Espaço

Missão Polaris: excentricidade ou hipótese em desenvolvimento

05 de outubro 2024 - 16:00

A missão da empresa de Musk e a “ofensiva sobre o espaço” ajudam a legitimar a colonização, o discurso de que apenas os fortes e “eleitos” se podem salvar. Estamos distantes das suas hipóteses espaciais mas perto da legitimação da “lógica da Arca de Noé” que é parte da disputa que devemos travar contra a extrema direita.

por

Israel Dutra

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Polaris Dawn.
Polaris Dawn. Ilustração publicitária.

Festejada pela imprensa internacional, a Missão Polaris Down, coordenada pela Space-X, foi lançada em 10 de setembro de 2024, completando a sua amaragem, de volta à Terra, cinco dias depois. A missão atingiu a maior órbita ao redor da Terra, na altitude de 1.400, 7 KM, superando a missão Gemini, de 1966, da NASA, até então detentora do recorde.

A missão Polaris, que contou com o foguete Falcon 9, foi comandada pelo bilionário Jared Isaacman, financiador da empreitada, contando com mais três pessoas: Scott Poteet, veterano piloto militar e duas engenheiras da Space-X, Anna Menon e Sarah Gillis. Foi a primeira caminhada espacial “privada” da história.

A cápsula espacial utilizada foi batizada de Crew Dragon e, apesar das parcerias entre Space-X e NASA, não houve interação com a Estação Espacial Internacional (ISS). A caminhada foi realizada durante alguns instantes, por Jared e Sarah.

A missão foi batizada de Polaris em alusão à expedição Polaris, cujo objetivo (frustrado parcialmente) era atingir o polo Norte do mundo (em 1871) e à estrela Polaris, a chamada “Estrela do Norte”, conhecida por ser a mais brilhante da constelação Ursa Menor.

Ao contrário da visão apologética, o grande “passo” da missão descrita é a presença de bilionários da extrema-direita na ponta de lança da disputa pela “conquista do espaço

O Complexo Musk

O personagem central desta trama é Elon Musk.

Além de homem mais rico do Planeta, Musk é um dos principais (para não dizer o principal) articulador de um novo modo de vida face à brutal crise do capitalismo contemporâneo. Se Trump cumpre esse papel na disputa do poder do imperialismo norte-americano, Musk atua como quadro dirigente em diversas esferas. O seu cinismo patente não deve nos levar a subestimá-lo: é um líder- em ação – com desejo de remodelar o mundo a imagem e semelhança do espírito do tempo da elite mundial.

A recente presença de Musk na vida política brasileira é apenas a ponta do icebergue. O tumultuado processo de disputa entre a rede X e a soberania do estado brasileiro trouxe à tona o lugar do bilionário na disputa do controle das informações e da política no nosso país. As suas recentes aparições anteriores na vida política latino-americana remontam à um tripé nada implícito: o apoio ao golpe na Bolívia, a corrida pelo lítio e a amizade com Javier Milei (estiveram juntos em 23 de setembro).

Para entender como Musk tem uma visão total e de certa forma inovadora precisamos conhecer o verdadeiro “complexo” de empresas e empreendimentos

Musk é fundador da SpaceX; CEO da Tesla; um dos cofundadores da OpenAI; fundador e CEO da Neuralink; cofundador, presidente da SolarCity e adquiriu em abril de 2022 a rede social do X (antigo Twitter).

Como sabemos, a Tesla é uma empresa de carros elétricos, chamados “carros do futuro”. A Neuralink atua na área de neurotecnologia procurando desenvolver interfaces cérebro-computador implantáveis, que parecem sair dos ecrãs da série de distopia “Black Mirror”.

Dentro dos projetos correlatos da Space-X aparece a Starlink, provedora de satélites espaciais, que tem ganho terreno por todo mapa global, com as suas articulações políticas a chegarem a todos os continentes com exceção de países como Rússia e China.

Uma boa definição da natureza e do papel de Musk aparece num artigo de Paris Marx, um dos estudiosos de tecnologia mais crítico do capitalismo contemporâneo:

“Os bilionários espaciais – com Musk e o CEO da Amazon, Jeff Bezos, à frente – têm pouco interesse no bem-estar da maioria da população. Acreditam que o espaço deve ser projetado para pessoas ricas como eles, com pouca menção sobre onde a classe trabalhadora se encaixaria nessa história. Ambos construíram as suas riquezas por meio da exploração e as suas visões de futuro não passam de uma extensão de suas ações presentes.”

