Teoria

Não, o liberalismo não enterrou o marxismo

16 de novembro 2024 - 13:07

À medida que o pensamento liberal foi evoluindo na tentativa de resolver as falhas do capitalismo, há quem diga que tornou o marxismo irrelevante. Nesta entrevista, o professor de sociologia e editor da revista Catalyst, Vivek Chibber, contrapõe que é o marxismo que nos dá as ferramentas para ultrapassar injustiças deste sistema económico.

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Pessoas visitam o túmulo de Marx.
Pessoas visitam o túmulo de Marx. Foto Wikimedia Commons.

Durante grande parte da sua história, o movimento socialista recorreu ao marxismo como base orientadora. Nas últimas décadas, porém, a teoria marxista tem vindo a perder influência no mundo intelectual. Na filosofia política anglófona, por exemplo, uma corrente marxista outrora vibrante deu lugar, em grande medida, a teorias liberais de vários tipos. Perante estes desenvolvimentos, vale a pena perguntar: será que o marxismo ainda oferece um recurso essencial, como ofereceu aos socialistas no séc. XX?

Nick French, da Jacobin, sentou-se com Vivek Chibber para discutir esta questão e outras, incluindo a relação entre a filosofia política liberal e o marxismo; o estatuto do materialismo histórico enquanto. teoria; e os usos e limitações da filosofia moral para os socialistas. Para Chibber, embora a filosofia liberal possa diagnosticar as injustiças do capitalismo, não oferece um caminho significativo para as resolver. O marxismo, pelo contrário, não só critica o capitalismo como também oferece uma base estratégica para a mudança estrutural, o que faz dele uma força inestimável e duradoura para enfrentar as desigualdades profundamente enraizadas do mundo moderno.


Nick French: Numa intervenção recente, o filósofo político Joseph Heath argumentou que a filosofia liberal se desenvolveu ao ponto de tornar o marxismo redundante ou irrelevante. O argumento de Heath salienta que muitos dos mais astutos filósofos marxistas da viragem do século passado, conhecidos coletivamente como “marxistas analíticos”, integraram o seu trabalho numa ala da filosofia política liberal, representada, sobretudo, por John Rawls. Heath aponta especificamente para o arco intelectual de G. A. Cohen, que passou da defesa de uma interpretação da teoria do materialismo histórico de Karl Marx para a rejeição dessa teoria, passando a simpatizar com os princípios fundamentais do igualitarismo liberal, em grande parte na linha de Rawls.

Penso que o argumento de Heath levanta algumas questões essenciais interessantes para os socialistas atuais, sobre a relação entre as críticas liberais ao capitalismo e as críticas marxistas. O que pensa desta ideia de que a filosofia liberal se desenvolveu ao ponto de ter substituído o projeto marxista?

Vivek Chibber: Essa é mais uma história que a ver com o amadurecimento da filosofia liberal do que com a relevância do marxismo. Uma base muito importante do liberalismo é que, quando se pergunta às pessoas o que pensam o que o liberalismo é, elas associam-no à igualdade política: à ideia de que as pessoas devem ter direitos iguais e devem ser iguais perante a lei. Por outras palavras, associam o liberalismo aos atributos formais da democracia.

É claro que os marxistas valorizam a democracia. Mas também afirmam que a democracia política sem igualdade económica enfraquece a democracia e torna-a uma espécie de farsa. A razão é que as desigualdades económicas típicas do capitalismo tornam muito difícil que a igualdade política tenha realmente substância. As pessoas que têm muito dinheiro e muita riqueza usam o poder que isso lhes dá no domínio económico para dominarem também o domínio político. Usam o seu poder económico para subjugar a igualdade política que o liberalismo promete.

Esta era a crítica marxista à filosofia liberal e ao liberalismo. O que aconteceu foi que, no final do séc. XX, um pequeno número de filósofos saídos da tradição liberal chegou essencialmente à mesma conclusão a que Marx chegou a este respeito, e John Rawls foi o mais influente nesse respeito. Como diz Rawls, para que os direitos tenham o mesmo valor – para que tenham o mesmo valor para todos – é necessário erradicar as desigualdades económicas típicas do capitalismo.

