Está aqui

Moçambique: catástrofe é razão para não pagar dívida ilegal, dizem ONGs

Organizações representativas da sociedade civil dizem que "a devastação causada pelo ciclone Idai é mais uma razão para o povo moçambicano não ter de pagar um centavo” da dívida oculta. A catástrofe já provocou 447 mortos no país e há mais de um milhão de crianças afetadas.
Mulher com criança na única via de acesso possível na zona de João Segredo onde a estrada nacional 6 foi interrompida pelo ciclone Idai na província de Sofala, centro de Moçambique, 23 de março de 2019. Foto de Tiago Petinga/Lusa
Mulher com criança na única via de acesso possível na zona de João Segredo onde a estrada nacional 6 foi interrompida pelo ciclone Idai na província de Sofala, centro de Moçambique, 23 de março de 2019. Foto de Tiago Petinga/Lusa

Escândalo da dívida oculta

Segundo a Lusa, ONGs representativas da sociedade civil de Moçambique dizem que a catástrofe é mais uma razão para o governo não pagar a dívida oculta, que consideram ilegal.

"Está na altura de as autoridades moçambicanas serem transparentes relativamente à dívida odiosa e deviam genuinamente investir todos os seus recursos na salvaguarda das vidas do povo de Moçambique e na integridade da nossa nação", disse Denise Namburete, ativista do Fórum de Monitoria do Orçamento, em Maputo.

O escândalo de corrupção ao mais alto nível no anterior Governo de Moçambique ficou conhecido como o caso das dívidas ocultas, e representa dois empréstimos contraídos por empresas públicas (MAM e ProIndicus) sem o conhecimento das autoridades nacionais e dos doadores internacionais, com o aval do Estado, e no âmbito do qual estão detidos três antigos banqueiros do Credit Suisse, o antigo ministro das Finanças Manuel Chang e o filho e a secretária pessoal do antigo Presidente da República Armando Guebuza. Na passada sexta-feira, a Procuradoria-Geral da República de Moçambique acusou 20 pessoas devido às dívidas ocultas (ver abaixo).

Denise Namburete disse à Lusa que "não há hipótese de o país conseguir recuperar da magnitude do impacto do ciclone Idai sem vencer a cultura de corrupção, que suga os recursos essenciais da infraestrutura pública que pode salvar vidas e potenciar o desenvolvimento".

Tim Jones, economista-chefe do Comité para o Jubileu da Dívida, declarou que "a devastação causada pelo ciclone Idai é mais uma razão para o povo moçambicano não ter de pagar um centavo dessas dívidas".

"A economia moçambicana já foi suficientemente atingida por uma crise da dívida desencadeada por empréstimos secretos de 2 mil milhões dados por bancos britânicos", disse à Lusa Tim Jones, acrescentando que "há pelo menos 700 milhões de dólares desaparecidos, e uma investigação norte-americana alega que pelo menos 200 milhões foram gastos em subornos a banqueiros e políticos envolvidos nas transações".

"A injusta situação da dívida não ter ainda sido resolvida é uma acusação maldita para a comunidade internacional em geral e para o Governo britânico em particular", considera Tim Jones, apontando que "o falhanço na resolução da crise da dívida nos últimos três anos pode prejudicar os esforços de reconstrução" dos estragos provocados pelo Idai.

"As pessoas estão agora mesmo a morrer em Moçambique por causa do ciclone e das inundações; as pessoas estão nos telhados à espera de serem salvas por ajuda que muitas vezes não chega; o povo precisa de uma resposta de emergência agora mesmo para sobreviver a esta crise", disse Anabela Lemos, da ONG Justiça Ambiental.

O impacto do ciclone é "uma lembrança dura de que a crise climática está aí e que os países desenvolvidos precisam urgentemente de reduzir as suas emissões e parar de financiar a exploração de combustíveis fósseis", disse Anabela Lemos, apontando que "agora mesmo, o Governo britânico está a ponderar financiar a exploração de gás em Moçambique, quando o que precisamos é, em vez disso, de energias renováveis centradas nas pessoas".

O jornal “Le Monde” assinala que a oposição e o povo moçambicano criticam o papel dos bancos internacionais que negociaram os empréstimos, denunciam a “hipocrisia” ocidental e algumas pessoas reivindicam o fim do pagamento da dívida.

