Leo Panitch (1945–2020)

26 de dezembro 2020 - 20:28

A esquerda global sofreu uma perda irreparável com a morte de Leo Panitch no passado fim de semana. Até ao fim, continuou empenhado na causa do socialismo e da emancipação humana. Por Vivek Chibber.

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Leo Panitch. Foto de Schuster Gindin/wikimedia commons.
Leo Panitch. Foto de Schuster Gindin/wikimedia commons.

A esquerda global sofreu uma perda irreparável com o falecimento de Leo Panitch este fim de semana. Leo tinha sido recentemente diagnosticado com múltiplos mielomas e tinha contraído coronavírus, que progrediu para um pneumonia viral, quando estava no hospital a receber tratamento.

Leo nasceu numa família de imigrantes judeus do leste da Europa em Winnipeg, Canadá, e completou o seu doutoramento na London School of Economics sob a supervisão de Ralph Miliband. A sua dissertação sobre a estratégia económica do Partido Trabalhista britânico foi publicada em 1976 sob o título Social Democracy and Industrial Militancy: The Labour Party, the Trade Unions and Incomes Policy, 1945–1947. Esta tese iniciou uma longa parceria intelectual com Miliband e, em 1985, Leo juntou-se a ele no papel de co-editor do Socialist Register, o qual Miliband tinha lançado com John Saville em 1964.

Sob a batuta firme de Leo, o Register continuou a crescer nas décadas seguintes, tornando-se uma das mais importantes publicações da esquerda global. Outros se juntaram a ele durante estes anos, mais notoriamente Colin Leys e depois Greg Albo, mas Leo permaneceu o fulcro no qual o projeto se apoiava. E enquanto guiava o Register através da desmoralização de era neoliberal, continuava a publicar uma série de obras de referência, o mais importante The End of Parliamentary Socialism: From New Left to New Labour, que escreveu em conjunto com Leys e, mais recentemente,

The Making of Global Capitalism: The Political Economy of American Empire o resultado do projeto com uma década de duração feito com o seu querido amigo e camarada Sam Grindin.

Durante todos estes anos, houve vários temas que permaneceram uma constante no seu trabalho. O primeiro deles foi sem dúvida o seu estudo profundo dos perigos e promessas da social-democracia. Leo era um apreciador profundo dos ganhos históricos que o movimento dos trabalhadores conseguiu alcançar através do projeto social-democrata. Mas tal como o seu mentor Miliband, também era um crítico perspicaz desse projeto. O argumento fundamental de Social Democracy and Industrial Militancy era que quando o Partido Trabalhista alcançou a gestão do estado britânico não só teve que reprimir os sindicatos e a esquerda, mas acabou também dando prioridade aos interesses dos empregadores sobre os do próprio eleitorado do partido.

Leo viu isto como uma limitação estrutural, não como uma falha moral. O Partido Trabalhista simplesmente nunca descobriu como conciliar as obrigações adquiridas ao dirigir uma economia burguesa com os seus objetivos declarados de promover os interesses da classe trabalhadora. Desenvolvendo este argumento, passou a examinar como os partidos sociais-democratas da Europa estavam a sucumbir a estas mesmas obrigações durante os anos 1970 e 1980. Publicou uma série de artigos inovadores sobre a mudança da luta de classes para a gestão de classes, a última leva coligida em Working-Class Politics in Crisis de 1986. Estas análises ainda têm um grande valor hoje em dia, quando uma esquerda revitalizada procura mais uma vez ressuscitar o Estado Providência.

No final dos anos 1980, Leo tinha-se imposto como um dos principais críticos de esquerda da social-democracia europeia. No interior da sua disciplina da Ciência Política, isto significava enfrentar uma certa dose de escárnio vinda dos seus colegas. No trabalho académico dessa altura, é frequentemente citado por cientistas políticos americanos só para ser rapidamente descartado como excessivamente pessimista ou simplista. Para os cientistas políticos progressistas e heterodoxos dos anos 1990, a moda era apontar para a crescente estabilidade do Estado Providência, para os seus sucessos em navegar as pressões da globalização e para a sabedoria prática da viragem para a Terceira Via de Tony Blair e Gerhard Schröder.

