias –, é pesada e se tiver menos de que a quantidade calculada na base do uso individual para dez dias, a pessoa é encaminhada para a CDT. Aí a equipa técnica tenta fazer a tal destrinça entre o consumidor dependente e não dependente. Imaginemos que é um jovem de 18 anos que fuma o seu charro ao fim de semana com os amigos e teve o azar de ser apanhado pela polícia. Mas os técnicos apercebem-se que está a viver uma situação familiar complicada, os pais estão a divorciar-se, o pai perdeu o emprego, ou ele próprio está em conflito interno por algum motivo, vamos imaginar que tem problemas até ao nível da assunção da sua sexualidade, por exemplo. O que se trata aqui é de encaminhar estes jovens não para um serviço de tratamento de dependentes mas para respostas existentes na nossa comunidade que possam apoiá-lo nessa situação de crise e evitar que aquele fator suplementar de stress, ocorrendo em simultâneo com o consumo de substâncias, possa vir a ocasionar a transformação daquele consumo num consumo mais problemático. Esta é a filosofia por detrás desta abordagem, e por esta via há muitos encaminhamentos para serviços não relacionados com a toxicodependência, mas também a identificação de consumos mais problemáticos em que as pessoas são incentivadas a aproximar-se das estruturas de tratamento.

Neste relatório vemos também que no campo da chamada dissuasão, foram instaurados mais de dez mil e trezentos processos em 2015. Dá uma uma média de 28 processos por dia, um recorde absoluto desde o inicio da descriminalização. Mas destes 28 processos diários, 24 dizem respeito à posse de canábis. À primeira vista parece que o sistema que nasceu para sinalizar e encaminhar toxicodependentes para o tratamento se transformou numa máquina burocrática que consome recursos públicos para perseguir consumidores de canábis, em particular os mais jovens. O próprio relatório diz que tem como alvo os mais mais jovens, os estudantes, para os sinalizar precocemente…. Não teme que possa existir esta leitura, de se estar a desperdiçar muito dinheiro, muito trabalho, muita dedicação dos técnicos?

Pelo contrário, encarando este dispositivo como um dispositivo de prevenção indicada, acho que é a aposta que deve ser feita. É evidente que o papel destas comissões na sinalização dos consumidores problemáticos para tratamento é obviamente um objetivo. Mas também diria que a esmagadora maioria dos consumidores problemáticos sabem onde se dirigir quando querem. Estes consumidores que estão em lua de mel com a substância, às vezes com uma falha significativa de informação acerca do que está em jogo, penso que a incidência é útil e nos permite inverter tendências de crescimento da prevalência.

Num cenário de legalização da canábis, certamente que o seu orçamento para a prevenção e informação sobre o abuso e o consumo responsável iria aumentar substancialmente. Não lhe parece que seria dinheiro melhor gasto na prevenção do que neste aparelho de dissuasão, em que apenas um em cada dez (9% dos processos) são encaminhados para as outras vias de tratamento e acompanhamento?

Não é tão baixo como isso. Não arrisco dizer uma percentagem, mas há um número significativo que são encaminhados para outras respostas na nossa comunidade que não as unidades de tratamento. É evidente que há aqui várias formas de olhar para esta questão. Quando me diz que o orçamento seria significativamente reforçado na eventualidade de haver uma legalização, uma cobrança de taxas por parte do Estado e ter alguma garantia que essas taxas seriam alocadas às consequências, essa pode ser uma via.

Gostaria de dizer, provavelmente antecipando questões que pretende colocar-me, que relativamente às propostas que estarão prestes a ser apresentadas no sentido da legalização, que me vou abster de emitir uma opinião muito pessoal. Acredito que no futuro isso irá acontecer, mas de momento há duas questões centrais: fazer uma destrinça muito clara entre o uso terapêutico e o uso recreativo de canábis.

Quanto ao uso terapêutico, coloco poucas reservas. Em determinadas circunstâncias e indicações clínicas, tenho lido bastantes trabalhos importantes sobre isso, parece não haver dúvidas e haver mesmo uma produção acrescida de evidência científica relativamente à bondade da utilização de produtos de canábis ou da própria canábis para coadjuvantes das terapêuticas de determinadas doenças. Não tenho nenhuma resistência relativamente a isso. O que acho é que essas virtualidades terapêuticas não podem ser utilizadas como justificativo da disseminação do uso recreativo, com o argumento de que ‘isto é tão bom que até cura doenças”. Há muitas substâncias usadas na terapêutica do cancro que longe de nós vê-las difundidas…

Vemos o que se passa hoje nos EUA com uma epidemia da dependência de opiáceos….