Uma nova “guerra nas estrelas”

A disputa pela “conquista do espaço” foi uma temática recorrente no desenvolvimento do capitalismo tardio. Ao longo do século XX, especialmente no pós-guerra, houve um importante salto na presença humana no espaço sideral.

Contudo, a discussão sobre a ação extraterrestre engendra a própria discussão sobre o modo de produção e organização da vida social. Seguramente, a questão da conquista do espaço e de hipóteses como a vida humana fora da Terra, a existência de outras formas de vida noutros planetas e os mistérios da astronomia dominaram a cultura pop ao longo dos últimos 130 anos. Desde a publicação de HG Wells, “A guerra dos mundos” até aos clássicos cinematográficos de diferentes gêneros e gostos como “2001, uma odisseia no espaço”, “Starwars”, “O Caminho das Estrelas”, “Interstelar”, a ampla procura sobre o tema fala por si.

A corrida evidenciada pelos bilionários se assemelha – em ousadia e quiçá em destino – ao projeto “Guerra nas Estrelas”, lançado por Ronald Reagan em 1983, sob o nome oficial de “Iniciativa Estratégica de Defesa”. A sua ambição era criar um modelo de integração de satélites em órbita, com bases terrestres e radares espaciais voltados para o controle de misseis e tecnologias de ponta.

Foi o último capítulo da disputa da corrida espacial, durante o período conhecido como “guerra fria”, entre a União Soviética e os Estados Unidos. A corrida espacial oscilou ao longo de parte do século XX, com a URSS saltando na frente com o envio da primeira missão espacial, a Sputnik; com Yuri Gagarin como primeiro ser humano na órbita; enquanto os Estados Unidos se reposicionaram equipando a NASA (maior agência espacial em atividade) e chegando à Lua, em 1969.

As cenas da missão Polaris parecem repetir as do filme “Não Olhe para Cima”, uma crítica distópica produzida pela Netflix, onde os bilionários buscam saídas para viver fora do Planeta. O filme foi recebido por diversas críticas, apesar de grande elenco, não conseguindo encantar; contudo, anos mais tarde, a corrida espacial dos bilionários faz com que a sátira pareça mais verossímil, ao menos de um dado ponto de vista.

Uma vez mais, vale a pena retomar Paris Marx,

“Nos últimos anos, conforme a corrida espacial bilionária se intensificou, o público ficou cada vez mais familiarizado com as suas grandes visões para nosso futuro. Elon Musk, quer que colonizemos Marte e afirma que a missão da sua empresa espacial é estabelecer a infraestrutura para isso. Ele quer que a humanidade seja uma espécie “multiplanetária” e afirma que a colónia marciana seria um plano B caso a Terra se torne inabitável.”

O projeto “Guerra nas Estrelas” foi um grande fracasso. Durante vinte anos consumiu enormes recursos do orçamento público, várias tentativas de reavivamento, mas com o fim da “guerra fria” não teve maiores consequências, sendo encerrado de forma lacónica, quando já quase extinto, pelo presidente Barack Obama.

A verdade presente na extrema-direita

As hipóteses de êxito nos objetivos fixados pela megalomania do clube dos bilionários liderados por Musk e Isaacman não pode ser avaliada por agora, mas tal qual outros momentos da história recente da corrida espacial, nada indica que poderão conhecer um salto verdadeiro em poucos anos.

Tampouco não existe a previsão real de que a Terra seja inabitável nos próximos séculos.

Então, qual o risco e a estratégia embutida em investimentos tão volumosos e ambiciosos?

São dois riscos e uma verdade presente no núcleo do discurso – e da prática – da extrema-direita. E é importante comportar a sua verdade, porque ao redor dela, se estrutura outra dimensão: uma verdadeira fábrica de mentiras, distorções e fakenews que servem para a agitação política e disputa de setores de massas.

