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Manifestantes sionistas de Telavive esqueceram os seus vizinhos palestinianos

Não há e nunca haverá "liberdade, igualdade e bom governo" num estado de apartheid, tal como não há uma "luta pela democracia" quando se faz vista grossa ao apartheid. Por Gideon Levy.
Manifestação de 21 de janeiro em Telavive. Foto Abir Sultan/EPA

Mais uma vez, não fui à Praça Habima [em Telavive, também chamada Praça da Cultura], nem à Rua Kaplan [uma grande avenida no centro de Telavive], para me juntar às manifestações [protestando contra o novo governo de extrema-direita chefiado por Benyamin Netanyahu, ver nota 1]. As minhas pernas não me levaram e o meu coração impediu-me de participar numa manifestação que é em grande medida justificada, mas não é a minha manifestação.

Uma manifestação coberta por um mar de bandeiras azuis e brancas, como que para se justificar e proteger os seus participantes, enquanto as bandeiras de outros povos que vivem nesta terra são proibidas [uma decisão do último governo, entre outros por Itamar Ben Gvir, Ministro da Segurança Nacional] ou colocadas num gueto estreito sobre um monte de terra à beira da praça, como na manifestação anterior, não pode ser a minha manifestação.

Uma manifestação exclusivamente judaica e mono-nacional num estado claramente binacional não pode ser uma manifestação para quem procura igualdade ou justiça, que estão entre as palavras de ordem desta manifestação, mas permanecem vazias no seu interior.

As palavras "liberdade, igualdade e bom governo" dos organizadores de uma manifestação em Telavive são ocas; a retórica da "luta pela democracia" dos organizadores da outra manifestação não o é menos. Não há e nunca haverá "liberdade, igualdade e bom governo" num estado de apartheid, tal como não há uma "luta pela democracia" quando se faz vista grossa ao apartheid.

Alguns dos judeus deste país estão agora indignados com uma ameaça concreta aos seus direitos e à sua liberdade. É bom que tenham sido incitados à ação cívica, mas os seus direitos e a sua liberdade, mesmo depois de terem sido cerceados, continuarão a ser os dos privilegiados, os inerentes à supremacia judaica. Aqueles que consentem, em palavras ou em silêncio, invocam o nome da democracia em vão. O silêncio sobre este assunto é o silêncio sobre o apartheid. A participação nestas demonstrações de hipocrisia e de dois pesos e duas medidas é inaceitável.

O mar de bandeiras israelitas nestas manifestações serve de desculpa para o questionamento por parte da direita da lealdade e do patriotismo deste campo de manifestantes. Nós somos sionistas, por isso somos leais, dizem os manifestantes. Os palestinianos e os árabes israelitas podem esperar que resolvamos as coisas entre nós. É proibido misturar os problemas, como se fosse possível não os misturar. Mais uma vez, o centro e a esquerda caem mortos ante as acusações da direita, murmurando e desculpando-se. A pureza da bandeira manchou-os muito mais do que as acusações.

Mais uma vez, este campo mostra que exclui os palestinianos e a sua bandeira tanto como a direita. Como pode alguém participar numa tal manifestação? Não há nem pode haver uma manifestação sobre democracia e igualdade, sobre liberdade e mesmo sobre "bom" governo, num contexto de apartheid num estado de apartheid, ignorando ao mesmo tempo a existência do apartheid.

A bandeira foi escolhida como símbolo porque é uma manifestação sionista, mas não pode ser uma manifestação sionista pela democracia e ao mesmo tempo uma manifestação justa. Uma ideologia que grava na sua bandeira a supremacia de um povo sobre outro não pode pregar a justiça enquanto não mudar a base da sua ideologia. A Estrela de David está a afundar-se, como a ilustração da capa da revista hebraica Haaretz de sexta-feira demonstrou de forma tão pungente, mas o seu afundamento é inevitável enquanto a bandeira de Israel for a bandeira de uma das duas nações que a reivindicam.

O sangue palestiniano tem corrido como a água nos últimos dias. Não passa um dia sem que pessoas inocentes sejam mortas: um professor de ginástica que tentou salvar um homem ferido no seu quintal; dois pais, em dois lugares diferentes, que tentaram proteger os seus filhos, e um filho refugiado de 14 anos - tudo isto numa semana. Como pode uma manifestação ignorar isto, como se não estivesse a acontecer, como se o sangue fosse água e a água fosse chuva abençoada, como se não tivesse nada a ver com o rosto do regime?

Já imaginou se os judeus fossem atacados todos os dias ou dia sim dia não? Será que a manifestação os teria ignorado? A ocupação está tão longe como sempre; tornou-se um mosquito que deve ser silenciado. Quem o referir é um desordeiro que deve ser mantido afastado. Mesmo a esquerda já não quer ouvir falar disso.

"Parem o golpe de estado", proclamam, com um pathos que parece ter sido emprestado da Revolução Francesa. Mas não há revolução num estado de apartheid, se este continuar a ser um estado de apartheid. Mesmo que todas as exigências dos manifestantes sejam satisfeitas, se o Supremo Tribunal for louvado, se o Procurador-Geral for enaltecido e se o poder executivo for restituído à sua legítima estatura, Israel continuará a ser um Estado de apartheid. Então, qual é o objetivo desta manifestação? Para nos permitir rejubilar mais uma vez por sermos "a única democracia no Médio Oriente".


Gideon Levy é jornalista e colunista do Haaretz, autor de dois livros sobre a ocupação da Palestina, Em 2021 recebeu o prémio Sokolov, o mais importante do jornalismo em Israel. Artigo publicado no Haaretz a 22 de Janeiro de 2023 e republicado por A'lEncontre. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

Nota:

[1] O correspondente da RFI em Jerusalém, Michel Paul, escreveu a 22 de janeiro sobre a primeira "crise" no novo governo, que eclodiu quando o Supremo Tribunal exigiu que o Ministro do Interior e da Saúde, Arié Dery, fosse afastado do seu cargo por ter sido condenado por três vezes por desvio de fundos. Este último era líder do partido sefárdico ultra-ortodoxo, Shas: "O Supremo Tribunal tinha-o exigido. E Benyamin Netanyahu acabou por ter de cumprir. Demitiu Arié Dery do seu posto ministerial, mas com luvas de veludo. É uma decisão infeliz que ignora a vontade do povo, diz Netanyahu. E acrescentou que tudo fará para procurar por meios legais uma forma de permitir a Dery continuar a prestar os seus serviços ao país". (Redação do A l'Encontre)

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