Exatamente. é necessário separar estas duas coisas. Uma é da competência de instâncias médicas. Eu também sou médico mas não entro por aí. Compete aos colégios da especialidade, Ordem dos Médicos, Infarmed, etc, discutir isso. Obviamente seremos provavelmente chamados a intervir, mas não é uma responsabilidade que esteja sob a nossa alçada. Já a outra é uma questão sobre o que queremos da nossa sociedade e como ela se posiciona em relação à proteção do cidadão contra efeitos potencialmente nocivos. Se acha que deve assumir a posição de o defender a todo o custo e contra a sua vontade, ou não.

Mas olhemos para a sociedade de hoje, em que os ídolos da juventude – a seleção que ganhou o europeu de futebol – surgem associados a uma marca de bebidas alcólicas, para todos os efeitos a uma droga que mais mata em Portugal...

É uma substância legal. Que vantagem teremos em acrescer a uma substância legal, a que mais mata, outras que potencialmente podem provocar efeitos deletérios na nossa sociedade? Eu tenho defendido e é a posição que aqui trago, assumida pelo Estado português que tenho oportunidade de representar até em instâncias internacionais, que é a seguinte: nós vivemos uma situação calamitosa relacionada com o consumo de heroína e esse foi o motivo próximo que nos levou a dar um passo sem rede. Na altura não havia precedentes de uma escolha como a que foi feita ao descriminalizar o uso das substâncias. Fomos mais ou menos crucificados na praça pública das instâncias mundiais, na ONU, por exemplo… Mas hoje em dia somos apontados como um exemplo de boas práticas.

Na verdade, Portugal atuou como um laboratório social, felizmente bem sucedido. Eu não atribuo virtudes mágicas a esta descriminalização, aquilo que acho é que houve um investimento sério do Estado português no enfrentar das consequências, sobretudo do uso de heroína. E temos uma evolução globalmente positiva de todos os indicadores. A descriminalização introduziu coerência neste sistema, tudo se baseia na ideia de que estamos a lidar com uma condição de saúde e que não deve ser tratada no plano criminal. Hoje em dia, não temos uma situação calamitosa. Temos problemas, temos aí um outbreak de consumo de heroína ou de consumos injetáveis, com populações mais desorganizadas, mas isto não afeta no seu conjunto a evolução positiva. É algo que temos de enfrentar e encontrar novas respostas, mas fá-lo-emos. A nossa experiência inspirou várias outras a nível europeu e mundial. Hoje em dia não temos a tal situação calamitosa. Há experiências a decorrer noutras partes do mundo, no Uruguai ou nos Estados Unidos. Penso que temos tempo para criar alguma distância relativamente a essas experiências. Por exemplo, nos EUA uma coisa que me preocupa e incomoda é o crescimento da prescrição supostamente para fins terapêuticos mas que na verdade é para fins recreativos.

Isso é uma forma de contornar a lei…

Certo, mas daí eu reclamar contra a falta de seriedade que há na mistura das duas situações. Gostaria que fosse uma assunção, clarinha clarinha, do uso recreativo, chamando-o pelo nome. Não é mascarar ou usar como um cavalo de Tróia para fazer passar esse uso. É uma discussão igualmente legítima, perfeitamente digna de ser travada na sociedade portuguesa. A única coisa que digo, reservando de alguma forma a minha posição pessoal, é que aquilo que o Estado português tem assumido, como na UNGASS nas Nações Unidas no ano passado é isto: estivemos na linha da frente e introduzimos alterações quando enfrentámos uma solução calamitosa. Agora estamos um pouco na expetativa de ver os resultados que outros, ao ensaiarem as suas experiências, vão colher em termos de saúde individual e coletiva . Não é ser um tampão, não é isso que pretendemos, a que este debate seja travado. E que seja travado com o máximo de evidência científica disponível.

Nós temos 15 anos de descriminalização mas ainda há quem seja condenado em tribunal pelo crime de consumo, o relatório fala em cerca de 400 casos em 2015. Por exemplo, quem plantar canábis para consumo próprio para não alimentar o tráfico facilmente ultrapassa o limite legal das 25 gramas. Não acha que já seria altura de despenalizar totalmente o consumo e tirá-lo de vez dos tribunais portugueses?

