Joachim Hirsch e a teoria materialista do Estado

20 de abril 2025 - 14:09

Por razões estruturais, o Estado atua no interesse do capital, mesmo na ausência de pressão de um lóbi poderoso, uma vez que a sua existência e possibilidades de ação dependem do sucesso do processo de acumulação. Nesta entrevista, Hirsch reflete sobre o debate teórico sobre o Estado que aconteceu na Alemanha Ocidental nos anos 1970.

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Estado
To Edgar Poe (The Eye, Like a Strange Balloon, Mounts toward Infinity)

Por ocasião da publicação da sua obra principal em francês, “La théorie matérialiste de l'État” (Syllepse), publicamos uma entrevista com Joachim Hirsch, teórico marxista do Estado e protagonista do debate na Alemanha Ocidental sobre a “derivação do Estado” (Staatsableiting). Nesta entrevista, Hirsch discute a relação entre o Estado e o capital e os limites estruturais do reformismo estatal.

Este debate centrou-se nas razões estruturais para a existência, sob o capitalismo, de uma instituição particular de constrangimento, nomeadamente o moderno Estado de direito. Demonstra que os contornos específicos e historicamente únicos deste Estado (a sua “forma”) estão diretamente enraizados no funcionamento do modo de produção capitalista e podem, portanto, ser dele derivados. Para além de Joachim Hirsch, participaram Elmar Altvater, Freerk Huisken, Rudolf Wolfgang Müller, Christel Neusüß, Claudia von Braunmühl, Sybille von Flatow e Margaret Wirth.

Devido à falta de traduções, este debate passou praticamente despercebido em França. Apenas uma coletânea editada por Jean-Marie Vincent, L'État contemporain et le marxisme (Maspero, 1975), está acessível ao público francófono. Esta entrevista acompanha a publicação de “La théorie matérialiste de l'État”, mais atual do que nunca, numa época de autoritarismo em França, de globalização em turbulência e de regresso do planeamento sob a pressão da crise ambiental, e convida-nos a ir além da teoria do Estado de Nicos Poulantzas.

 

Pode dizer-nos em poucas palavras como se tornou marxista?

Fui aluno de Adorno e Horkheimer, o que implicava uma certa proximidade com a teoria de Marx. Isto no contexto do marxismo “ocidental”, ou seja, um marxismo aberto e não dogmático, que ocupava um lugar central nos debates de Frankfurt. Embora não fosse membro da SDS (Sozialistischer deutscher Studentenbund), assistia aos seus eventos. A isto se juntava o contacto com colegas como Helmut Reichelt e Hans-Georg Backhaus, que se interessavam muito por Marx. Finalmente, o movimento estudantil teve uma grande influência sobre mim neste domínio. A leitura de Marx era indispensável neste contexto.

 

Em retrospetiva, que papel atribuis ao artigo sobre “a ilusão do Estado” no âmbito da teoria marxista do Estado desenvolvida na Alemanha Ocidental?

Estás certamente a referir-te ao artigo de Wolfgang Müller e Christel Neusüß: “Die Sozialstaatillusion und der Gegensatz von Lohnarbeit und Kapital” (A ilusão do Estado Seocial e a oposição entre trabalho assalariado e capital), publicado em 1970 na revista Sozialistische Politik [1]. Este texto foi fundamental para o debate e, de facto, o seu ponto de partida, uma vez que colocava a questão central para a teoria materialista do Estado, nomeadamente a razão pela qual o Estado burguês pode ter uma “autonomia relativa” em relação ao capital, como Nicos Poulantzas o formulou mais tarde, mas é, de facto, parte integrante das relações de produção capitalista e, portanto, permanece sujeito à sua dinâmica. Esta “particularização” do Estado, como foi designada no debate da Alemanha Ocidental, constitui um ponto de partida decisivo para a análise dos processos políticos, nomeadamente no que respeita aos limites do reformismo estatal.

 

Porque é que a teoria marxista do Estado se desenvolveu sobretudo na Alemanha Ocidental? Que papel desempenhou neste contexto o ambiente intelectual de Frankfurt am Main, onde, entre outras coisas, foi publicada a coleção de livros Gesellschaft Beiträge zur Marxschen Theorie [Contribuições da Sociedade para a Teoria Marxiana]?

Certamente que teve algo a ver com o movimento estudantil, que na Alemanha Ocidental – ao contrário do que acontecia em França, por exemplo – estava fortemente orientado para a teoria. Além disso, nos anos 60, pela primeira vez desde a criação da República Federal, o Partido Social-Democrata entrou no governo, o que alimentou o debate sobre as possibilidades e os limites da política reformista.