Por outras palavras, Rawls chegou às mesmas conclusões que Marx. Não foi o primeiro. Sempre houve uma vertente do liberalismo filosófico que esteve em grande tensão com o liberalismo político existente. O que aconteceu no final do séc. XX foi que a vertente dominante do liberalismo filosófico era igualitária.

Como é que entendemos isto? Eu diria que é o liberalismo que está finalmente a chegar ao nível do socialismo marxista. Se isso for verdade, então não é tanto uma questão de que o marxismo esteja a tornar-se redundante, mas sim que as duas tradições filosóficas estão mais ou menos a convergir. Poder-se-ia dizer que, num certo sentido, o liberalismo se tornou redundante.

Isto pode parecer hiperbólico, mas o facto é que há um sentido no qual o marxismo não pode ser substituído pelo liberalismo, mesmo que as suas filosofias morais convirjam. Embora Rawls e outros filósofos liberais tenham muito a dizer sobre o que há de errado com o capitalismo e o que há de errado com as promessas vazias de democracia formal, têm muito pouco a dizer sobre uma orientação estratégica que nos permita remediar esses defeitos.

Têm um conceito enraizado do que é uma sociedade justa e humana, mas não têm uma verdadeira teoria de duas outras coisas essenciais: primeiro, como é que uma ordem social injusta é sustentada e reproduzida ao longo do tempo? Ou seja, como é que o capitalismo se reproduz ao longo do tempo? Como é que o poder se mantém? É isso que a economia política estuda. Em segundo lugar, dada essa constelação de poder, como podemos reunir uma coligação social que possa lutar e conquistar a conceção institucional que eles recomendam como uma conceção social justa e humana? Esta é a teoria do conflito social e da mudança.

É aqui que o marxismo tem algo a dizer que a filosofia política liberal simplesmente não tem, porque o marxismo é uma teoria político-económica muito sólida. Se for esse o caso, podemos aceitar a opinião de Heath de que a filosofia política liberal e a teoria moral marxista estão quase no mesmo plano. Podemos aceitar todos os pontos que Rawls defende sobre a justiça, mas isso deixa o marxismo com toda uma série de pontos fortes e contributos que o liberalismo não tem, pelo menos não a tradição filosófica de que ele fala.

O marxismo não é, na sua essência, uma filosofia moral, mas uma teoria da política e uma economia política. Enquanto o liberalismo não conseguir produzir isso, nunca poderá suplantar o marxismo ou tornar o marxismo redundante.

As armadilhas tecnológico-deterministas e o materialismo histórico

Mas não será aqui que tantos antigos marxistas abandonaram o barco? A economia política e a teoria da mudança social eram componentes do materialismo histórico. E muita gente, entre os quais o senhor, argumentaram que o materialismo histórico tradicional não pode ser defendido.

Se isso for verdade, não estaremos a voltar ao problema de o marxismo não ter realmente uma teoria da mudança e, por isso, tudo o que temos é uma filosofia moral? Foi isso que G. A. Cohen acabou por concluir e é por isso que Heath defende que o liberalismo é a única solução.

Não me parece que isso seja correto. A questão resume-se a duas perguntas. Em primeiro lugar, o materialismo histórico tem de ser entendido de forma estritamente tecnológica e determinista, como os marxistas tradicionais defendiam, e que muitos, incluindo eu, criticaram como sendo indefensável? Em segundo lugar, será essa a versão pela qual as organizações marxistas clássicas foram de facto guiadas e inspiradas quando provocaram as tremendas mudanças e transformações a que assistimos no séc. XX e que tornaram a tradição socialista tão valiosa?

Comecemos pela primeira questão, que é a de saber se a versão tecnológico-determinista do materialismo histórico é a única interpretação válida. O que essa teoria diz é que a história avança a ritmos muito bem definidos e que os sistemas sociais aparecem e desaparecem de acordo com o facto de serem ou não adequados a um maior desenvolvimento tecnológico e a um maior desenvolvimento dos poderes produtivos da sociedade. A certa altura, se se verificar que as instituições sociais existentes estão a prejudicar os poderes produtivos da sociedade, o impulso para sustentar e aumentar esses poderes produtivos é tão forte que o sistema social existente é desmantelado. E obtém-se um novo sistema social que é consistente com este impulso avassalador de manter a tecnologia a avançar.