Eu acho que a nossa lei – insisto, isto foi uma decisão tomada há 15, 16 anos e de alguma forma pioneira – foi inovadora ao fixar uma quantidade limite estimada para o uso individual durante dez dias. A fixação desse limite foi uma excelente ideia. Alguns países, já depois de nós, decidiram descriminalizar o uso mas não fixaram esses limites. E isto dá lugar a todo o tipo de discricionariedade por parte das forças policiais. Na prática, o que acontece é que alguém é intercetado na posse de uma substância qualquer para uso pessoal, vai à esquadra e depois o que é que acontece? Se é marginal, negro, pertence a uma minoria qualquer, a polícia diz que é traficante e vai para tribunal. Se tiver um ar completamente diferente, de boas famílias, é mandado em paz, rotulado de mero utilizador. O facto de nós termos este limite objetivo põe-nos de alguma forma ao abrigo dessa discricionariedade que podia ser exercida pelas forças policiais naquele momento inicial de encaminhamento para um ou outro dos sistemas. Contudo, é possível a posteriori haver um cruzamento de um lado para o outro. Ou seja, alguém que intercetado com uma quantidade superior e que é enviado para tribunal pode ser num segundo momento enviado por um juiz para a CDT. Teoricamente, o oposto também é possível: se tenho à minha frente alguém que é apanhado com uma quantidade inferior mas há toda a evidência de que nem sequer é um utilizador da substância mas sim um traficante, poderia enviá-lo para tribunal.

O que acontece é que entretanto houve um acórdão do Supremo que veio complicar estas coisas, ao assumir que alguém embora mero utilizador, que seja intercetado na posse de uma quantidade superior aos tais dez dias, é mesmo passível de procedimento criminal. É uma intercorrência bastante posterior à aprovação da lei que veio complicar um bocado o seu espírito.

A lei teria de ser ou alterada ou clarificada no que toca a esses limites?

Sim, devia ser alterada ou repensada. 400 pessoas condenadas é bastante.

Já falámos das Nações Unidas e dos fóruns internacionais onde o João Goulão tem presença assídua a apresentar o modelo português. Antigamente havia aquele argumento de quem se opunha à legalização que era “isto só em Portugal não pode ser, temos de esperar por uma solução a nível internacional”. Mas vemos que na ONU a comissão das drogas está nas mãos de países ultraproibicionistas como a Rússia ou o Irão. As políticas de redução de danos que se praticam em Portugal são condenadas em muitos destes países que têm poder sobre este organismo. Foi ele que em 1998 definiu como objetivo acabar com a droga no mundo em 2008. É deste tipo de fanatismo ideológico que estamos a falar. Com a atual relação de forças prevê alguma mudança ou evolução deste debate na ONU sobre as drogas?

Acho que temos sobretudo uma grande responsabilidade. A décalage entre os diversos países e zonas do mundo é muito grande. Estamos aqui a discutir a bondade ou pertinência de caminhar para a legalização, mas há países em que a discussão em cima da mesa é abolir ou não a pena de morte para crimes conexos com a droga. Penso que é importante olharmos para o futuro mas também para quem ficou para trás. É importante que na esfera de atuação da ONU essa tentativa de aproximação, de não deixar tão para trás alguns países, deverá merecer um investimento significativo.

A sensação que dá é que durante décadas os EUA impuseram o proibicionismo controlando com mão de ferro esse organismo, mas perderam a moral durante o mandato de Obama, com vários estados a legalizarem ao arrepio da lei federal, e deixaram esse papel para países ainda mais recuados no que toca às políticas de drogas.

Exatamente…

Já estivemos mais longe de ver aquele facínora das Filipinas à frente da comissão de drogas da ONU?

Quero crer que apesar de tudo, isso não. É de registar que tem havido uma evolução nas próprias estruturas da ONU, nomeadamente do órgão internacional de controlo de estupefacientes. Depois da nossa lei da descriminalização houve visitas do órgão. Veio cá e teve uma apreciação extremamente crítica. Passado uns anos, os relatórios anuais já diziam que apesar de Portugal ter descriminalizado, a evolução parece positiva. E no ano passado, na UNGASS, o presidente do órgão fez a projeção de vários slides, um dos quais dizia que Portugal é um exemplo de boas práticas dentro do espírito das convenções da ONU. Eu diria que este facto ter ocorrido numa estrutura tão pesada e com consensos tão difíceis, o presidente ter tido uma afirmação deste tipo indicia, apesar de tudo, uma evolução civilizacional que tem ocorrido no seio das próprias estruturas da ONU.

