Milei fecha a maior agência noticiosa da América Latina

05 de março 2024 - 23:05

A Télam foi cercada de madrugada pela polícia, os trabalhadores receberam um e-mail nessa altura a anunciar uma "suspensão de uma semana" e a página foi deitada abaixo pela manhã. 760 trabalhadores ficarão sem emprego enquanto o presidente de extrema-direita continua a despedir noutras áreas do Estado Social.

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Abraço coletivo à porta da sede da agência noticiosa argentina. Foto de Somos Télam.
Abraço coletivo à porta da sede da agência noticiosa argentina. Foto de Somos Télam.

Na madrugada de domingo para segunda-feira, a polícia avançou para a sede da agência noticiosa nacional e cercou-a. Ao mesmo tempo, os trabalhadores recebiam um e-mail a “dispensá-los” por uma semana. Pela manhã, a sua página de Internet deixou de funcionar.

Foi desta forma brutal que se concretizou o encerramento da Télam, que abre caminho para o despedimento de 760 trabalhadores, entre jornalistas, repórteres fotográficos, pessoal técnico e da limpeza e correspondentes locais.

O presidente argentino de extrema-direita neoliberal, Javier Milei, tinha anunciado que iria avançar com o encerramento da Télam na noite da passada sexta-feira. Concretizou-o na madrugada de domingo para segunda-feira usando todo um aparato policial para fazer disso um espetáculo.

Imagem da página de Internet da Télam esta segunda-feira.

Criada a 14 de abril de 1945 como Telenoticiosa Americana, a Télam era atualmente a maior agência noticiosa da América Latina. Por exemplo, a Agência Brasil, a sua congénere brasileira emprega apenas 70 pessoas. Milei, chegado ao poder, considerou que a sua linha seria afeta à oposição e tratou de a fechar. No discurso de sexta-feira justificou que era “utilizada para a propaganda kirchnerista”.

A ação, sublinha a oposição, é ilegal. Apenas por lei se poderão fechar qualquer uma das “sociedades do Estado”. Milei não levou ao parlamento, onde o seu partido está longe de ter maioria, nenhuma lei neste sentido. E a lei ómnibus, na qual se colocava como objetivo também o fim da Télam, acabou por não passar no parlamento.

O porta-voz de Milei, Manuel Adorni, disse apenas que o fecho é definitivo e que o governo analisará a seguir a forma melhor de o implementar. Os trabalhadores anunciaram que vão recorrer aos tribunais e protestaram em frente ao seu posto de trabalho. À volta da Télem, a eles se juntaram outros trabalhadores dos meios de comunicação, membros de sindicatos, vários outros movimentos sociais, milhares de pessoas, num “abraço coletivo” para defender o direito à informação.

Durante o fim de semana, a agência tinha continuado o seu trabalho, noticiando mesmo o seu encerramento, colocando os argumentos do governo a par com os da oposição e de outros setores sociais.

A Télam produz cerca de 500 notícias por dia e tem 803 clientes, avança a jornalista Irina Sternik na sua newsletter Lado B. Abastece assim centenas de meios de comunicação de várias dimensões, os mais pequenos dos quais ficam agora mais vulneráveis. Macri, presidente entre 2015 e 2019, e agora aliado de Milei, tinha durante a sua presidência tentado dar um duro golpe à agência. Em 2018, 360 receberam um telegrama a despedi-los, ao mesmo tempo que se tentava construir uma redação paralela. Os tribunais reverteram então a decisão.

O alvo seguinte será a Rádio Nacional, que conta com cerca de 60 emissoras mas o seu encerramento não está em cima da mesa para já. O recém-nomeado diretor deste órgão de comunicação social, o produtor de espetáculos Héctor Cavallero, anunciou o despedimento dos mais de cem trabalhadores com contratos temporários que estavam em final de contrato. Tratou também de pedir a demissão dos diretores de 48 filiais regionais.

A “motosserra” de Milei contra o Estado social continua o seu caminho. No mesmo discurso da sexta-feira, o presidente tinha anunciado igualmente o fim do Instituto Nacional contra a Discriminação que tinha como missão criar e implementar políticas contra todas as formas de discriminação, contra a xenofobia e o racismo.

O Página 12 noticiava a semana passada os efeitos dos cortes orçamentais e do despedimento de 165 trabalhadores da Andis, Agência Nacional da Deficiência. Muitos dos seus centros de prestação de cuidados ficaram sem sequer um trabalhador e muitas famílias ficaram sem o apoio que lhes era prestado a vários níveis, desde tramitações burocráticas, apoio legal, a articulação com hospitais e centros de dia, entre muitos outros.

O mesmo jornal esta terça-feira dá conta do despedimento de 600 trabalhadores do “Ministério do Capital Humano”, a mega-pasta criada por Milei para substituir os ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, do Trabalho e da Segurança Social. Isto acontece na sequência do encerramento de 59 Centros de Referência da Secretaria de Estado da Infância e da Família. Os trabalhadores ficaram a saber do despedimento através de uma publicação na rede social X, o antigo Twitter. Estes eram organismos de proximidade que permitiam aceder a políticas sociais que, de outra forma, só estarão disponíveis na própria capital.

Também esta terça-feira um relatório do CEPA, Centro de Economia Política Argentina, mostrava como a execução orçamental dos dois primeiros meses do ano na Função Pública caiu 29%. A queda chegou aos 40% no Ministério da Saúde, a 100% na Secretaria de Ciência e Inovação (com a sua paralisação total), a 82% na Agência nacional de Promoção da Investigação e Desenvolvimento Tecnológico, na Anses a 38%, na Coordenação de Políticas Sociais a 46%, no Instituto Nacional de Associativismo e Economia Social a 81%, no Instituto Nacional de Promoção Turística a 55, na Secretaria de Agricultura, Ganadaria e Pesca a 83, na Secretaria da Indústria e Desenvolvimento Produtivo a 75, Instituto Nacional do Teatro a 34, no Fundo Nacional das Artes a 44, na Biblioteca Nacional a 28 por ciento e no Teatro Nacional Cervantes a 27.

Para além dos cortes orçamentais que estão a ser implementados, o governo de Milei anunciou que voltará à carga de novo no Parlamento, na tentativa de aprovar “uma versão muito parecida à última” que foi chumbada.

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