Escândalo das dívidas ocultas: PGR de Moçambique acusa 20 pessoas

Na passada sexta-feira, 22 de março, a Procuradoria-Geral da República de Moçambique acusou 20 pessoas devido às dívidas ocultas, tendo nove arguidos ficado detidos e um em liberdade provisória mediante pagamento de caução. A acusação é da prática de corrupção passiva por ato ilícito, peculato, branqueamento de capitais, associação para delinquir, abuso de confiança e chantagem.

"Continuamos a desenvolver ações de recolha de elementos de prova no país e no estrangeiro, aguardando igualmente as respostas aos pedidos de assistência legal, no âmbito da cooperação jurídica e judiciária internacional, com vista à responsabilização de todos os envolvidos", diz ainda a PGR moçambicana.

Entre os detidos estão Ndambi Guebuza, filho de Armando Guebuza, e a sua antiga secretária particular Inês Moiane, bem como antigos dirigentes dos serviços de informação moçambicanos. O ex-ministro das Finanças de Moçambique Manuel Chang está detido desde 29 de dezembro na África do Sul, a pedido da justiça norte-americana, que pretende extraditar o ex-governante para os EUA, no âmbito do processo das dívidas ocultas. Justiça norte-americana considera que parte do dinheiro foi usado para o pagamento de subornos a figuras do Estado moçambicano e a banqueiros internacionais.

Idai já provocou 447 mortos em Moçambique e há mais de um milhão de crianças afetadas

Nos três países atingidos pelo ciclone Idai - Moçambique, Zimbabué e Maláui – o número de mortos ascende já a 762.

Segundo a Lusa, o número de pessoas mortas pelo ciclone Idai é já de 447 em Moçambique, 259 no Zimbabué e 56 em no Maláui. Trata-se, naturalmente, ainda de números provisórios já contabilizados, segundo salientou o ministro da Terra e do Ambiente moçambicano, Celso Correia, alertando que os números vão subir à medida que o nível da água vá descendo.

De acordo com o ministro, mais de 794 mil pessoas “perderam as casas” ou estão "em zonas isoladas e que precisam de assistência". Celso Correia refere ainda que os centros de acolhimento registam já 128.941 entradas, das quais 6.500 pessoas vulneráveis - por exemplo, idosos e grávidas que recebem assistência particular.

Segundo estimativas de organizações internacionais, o ciclone terá afetado pelo menos 2,8 milhões de pessoas nos três países, sendo a área submersa em Moçambique de 1.300 quilómetros quadrados.

"As agências de ajuda mal começaram a ver a escala dos danos", diz UNICEF

No passado sábado, Henrietta Fore, diretora executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), declarou em conferência de imprensa que “a situação vai piorar antes de melhorar" no final de uma visita à Beira.

Henrietta Fore disse que a organização está numa “corrida contra o tempo” para ajudar as populações e as crianças, uma vez "as agências de ajuda mal começaram a ver a escala dos danos", salientando que há alteriras inteiras submersa e que muitas escolas e centros de saúde foram destruídos.

"Embora as operações de busca e salvamento continuem, é fundamental que se tomem todas as medidas necessárias para evitar a propagação de doenças transmitidas pela água, o que pode transformar esse desastre em uma grande catástrofe", frisou a diretora da UNICEF, alertando para o aumento do risco de doenças, como cólera, malária e diarreia, devido à combinação das inundações com superlotação nos abrigos, falta de higiene, água estagnada e fontes de água infetadas.

Várias mortes com sintomas de cólera

O presidente da Câmara da Beira, Daviz Simango, disse esta segunda-feira à Lusa que há várias mortes com sintomas de cólera e que aumentam os receios de um surto.

"Estamos à procura de [meios de] diagnóstico, mas nós conhecemos a cólera, conhecemos os sintomas e dinâmica", referiu Simango, acrescentando que "se numa unidade sanitária há seis, sete mortos nas mesmas circunstâncias de diarreia, é um indicativo claro de que a cólera está aí à porta".

Daviz Simango sublinhou ainda que são necessárias latrinas, alertando que "nos centros de acomodação, as pessoas não vivem em condições humanas".

No domingo, o ministro da Terra e Ambiente apontou que "a prioridade nas próximas semanas é evitar a eclosão de doenças", destacando que "é importante termos consciência de que vamos ter cólera, malária, já temos filária, e vai haver diarreias. O trabalho está a ser feito para mitigar" os surtos.

Termos relacionados Ciclone Idai, Internacional
(...)