É evidente que receamos o peso excessivo da Federação Russa, por exemplo, eventualmente das Filipinas – quero crer que não chegue a atingir uma posição de relevo – mas as posturas e políticas hoje desenvolvidas são francamente preocupantes, em Singapura, Malásia, nessas zonas do mundo há posturas muito retrógradas. Insisto na ideia de que a abolição da pena de morte para crimes conexos seria um passo fundamental que se traduziria num progresso atingido no âmbito da ONU.

Outros parecem-me mais complicados, até porque há muita desinformação. Tenho tido a oportunidade de discutir com colegas de outros países o que são políticas de redução de danos. E de facto há uma deficiente perceção do que se pretende. A nossa abordagem de que mesmo quando as pessoas usam substâncias, não querem ou não podem parar de as consumir, ainda assim são merecedoras do investimento por parte do Estado no sentido de terem uma maior esperança de vida e qualidade de vida. E depois, ao abrigo do princípio do pragmatismo, há uma série de respostas às quais é possível deitar mão de acordo com as circunstâncias. Mas em muitos países isto é tido apenas como uma contemporização com o uso. É como se fosse um incentivo eu distribuir seringas ou abrir uma sala de consumo assistido.  

Nós tivemos em Portugal uma experiência de legalização que se pode chamar “selvagem” das drogas nos anos em que estiveram abertas ao público as smart-shops – lojas que vendiam todo o tipo de substâncias químicas, não proibidas explicitamente na lei, como se fossem adubos para plantas. Milhares de pessoas consumiam todo o tipo de drogas com consequências para a saúde bem superiores à da canábis, mas os dos dados dos relatórios desses anos não confirmam todo aquele alarmismo que se gerou na comunicação social e que obrigou ao encerramento dessas lojas…  Foi tudo uma tempestade num copo de água?

Penso que foi demasiado empolado na altura ao nível da comunicação e dos espaço público. Felizmente, as prevalências de uso foram sempre mais ou menos residuais. Mas há uma evidência, que foi constituída pelos episódios de urgência relacionados com isso, com as tais mortes mais ou menos evidentemente relacionadas com esse uso. O que é facto é que a legislação que entretanto foi produzida e que na prática conduziu ao encerramento das smart shops parece-me uma boa medida. Não quer dizer que essas substâncias tenham desaparecido ou que estejamos ao abrigo de um boom na sua difusão, que pode ocorrer a todo o momento. Olhamos para os países em volta e vemos que estão a crescer, mas porque enquanto aqui ainda não. Mas elas estão nos circuitos ilícitos, a par das outras substâncias e são vendidas através da internet, chegam a casa do consumidor em encomendas descaracterizadas. Esse comércio é uma preocupação, mas tem apesar de tudo algumas diferenças relativamente ao que acontecia na compra do “adubo” na tal smart shop. A compra via internet pressupõe um cartão de crédito associado, alguma informação, uma morada física, exige que as pessoas conheçam alguma coisa para saberem onde vão comprar, a participação em chats de informação que pressupõe um conhecimento mais aprofundado, maior idade por haver o tal cartão de crédito… Apesar de tudo há alguns ganhos relativos. O boom a que se estava a assistir, resultante da proliferação das smart-shops foi um ganho, elas estavam a crescer como cogumelos (e também vendiam cogumelos)…

Nós temos uma galeria de ex-responsáveis políticos, ex-presidentes do México, da Colômbia, do Brasil, dos Estados Unidos, mas também ex-responsáveis de agências governamentais no campo de prevenção e até da repressão, a defenderem a legalização da canábis. Teremos de esperar que o João Goulão se reforme do SICAD para o vermos a defender a legalização da canábis em Portugal?

Eu gostava de ter algum recuo, algum tempo de observação relativamente aos outputs das experiências que estão a ser levadas a cabo e que são muito recentes. Insisto na ideia de que não temos a faca ao peito, de termos de mudar a todo o custo porque a situação é calamitosa. Gostaria de ter mais evidência de que o processo de legalização não se traduz num disparar dos consumos ou do aumento das consequências para a saúde. Há ganhos potenciais que eu reconheço sem dificuldade: controlo de qualidade, é certo que muitas pessoas hoje fumam produtos de canábis contaminados por solventes, por pesticidas, a cobrança de taxas num país tão necessitado delas… Mas será que temos vantagem em juntar a produtos como o álcool e o tabaco? Assistimos a uma cruzada sem tréguas relativamente ao tabaco, e bem. Num quadro de legalização, como será? Será também tão circunscrito e tão apertado? Há alguns outputs destas novas políticas que gostava de ver concretizados na prática e com alguma distância, algum recuo. Cinco anos se calhar já nos dá para ter alguma ideia e se calhar eu reformo-me antes disso.

 

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