Foi assim que Cohen percebeu o materialismo histórico. Trata-se de uma visão muito determinista. Nesta perspetiva, quando uma ordem social está a entrar em crise, é praticamente garantido que uma nova ordem a substituirá e que a nova ordem será mais adequada ao desenvolvimento tecnológico.

Cohen acaba por dizer duas coisas sobre este ponto de vista. Primeiro, diz que não é uma teoria que possamos efetivamente sustentar. Em segundo lugar, diz que, graças a Deus, está errada, porque estraga mais do que constrói. A teoria, se tomada à letra, encoraja a complacência política devido ao seu determinismo. Dá aso à ideia de que “Ei, olhem, a crise chegou!” E é praticamente garantido que o socialismo vai ganhar, porque é o próximo modo de produção.

Isso significa que não é preciso pensar muito para perceber a situação política atual, que é o que define a política. Não é preciso fazer “a análise concreta da situação concreta”, citando Vladimir Lenine. Sabe-se que, na pior das hipóteses, pode-se atrasar a transição e, na melhor, acelerá-la. Mas a transição em si está mais ou menos garantida.

Cohen diz que é uma teoria política terrível, por isso, devíamos descartá-la. Mas quando dizemos que está errada, o que nos resta? Sem a teoria materialista, diz ele, o que resta é um projeto de defesa moral. Cohen diz que os socialistas deviam concentrar-se em persuadir as pessoas da conveniência moral do socialismo.

Exatamente. Mas então como é que se evita a conclusão de Cohen?

A questão é: será que a versão tradicional da sua teoria é a única plausível? Há uma certa ambiguidade nos textos de Marx sobre esta questão. No entanto, mesmo que não houvesse ambiguidade – mesmo que tivesse a intenção de apresentar a teoria que Cohen diz ter apresentado – a questão mais importante é: existe outra versão menos exigente da teoria que seja plausível, que seja consistente com o espírito do que Marx tentou dizer, mas que não tenha as falhas da leitura determinista?

Na minha opinião, é bastante claro que é possível desenvolver uma versão menos exigente e menos restrita da teoria. Esta versão não tem as implicações deterministas da antiga e, portanto, não corre o risco de gerar complacência ou preguiça por parte dos marxistas. Mas possui os elementos positivos da teoria mais antiga, que são simples.

Primeiro, se uma ordem social está a entrar em crise, a sua resolução será possibilitada por fatores internos dessa ordem social. Assim, se o capitalismo está a entrar em crise, a resolução para o socialismo é possibilitada pela dinâmica do próprio capitalismo. Isto significa que não é preciso ser utópico, no sentido pejorativo de Marx, para se ser socialista. Em segundo lugar, as forças sociais necessárias para criar essa ordem social são viáveis e podem ser mantidas com base nos interesses materiais das pessoas.

Esta teoria é um tipo de materialismo em dois sentidos. Em primeiro lugar, não cai no utopismo. É materialista no sentido de ser realista. Em segundo lugar, diz que as pessoas estão dispostas a lutar pelos seus interesses materiais, que têm os interesses que a criação de uma nova ordem social exige.

Esta versão da teoria é, a meu ver, uma interpretação legítima de Marx. E é uma teoria sustentável por direito próprio. Isto significa, portanto, que podemos rejeitar a versão tecnológico-determinista do materialismo histórico, mas ainda assim manter a essência da teoria que é defensável como um guia para a ação estratégica.

Mas deixem-me voltar à segunda questão que disse ser fundamental. Na primeira parte do séc. XX, o socialismo, enquanto movimento, foi incrivelmente bem-sucedido porque provocou mudanças muito profundas. Não apenas a Revolução Russa, mas também todos os avanços sociais-democratas. Ambos os movimentos se basearam na teoria marxista. Ambos levaram muito a sério o materialismo histórico tradicional. A questão é saber se essas pessoas, ao levarem essa teoria a sério, foram vítimas do determinismo e da complacência com que Cohen se preocupa.

