A pintora, artista plástica e professora Isabel Lhano faleceu na madrugada deste domingo aos 70 anos, vítima de um aneurisma. Filha do também pintor Martins Lhano e irmã de Graça Martins, igualmente artista, nasceu na Póvoa de Varzim, aos três anos foi viver para o Porto e depois radicou-se em Vila do Conde.
Feito o ensino secundário na Escola Soares dos Reis, rumou para a Faculdade de Belas Artes do Porto onde se licenciou em Pintura. Em 1971 e 1972 foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Por esses anos, já era socialmente ativa no movimento estudantil de resistência à ditadura. Enquanto estudante universitária, foi chumbada num exame ao qual apresentou uma pintura sobre “uma chacina dos soldados portugueses numa aldeia de Moçambique”. E chegou a ser presa pela PIDE por ter distribuído um comunicado contra a guerra colonial.
Numa conversa com a fotógrafa e professora Ana Pereira, recordava que as primeiras memórias da sensação de injustiça social vinham já da es cola primária, onde a sala de aula estava dividida em três partes, os pobres, remediados e ricos, e onde fez uma amiga foi castigada com a palmatória nas mãos cheias de frieiras por não ter roupas suficientes por causa da sua situação económica. Na secundária, com as amigas, desafiou a proibição das mulheres usarem calças, colocando-lhe saias por cima.
Findos os estudos, torna-se professora e ilustradora para a Asa. A primeira exposição, denominada Inquietações, data de 1983 e acontece na Fundação Eugénio de Almeida.
Nos anos 1990, foi responsável pela programação e direção artística da Galeria do Auditório Municipal de Vila do Conde, em 1992, onde depois também organizou várias exposições; integrou a direção artística da galeria Delaunay, entre os anos de 1996 a 1999; nesse último ano ganhou o 1º Prémio do Concurso Gráfico da Sarrió, com o catálogo “Acto do Corpo” e editou uma serigrafia pelo Centro Português de Serigrafia, Lisboa.
Em 2004, em Famalicão, é a vez de apresentar um “Elogio do Essencial”, exposição sobre olhares que a própria contou que começou com um sonho de uma exposição só com olhos e acabou por “contar uma história com olhares”. Entre muitas outras exposições, no ano passado, no Auditório Tomé Carvalho, tinha montado a exposição “Corpo Plural, com 20 acrílicos que contam a história de “duas irmãs bailarinas”, obra sobre a “fraternidade” e a relação com o corpo.
Na entrevista já referida, conta que apesar disso, “durante dez anos”, o seu trabalho “foi consecutivamente rejeitado em galerias, bienais, expunha em espaços alternativos, galerias paralelas, a Árvore…” porque andava “sempre contra a maré” e “fazia figurativo quando se fazia abstracto, agora afirmo o retrato”.
Este ano, comemorava tanto os 50 anos de carreira artística quanto os seus 70 anos. A efeméride deu azo a várias exposições patentes em Vila do Conde e Póvoa de Varzim. A exposição antológica “Império da Beleza” no Cine-Teatro Garrett, parte da obra gráfica e desenho passaram pela Casa de Antero de Quental, para além de obras serem exibidas no Auditório e o Teatro Municipais de Vila do Conde. Neste âmbito, foi também editado um livro com o seu nome.
Foi ainda co-autora, em 2004, do livro Afectos e Outros Afectos, com Valter Hugo Mãe e Jorge Reis-Sá.
A sua obra faz parte das coleções do Museu Amadeo de Souza-Cardoso, do Museu de Arte Contemporânea de Vila Nova de Cerveira da delegação norte do Ministério da Cultura e da Fundação Engenheiro António Almeida. Pode ainda ser vista em dois murais em Vila do Conde. Um de homenagem a Sónia Delaunay, outro sobre a Seca do Bacalhau.
Ilustrou as capas de livros de escritores como Valter Hugo Mãe, Rita Ferro Rodrigues e Daniel Maia Pinto. Também o fez em capas de discos dos Mão Morta. Em publicação nas suas redes sociais, o grupo recorda-a como tendo “um coração de ouro”, e como tendo sido autora da pintura do bebé que se encontra no centro da capa do disco “Maldoror” e também do “falso painel maoista (…) que no decorrer dos concertos da digressão “Horas de Matar” (…) se transformava num painel com os elementos da banda” com o qual se pretendia “afrontar a ditadura do pensamento único ditada por Passos Coelho e Cavaco Silva e apoiada pelo habitual coro mediático nacional”.
A artista celebrava o vermelho e feminino. O vermelho, para ela, não era “uma fase”, veio de dentro, veio com a libertação” e via o feminino como “o futuro, quando o mundo deixar de ser gerido pelo predador, quando o homem assumir o seu lado feminino e a mulher o seu lado masculino”.
O seu amigo Valter Hugo Mãe descreveu assim, no Notícias Magazine, a sua forma de estar na arte: “Para a Isabel, a arte tem necessariamente um compromisso ético, social, e não pode ser um exercício de ego”. Acrescentando que os seus quadros nunca eram uma “afirmação prepotente de vaidade” mas “uma proposta de debate do estado das coisas” e que ela era “alguém que é iminentemente colectivo, uma pessoa que se justifica pela pluralidade, pela consciência social e se inibe de comparecer ensimesmada, legitimada por si só”.
A descrição encaixa perfeitamente numa vida de empenho social e político. Das atividades na Comissão de Moradores da Zona Sul de Vila do Conde, à fundação da organização feminista UMAR, à organização do primeiro MayDay contra a precariedade no Porto.
Politicamente, foi militante da UDP, participou na campanha presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho e, a seguir, nos GDUP. Apoiou o Bloco de Esquerda em várias ocasiões. Por exemplo, fez parte das listas de apoiantes da candidatura legislativa 2019 e nas presidenciais do ano seguinte apoiou a candidatura presidencial de Marisa Matias. O mesmo tinha já feito nas eleições europeias de 2014 e na candidatura autárquica “e se virássemos o Porto ao contrário?” de 2017.
Numa das últimas pinturas que publicou na sua página de Facebook, fazia o balanço de um ano de “profunda desumanização” em que “mais uma vez a ganância e arrogância, os fanatismos religiosos e os fundamentalismos recrudesceram, fazendo eclodir invasões, guerras e o recente quase genocídio de um povo, para além do preocupante crescendo do anti-semitismo em alguns países”, manifestando a necessidade de continuar “a gritar pelo cessar fogo e desejar que a Paz impere contra a injustiça, intolerância e crueldade”.
O Bloco de Esquerda e o Esquerda.net apresentam as suas condolências à família e amigos da artista.