O primeiro risco é a concentração de recursos e poderes nas mãos de figuras que não tem qualquer compromisso com os parâmetros civilizacionais estabelecidos ao longo do pós-guerra. Uma extrema-direita que controle a capacidade comunicacional – e a crise do X no Brasil comprova isso – e os experimentos globais em áreas estratégicas como a das engenharias espaciais, nucleares e genéticas é um alarme que deve ser disparado. Essa extrema-direita tem uma visão fundada na colonização absoluta. Não por acaso a família de Musk fez riqueza durante o período do Apartheid na África do Sul. O elenco do “clube Musk” apoia o genocídio em Gaza e tem inúmeras parcerias com empresas de ramos militares e de inteligência do Estado de Israel. Os “avanços” espaciais são uma bandeira para “colonizar” mais e mais. O setor que está a frente dessa empreitada espacial defende o criacionismo em todas as escolas.

O segundo risco é que a extrema direita está a edificar um projeto global, debatendo face à crise de projetos e de futuro, uma espécie de “ultra-capitalismo” classista, ancorado na própria crise ou policrise que vivemos.

E aí reside a “verdade” que a extrema-direita propaga: há uma crise de proporções catastróficas – com as suas faces ambientais, económicas, sociais e políticas. O capitalismo em crise precisa ser reformulado, com “inovações” e novas formas societárias. Face a isto, a proposta ideológica e política é concentrar esforços (dinheiro, investimentos e poder) para criar espaços “livres da crise”.

Esta “verdade” aparece numa das propostas centrais de Trump caso eleito. A criação de 10 “cidades da liberdade”, uma espécie de “cidades-fortaleza”, com alto nível de segurança e de condições artificiais capazes de suplantar os problemas quotidianos. Por trás desse discurso, a defesa da deportação em massa de imigrantes e o encarceramento em massa como solução para as crises da segurança pública.

A “ofensiva sobre o espaço” ajuda a legitimar a colonização, o discurso de que apenas os fortes e os “eleitos” se podem salvar diante da crise. Isso dá bases para o aparecimento de novas clivagens supremacistas e, ironicamente, um darwinismo oriundo daqueles que negam Darwin.

E não vamos longe, tomando o que a citação de Tooze feita por Ognian Kassabov, acerca da mesma visão sobre o futuro de Gaza, propagada pelo sionismo e seus apoiantes:

O plano de Netanyahu para Gaza 2035 pode ser irrealista, mas isso não nos deve cegar para o facto de ser sintomático de uma poderosa visão de “civilização” vendida pelos círculos fintech e vendida a audiências globais como um progresso futurista.

O Gaza 2035 reimagina a faixa de Gaza naquilo que o historiador Adam Tooze descreveu como ‘uma cidade-estado rica e intensamente gerida – pensemos em Singapura ou Abu Dhabi”, “um clone mega-rico de uma cidade comercial e industrial globalizada.

Guerra total, Oásis e a Arca de Noé

Em conclusão, devemos-nos alarmar pensando nos efeitos sobre a “Terra” daquilo que os bilionários estão a fazer no céu.

Num período em que se combina a lógica de “guerra total” que uma ala do sionismo, em conluio com a extrema-direita mundial tem vindo a defender, com cada vez mais indícios da catástrofe climática (na mesma semana, o Brasil tem onda de calor e queimadas, a Europa do leste tem as suas piores enchentes da história moderna, o furacão Helene mata no sudeste dos Estados Unidos).

O reforço da lógica colonial e a construção de “Oásis” para vender novos futuros e novos mercados para os bilionários é apenas uma repaginação da lógica do lucro acima da vida. E atravessa o conjunto do arsenal ideológico da extrema- direita, apresentando a “liberdade individual”, o empreendedorismo e a salvação dos “melhores” como força de organizar a desesperança e o caos.

Estamos distantes das hipóteses espaciais propostas por Musk e seu círculo íntimo. O que não estamos nada distantes é a legitimação da “lógica da Arca de Noé” que é parte da disputa que devemos travar em todos os terrenos contra a extrema direita. Ou seja, resistir e polarizar o seu programa, as suas medidas, mas sobretudo, o seu projeto de mundo.


Israel Dutra é sociólogo, Secretário de Movimentos Sociais do PSOL, membro da Direção Nacional do partido e do Movimento Esquerda Socialista (MES/PSOL).

Texto publicado originalmente na Revista Movimento. Editado pelo Esquerda.net para português de Portugal.