A resposta é absolutamente negativa. Se tivessem acreditado na versão da teoria de Cohen, e tivessem efetivamente tirado as mesmas conclusões que ele tirou, não teríamos assistido a debates intermináveis sobre pormenores minuciosos, sobre o momento, sobre a conjuntura, que os primeiros socialistas tiveram.

Há uma de duas possibilidades. Ou eram esquizofrénicos e subscreviam uma teoria que ignoravam completamente em toda a sua prática, ou a forma como entendiam o materialismo histórico estava mais próxima da versão modificada e mais sustentável que estou a apresentar. Apesar de, nos seus documentos, falarem da teoria mais determinista. Se virmos a forma como falam e a forma como debatem entre si quando apelam ao marxismo, estão a apelar à versão menos determinista, mas ainda assim materialista.

Isto significa que Cohen está errado em dois aspetos. Está errado quando diz que a única versão sustentável do materialismo é a que ele defende. E está errado quando diz que o materialismo histórico, uma vez assumido, gera complacência.

Interesses materiais vs. defesa da moral

Os primeiros socialistas guiaram-se por um entendimento do materialismo histórico que diz que o capitalismo cria as condições para uma nova ordem social e que a forma de concretizar essa nova ordem é organizando as forças sociais, em particular, a classe trabalhadora, em torno dos seus interesses materiais.

Exatamente. Mas, por acaso, Cohen também rejeita este argumento, levando-o de volta à defesa moral. Para ele, há uma diferença profunda entre o capitalismo do início do séc. XX e o capitalismo do séc. XXI. A diferença é que, no início do primeiro, era possível confiar na classe trabalhadora como agente de mudança social e, no segundo, não é possível.

Também vale a pena analisar este aspeto, porque também aqui o argumento de Cohen é bastante fraco. Diz que há quatro razões pelas quais já não se pode contar com os trabalhadores como acontecia no início do séc. XX. Os marxistas partiam do princípio de que, em primeiro lugar, os trabalhadores eram a maioria da sociedade capitalista; em segundo lugar, que estes produziam a riqueza da sociedade; em terceiro lugar, que eram o grupo explorado; e, em quarto lugar, que eram as pessoas mais desfavorecidas da sociedade.

Será que a sua avaliação deste quarto fator é correta? Terá razão quando diz que os trabalhadores já não são o grupo mais necessitado da sociedade? Não percebo como é que ele pode dizer isso. É verdade que não são indigentes, mas não é isso que interessa. O que interessa é o facto de serem mais prejudicados do que qualquer outro grupo importante e de poderem ganhar substancialmente com o socialismo. Certamente que isso não é menos verdade hoje do que era em 1920.

Assim sendo, podemos afirmar os quatro factos sobre a classe trabalhadora, mesmo hoje. Os trabalhadores são a maioria, são explorados, e essa exploração é a criadora de riqueza, e os trabalhadores são mais necessitados do que qualquer outro grupo importante da sociedade moderna, o que significa que têm tanto interesse em avançar para uma transformação do capitalismo, e em ser anticapitalistas hoje, como antes.

Mas não há diferenças reais entre o capitalismo atual e o capitalismo de há cem ou cento e cinquenta anos? Não estará Cohen a agarrar-se a algo que muitos de nós, na esquerda, consideramos importante? O senhor está a dizer que as diferenças são apenas efémeras?

Não penso que as diferenças sejam efémeras, penso que existem diferenças profundas. Mas não há uma grande diferença nas motivações e no interesse dos trabalhadores numa ordem social melhor. A diferença reside muito mais nas suas capacidades de a concretizar.

Ainda não o compreendemos totalmente, mas havia algo no capitalismo do início do séc. XX que tornava a organização e a criação de movimentos de massas e militantes muito mais fácil do que é atualmente. Essa, penso eu, é a maior diferença entre esse capitalismo e o atual. É isso que a esquerda atual precisa de resolver. Precisamos de descobrir como reunir os trabalhadores em torno dos seus interesses, que são tão importantes hoje para uma nova ordem social como o eram no início do séc. XX.