Neste contexto, o Partido Comunista, que tinha sido anteriormente proibido, foi re-autorizado [sob a denominação DKP], o que chamou a atenção para a sua teoria do capitalismo monopolista de Estado e para as suas implicações políticas. Frankfurt era importante porque, como já dissemos, havia ali uma longa e ainda viva tradição de estudo da teoria marxista, e a teoria do Estado e da administração – que não era apenas de orientação marxista – era uma importante linha de investigação. Isto refletiu-se na publicação da coleção Gesellschaft.

 

Houve interesse noutros países pelos avanços da teoria marxista do Estado da Alemanha Ocidental? Vem-me à memória a obra State and Capital, de John Holloway e Sol Picciotto [2], mas que mais poderia ser acrescentado a esta recolha de textos?

A ligação com a Grã-Bretanha foi muito importante. Os meus colaboradores e eu participámos várias vezes em reuniões da Conferência dos Economistas Socialistas e discutimos aí as nossas abordagens. Muitas pessoas no Reino Unido também se debruçaram sobre estas questões, incluindo de forma crítica. John Holloway e Bob Jessop estiveram na Universidade de Frankfurt a trabalhar connosco. Estivemos de seguida em contacto com Nicos Poulantzas, que ensinou durante um semestre em Frankfurt, e que, infelizmente, não aceitou a cátedra que lhe tinha sido oferecida.

A nossa teoria do Estado continua bem viva na América Latina, o que se explica pelo facto de ter sido convidado várias vezes para dar conferências em universidades do México, Argentina, Brasil, Equador e Colômbia. Os meus principais escritos foram traduzidos para espanhol e brasileiro. O mesmo se aplica ao Japão e à Coreia do Sul. O contacto com este país estava ligado nomeadamente ao facto de vários coreanos terem estudado comigo em Frankfurt.

 

Através de que meio tomaste conhecimento da teoria da regulação e em que medida contribuiu para a tua arquitetura teórica?

Foi um colega de Constance que me chamou a atenção para a teoria francesa da regulação, ou seja, Michel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz e outros. Esta teoria era ainda pouco conhecida na Alemanha. Para mim, representou um grande enriquecimento, nomeadamente no que diz respeito à análise de processos políticos concretos, à sucessão de formações capitalistas históricas e às dinâmicas de crise subjacentes. Em termos concretos, trata-se da transição do fordismo para o pós-fordismo, associada à viragem neoliberal após a grande crise dos anos 1970. Pela minha parte, tentei ligar a teoria da regulação à teoria do Estado, o que constituiu um certo vazio no debate francês.

 

De um modo geral, como descreverias a receção e o desenvolvimento da escola de regulação no marxismo alemão?

Foi muito importante, especialmente nos anos 80, e houve muitos colóquios e publicações sobre o tema, também em colaboração com colegas austríacos. Depois disso, registou-se um declínio acentuado. Isto está provavelmente ligado ao facto de o interesse pela teoria crítica do Estado ter diminuído em geral. As razões para este facto são bastante complexas. Uma delas é o facto de os Verdes e o Die Linke terem acentuado uma orientação para política parlamentar tradicional. Além disso, perante a ofensiva neoliberal de privatizações e desregulamentação, a defesa do Estado existente parece estar subitamente na ordem do dia.

 

Contrariamente à ideia de que os Estados desapareceriam com o avanço da globalização, nos anos 90 falaste do “Estado nacional competitivo”. Mais tarde, em Teoria Materialista do Estado, parece ter-se tornado num Estado competitivo internacionalizado. Poderias ilustrar esta transformação? E, nesta base, como analisar o Estado hoje, num contexto de globalização decrescente?

A tese do desaparecimento ou da crescente insignificância do Estado (nacional) tem sido muito popular desde há algum tempo – como reação às consequências da ofensiva neoliberal e da globalização que se lhe seguiu – não só na ciência política dominante, mas também na esquerda. Basta pensar no livro Império de Michael Hardt e Antonio Negri.

A evolução histórica refutou esta tese. Isto porque o capitalismo, reestruturado pelo neoliberalismo, entrou ele próprio em crise, o que contribuiu para pôr em causa as esperanças depositadas nos benefícios da globalização. Associadas a esta dinâmica, as oposições geopolíticas ganharam relevo. A guerra na Ucrânia é um exemplo marcante, que não pode ser entendido sem referência à rivalidade entre os Estados Unidos, a China, a Rússia e a União Europeia.