Mas, de facto, Leo estava anos à frente da disciplina. A sua análise profunda da tendência conservadora dos partidos sociais-democratas, a distância cada vez maior da classe trabalhadora, o desastre iminente da tomada de poder gestionária – tudo isto é agora o padrão nos círculos centrais da disciplina quando se tenta perceber a crise que envolve o mundo Atlântico. É sem dúvida por isto que a Verso publicou um segunda edição da sua brilhante crítica do projeto Blairista no Partido Trabalhista, The End of Parliamentary Socialism, publicada no auge da euforia da Terceira Via e que hoje parece profético.

Contudo, apesar de Leo ser um crítico sem reservas da social-democracia “realmente existente”, a sua alternativa era aprofundar e construir sobre os seus avanços e não propor uma alternativa mítica “revolucionária”. Esta era a segunda direção da sua investigação. Uma vez que reconhecia que a era das revoluções há muito que tinha passado, Leo era obrigado a manter o realismo, a pensar sobre estratégia prática, uma via real para a revitalização da classe trabalhadora – em vez de se limitar a discutir em termos gerais a necessidade de uma rutura revolucionária do capitalismo.

Para ela, a única forma de sair do capitalismo era construindo a social-democracia, não contornando-o.

Isto obrigava-o a pensar sobre como as derrotas dos anos 1970 poderiam ter sido evitadas, como um movimento dos trabalhadores poderia ser reconstruído, como a próxima geração de líderes poderia navegar melhor nas limitações do capitalismo. Este foi um tema dominante do seu trabalho durante a era Reagan-Thatcher e uma boa amostra disso foi publicada em 2001 no seu Renewing Socialism: Democracy, Strategy and Imagination. Nestes ensaios, apesar de reconhecer os falhanços dos anos 1970, agarrava-se firmemente à centralidade da classe trabalhadora para que um projeto pudesse ter futuro.

Longe de ser dogmático, contudo, Leo era extremamente sensível ao facto de se estar a viver numa era capitalista muito diferente daquela na qual a esquerda tinha construído as suas instituições. Central para essa diferença era o caráter profundamente mais globalizado do sistema na viragem do século. Analisar as suas dinâmicas, compreender o seu desenvolvimente e, sobretudo, localizar o papel do Estado na sua evolução foi o terceiro tema que guiou o seu trabalho. Culminou no The Making of Global Capitalism, co-escrito com Sam Gindin, no qual oferecem uma descrição arrebatadora não apenas da economia global mas das fundações políticas nas quais se apoiava.

A internacionalização do capital não tinha sido levada a cabo por forças económicas autónomas ou por uma mudança tecnológica, argumentava, mas tinha sido sempre um projeto político imposto pelo Estado dos EUA. E a globalização da acumulação capitalista era acompanhada pela globalização de uma forma particular de Estado – as duas andavam a par. Portanto, a disseminação do capitalismo andava a par com o poder e a influência da forma estatal que tinha sido incubada pela classe dominante dos EUA – daí um aprofundamento da hegemonia americana. A implicação era clara – se o malabarismo do capitalismo global era uma criação política, podia ser vulneráve a mudanças no firmamento político.

Perceber como a luta contra este capitalismo se desdobraria iria sem dúvida ser o desafio a que Leo se dedicaria se tivesse vivido para continuar o seu projeto. Estava absolutamente convencido de que se tinha alguma hipótese de ser bem sucedido, seria através de um movimento de trabalhadores revivido, criativo e democrático. Leo gastou toda a sua vida a tentar construir instituições que iriam contribuir para esse movimento. Desde o departamento de polític da Universidade de York, ao qual se juntou em 1984 e ajudou a construir até se tornar uma potência da economia política, até ao Register, a várias iniciativas políticas na sua amada Toronto, até à conferência anual Materialismo Histórico – Leo foi um construtor infatigável de instituições.