O mistério que nos separa dessa esquerda é que ela tinha um modelo e uma estratégia viável do que deveriam ser os movimentos de massas, como mobilizá-los, como ativá-los. A esquerda atual ainda não resolveu esse problema.

Cohen não percebe o desafio. Ele pensa que o desafio é o facto de os trabalhadores não terem a motivação que tinham na altura. Eu diria que o desafio é mais o facto de não terem a capacidade ou o poder de organização que tinham na altura.

Isso deve-se a uma combinação de fatores: uma mudança na ecologia das empresas industriais; uma mudança na proporção da classe trabalhadora na indústria e na manufatura em relação aos serviços; uma mudança na paisagem urbana e na ligação entre o trabalho e a vida; e, finalmente, o desmantelamento dramático das associações cívicas da classe trabalhadora que a ajudam a forjar as suas identidades coletivas como trabalhadores.

É uma combinação de todos estes fatores. Precisamos de um programa de investigação bem elaborado para tentar perceber isso.

O cerne do que está a dizer é que é possível recuperar uma versão do materialismo histórico que possa servir de guia estratégico para a prática política, mesmo nas condições muito diferentes do capitalismo atual em relação ao de há cem anos. Não temos de nos virar para a advocacia moral como a nossa nova estratégia de organização, como pensa Cohen.

Sim, mas os problemas da perspetiva da defesa moral são ainda mais profundos.

A forma como colocou a questão foi: uma versão do materialismo histórico é resgatável, por isso, não temos de confiar na defesa moral. Eu sugeriria que isso levanta a questão de uma forma fundamental, porque não é claro para mim como é que a defesa moral poderia alguma vez ser uma base para uma transformação política do tipo de que estamos a falar. Por outras palavras, mesmo que quiséssemos contar com ela, não poderíamos.

Uma luta pelo socialismo ou mesmo pela social-democracia exige que as pessoas corram enormes riscos e sacrifícios, porque terão de enfrentar a classe capitalista. Não vejo como a defesa moral possa ser o mecanismo para trazer a maioria das pessoas para um projeto político deste tipo. É preciso ser capaz de mostrar às pessoas que têm um interesse real no resultado: um interesse material, não apenas uma vocação moral. E também mostrar-lhes que é realista, que não é apenas uma espécie de missão suicida.

É notável para mim que os defensores deste ponto de vista – Cohen é um deles, mas há outros – nunca tentem confrontar sistematicamente esta questão. Na verdade, há duas questões, dependendo de quem é o alvo da sua defesa moral.

Uma questão é: se se trata de uma vocação moral geral, porque é que os setores mais poderosos da sociedade e aqueles que os servem nos meios de comunicação social, nas universidades e na política seriam convencidos pela sua defesa moral, quando têm um interesse direto na manutenção da ordem social? A outra é que, se não se for ter com eles, porque é que os trabalhadores pobres iriam ter connosco por vocação moral, a não ser que lhes seja explicado claramente o que têm a ganhar com isso.

Na minha opinião, é mais realista dizer que se uma base materialista para a política já não é sustentável, o socialismo não é sustentável como movimento. Prefiro admitir isso do que viver com a ilusão de que a defesa moral nos levará até lá. Num sentido muito real, era contra isto que Marx e [Friedrich] Engels andavam a argumentar durante toda as suas vidas: estes vários tipos de utopia que diziam que, se pedirmos às pessoas para serem simpáticas, podemos chegar ao socialismo.

Por isso, se Cohen tem razão quando diz que uma versão materialista da política já não é sustentável, a conclusão que retira deste facto não faz sentido. A conclusão a que devemos chegar é que a política do tipo com que nos comprometemos é agora impossível. Estas conversas morais são fantasias que os intelectuais entretêm; não sei como é que elas terão algum poder no mundo.

Equilíbrio entre realismo e moralidade

Então qual é o lugar da investigação moral? Há muitos socialistas que concordariam com muito do que está a dizer. Mas poderiam acrescentar que isto apenas mostra que a filosofia moral é, na melhor das hipóteses, uma perda de tempo e, na pior, perigosa: que encoraja ilusões ideológicas ou ideias que são úteis à burguesia ou à manutenção do capitalismo, sobre justiça, direitos, etc.