Existe, porém, uma tendência para a internacionalização, o que torna importante a existência de um nível político e institucional para além do sistema nacional, sem que este perca a sua importância. A tendência para a internacionalização explica-se, nomeadamente, pela emergência de necessidades regulamentares que não podem ser satisfeitas a nível nacional. As consequências das alterações climáticas são prova disso. Além disso, apesar dos esforços manifestos dos Estados para alcançar um certo grau de autossuficiência, a importância do comércio internacional e do investimento transfronteiriço não está a diminuir, o que continua a exigir uma regulamentação adequada.

Os meus colegas Ulrich Brand e Christoph Görg falaram de uma “condensação de segunda ordem” a propósito deste nível internacional. Trata-se de uma referência a Poulantzas, que também descreveu o Estado como uma “condensação institucional das relações de classe”. Isto enquadra-se bem no sentido da internacionalização do Estado. De facto, os escritos de Poulantzas contêm já algumas indicações muito importantes sobre esta questão.

 

Atualmente, a investigação centra-se na forma como determinados grupos de pressão conseguem influenciar as decisões políticas. Claus Offe veria por detrás desta abordagem uma conceção instrumentalista do Estado. Também incorporaste no teu trabalho a noção de seletividade estrutural. Em que medida é que esta componente estrutural do Estado, enquanto Estado no modo de produção capitalista, pode ser aplicável para explicar as decisões políticas?

A influência dos grupos de pressão nas decisões do Estado é, claro, uma questão importante. Mas não é suficiente provar o carácter capitalista do Estado, mesmo se partirmos do princípio, como é geralmente o caso na ciência política estabelecida, que o lóbi capitalista é mais forte do que os outros.

De facto, por razões estruturais, o Estado atua no interesse do capital, mesmo na ausência de pressão de um lóbi poderoso, uma vez que, enquanto Estado fiscal, a sua existência e possibilidades de ação dependem do sucesso do processo de acumulação. Por conseguinte, é obrigado a criar condições que o garantam. Isto significa que, se atuar no interesse – a longo prazo – do capital, pode entrar em conflito com certas frações do capital, mesmo poderosas. Offe referiu-se a este facto como “o interesse do Estado por si mesmo”. A expressão reenvia-se a esta ligação estrutural. Mas ele justificava isto mais por uma teoria da ação do que por uma teoria estrutural. Ele estava muito longe de uma teoria materialista do Estado.

 

Face às alterações climáticas e à destruição mais generalizada da natureza, o debate sobre a economia planificada, nomeadamente sobre o planeamento ecológico, eclodiu no seio da esquerda francesa. Como é que o teu trabalho sobre o Estado capitalista pode contribuir para repensar o planeamento?

De facto, a natureza do Estado e as suas formas de intervenção devem mudar de forma decisiva. Isto não está apenas ligado à crise ecológica, mas também ao facto de o modelo dominante de acumulação, com o seu consumo de recursos, estar a encontrar cada vez mais claramente os seus limites. Para que o processo de valorização do capital continue, são necessárias mudanças profundas na estrutura da produção, nas formas de consumo e nos estilos de vida. Estas mudanças não podem ser impostas pela regulação do mercado. Requerem uma intervenção planeada do Estado, como já acontece em parte atualmente. Por exemplo, a limitação das emissões de CO2 através de leis e proibições estatais.

Para ir ainda mais longe, está a tomar forma uma estratégia de política industrial que visa reforçar novos sectores-chave como base para um modelo de acumulação modificado: as indústrias farmacêutica e da saúde, o processamento de dados e a comunicação digital, e a inteligência artificial. De facto, a crise da Covid-19 teve o efeito de promover e legitimar estas mesmas estratégias de política industrial. No entanto, é preciso ter cuidado para não ver esta evolução como uma abertura democrática. A tendência é para um maior autoritarismo estatal. Enquanto existir a relação capitalista, o Estado é um Estado capitalista; é parte integrante dessa relação de produção e está estruturalmente concebido para a manter. Isto exige uma modificação periódica, geralmente em resultado de uma crise, do modo de acumulação e regulação, no qual o Estado desempenha um papel importante.


Entrevista de Benjamin Bürbaumer.


Notas:

[1] Este texto foi traduzido em inglês.

[2] John Holloway et Sol Piccioto (dir.), State and Capital. A Marxist Debate, Londres, Edward Arnold, 1978. Obra em acesso livre aqui.


Publicado originalmente na revista Contretemps.