Disponha de uma espantosa generosidade de espírito. Leo foi uma das pessoas mais instintivamente democratas que já conheci. Em 2010, ajudei a organizar uma conferência em Delhi sobre imperialismo, na qual Leo era um dos oradores convidados. Era, creio, a sua primeira visita à Índia. Durante os vários dias da conferência, Leo estava constantemente cercado pelos ativistas locais, mais do que qualquer outro participantes. Encontrava-o frequentemente no relvado fora do recinto, com as suas longas pernas dobradas de forma desconfortável sob o seu corpo, tão absorto numa conversa com um ativista dos direitos dos trabalhadores ou um dirigente partidário que o tinha de arrastar. De cada uma dessas vezes, ficava com o número da pessoa com a qual estava a falar, prometia enviar-lhe materiais e contactos – e depois dava seguimento a essas promessas. Referia.se sempre a eles nas nossas conversas como “o camarada de...” nunca como “aquele tipo” ou qualquer outra designação do género.

Quando ele e Colin me convidaram para me juntar a eles como co-editor do Register, senti-me honrado, mas também algo trepidante. Eu vinha com Greg Albo. Greg era um estudante de Leo e conhecia-o, a ele e a Colin, há anos. Eu era o novato, caindo de paraquedas num projeto que tinha estado ancorado em Toronto durante duas décadas e que tinha construído a sua cultura interna, profundas e duradouras amizades e histórias políticas partilhadas.

Naturalmente, tinha algumas dúvidas sobre como me encaixaria nesta operação. Leo não apenas me integrou na cultura do jornal mas insistiu que integrasse o meu cunho pessoal. Convidou-me a construir uma comité editorial em Nova Iorque, para contrabalançar o comité de Toronto; ele e Colin asseguraram escrupulosamente que qualquer discussão significativa entre os três editores de Toronto – sendo Greg o terceiro – apenas seria levada a cabo na minha presença e convidou-me a trazer os meus pontos de vista e especialização para a revista com muito entusiasmo.

Fê-lo sem nenhum esforço. Isso não era proveniente de uma fidelidade trabalhada a princípios morais ou de um ajuste relutante às circunstâncias. Era natural para ele. Certa vez, estava eu em Toronto para uma conferência que o Leo tinha organizado, chegou ao meu hotel de manhã cedo para nos conduzir para a universidade, que ficava fora da zona urbana. Demorei um bocado a descer para entrar no carro e Leo estava visivelmente perturbado. Fiz a observação leviana de que eram apenas alguns minutos e, de qualquer forma, que mal faria se nos atrasássemos um pouco? Leo respondeu, com algum desconforto, que a apresentação de abertura seria feita por alguém que tinha viajado várias centenas de quilómetros e não queria desrespeitar essa pessoa chegando tarde.

Não me lembro de quem era. Sei que não era nenhuma das estrelas do circuito das conferências de esquerda. E iriam estar pelo menos uma centena de pessoas no público, por isso provavelmente nem notariam a sua chegada tardia. Mas Leo não estava preocupado com isso. Estava simplesmente motivado pela sua obrigação para com ele, enquanto camarada, um ser humana.

Assim era o Leo. Conheci poucas pessoas na minha vida tão afetuosas, tão empáticas, absorvendo cada grama de energia e de conhecimento que as suas experiências lhes proporcionem. Era um pilar da esquerda internacional. Mas também um querido amigo. E um mundo parece um pouco mais frio sem ele.


Vivek Chibber é professor de Sociologia na Universidade de Nova Iorque. É editor do Catalyst: A Journal of Theory and Strategy.

Texto publicado originalmente na Jacobin.

Tradução de Carlos Carujo para o Esquerda.net.