O que pensa desta posição? Haverá alguma razão para os socialistas se interessarem pela filosofia moral? O que é que ela nos pode oferecer, se é que nos pode oferecer alguma coisa?

Os socialistas têm absolutamente de levar a filosofia moral a sério, por duas razões.

Uma razão é óbvia quando pensamos nela, mas algumas pessoas não a levam suficientemente a sério: não queremos apenas algo diferente do capitalismo, queremos algo melhor do que o capitalismo, e por “melhor” queremos dizer mais desejável.

Se o socialismo é mais desejável, por que razão é mais desejável? E se alguém nos dissesse: “Tenho uma solução para as deficiências do capitalismo, mas vão ter de abdicar de todos os vossos direitos cívicos e políticos.” A maioria dos socialistas rejeitaria isso. Mas nós rejeitamo-lo por razões morais, por isso, precisamos de ser capazes de articular quais são essas razões.

A segunda razão é talvez menos óbvia, mas decorre da primeira. Há dois critérios com base nos quais os socialistas têm de avaliar as instituições que estão a tentar construir. Um é prático: serão essas instituições realistas e sustentáveis? O outro é moral: as novas instituições podem ser realistas e sustentáveis, mas serão desejáveis?

Sustentável e desejável são duas coisas muito diferentes. O que é sustentável pode não ser desejável, e o que é desejável pode não ser realista. Os socialistas são muito adeptos da questão do realismo e compreendemos agora, após cem anos de experiências, que há versões do socialismo que podem não ser sustentáveis: e uma dessas versões, penso eu, é o planeamento central. Por isso, apercebemo-nos de que talvez tenhamos de nos contentar com algo menor do que isso.

No entanto, essas instituições que, no seu conjunto, constituem algo menor, terão elementos que se retiram do capitalismo. Poderá haver um mercado de trabalho. Poderá haver certos mercados financeiros. Poderá haver certos tipos de mercados de produtos.

Agora, somos confrontados com a questão: se vamos ter, digamos, um mercado de trabalho, será que todas as suas versões são moralmente condenáveis? Ou há versões ou aspetos que são aceitáveis e com os quais, enquanto socialistas, podemos viver?

E as hierarquias? Não podemos eliminar todas as hierarquias. Com as hierarquias, temos algumas opções. Quais são as que pensamos serem coerentes com os nossos objetivos e, portanto, desejáveis, e quais são as que devemos tentar evitar e dissolver?

Tudo isto são questões morais. Sempre que temos várias opções, como é o nosso caso, selecionamos a partir delas não apenas por razões práticas: haverá também debates morais intensos. Se não soubermos os motivos que nos levam a rejeitar as instituições capitalistas, não saberemos quais são os motivos que nos levam a aceitar ou rejeitar as suas alternativas.

Sem uma base normativa bem elaborada, os socialistas não têm bases para fazer estas escolhas. Se não tivermos essa base, se não tivermos moralidade, só nos resta o poder. E o que vai resolver estes debates é quem tem as armas e quem tem mais recursos. Isso é absolutamente algo que se quer evitar na esquerda.

Assim, embora Cohen esteja errado ao pensar que tudo o que resta aos socialistas é a defesa da moral, o seu projeto mais vasto de tentar dar aos socialistas uma base mais sólida sobre as razões pelas quais devem aceitar ou rejeitar certas instituições sociais foi absolutamente crucial. Cabe-nos a nós tentar aprofundar isso tanto quanto possível. E, para isso, teremos parceiros muito capazes entre os liberais igualitários, porque eles chegaram a muitos dos mesmos pontos de vista que os socialistas já tinham, mesmo que tenham demorado um pouco mais.


Vivek Chibber é professor de Sociologia na Universidade de Nova Iorque. É o editor do Catalyst: A Journal of Theory and Strategy. Nick French é editor associado da Jacobin.

Texto publicado originalmente na Jacobin. Traduzido por Nuno Oliveira para o Esquerda.net.

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