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"Há um risco de ruptura democrática no Brasil"

Numa entrevista dada ao Esquerda.net, Marcelo Freixo, deputado federal do PSOL pelo Rio de Janeiro, mostrou preocupação com os avanços ditatoriais do governo brasileiro e sublinhou a necessidade de ser criada uma frente ampla de frentes progressistas.

Como pré-candidato à Câmara do Rio de Janeiro, o que achas da coligação PT-PSOL para as eleições municipais de 2020?

A frente de esquerda brasileira é não só muito importante, mas também decisiva. Há um governo extremista e violento e uma ruptura democrática no Brasil.

Bolsonaro foi eleito, mas seu governo é fruto da democracia totalitária. Por trás da eleição, há um governo totalitário que rompe com o processo democrático importante do país.

Hoje não é preciso um tanque ou fechar o Congresso para se ter um governo autoritário. Há um risco iminente de ruptura democrática mais profundo no Brasil. É preciso que as forças progressistas brasileiras entendam que as eleições nas cidades, de 2020, são muito importantes para uma inflexão do processo democrático brasileiro. O Rio de Janeiro é muito emblemático porque é o berço do bolsonarismo. É lá que nasce essa força política mais conservadora e que tem o maior retrocesso desde 1964 na história do Brasil.

Uma vitória do campo progressista no Rio de Janeiro pode ser muito importante no resto do Brasil e pode ser um reflexo muito grande para 2022. A experiência de uma frente ampla, reunindo não só o PSOL e PT, mas todo o campo progressista contra o Bolsonaro, é bem vinda para um debate de programa e de articulação.

O Tribunal de Justiça do Rio decidiu censurar o especial de Natal do Porta dos Fundos. Podes comentar essa decisão?

Este juiz teve outras posições polémicas mas não cabe a nenhum de nós avaliar o Judiciário a partir de nenhum juiz. Essa é uma medida pela qual todo o Judiciário tem de se responsabilizar. Se não, a gente personaliza decisões judiciais e acaba não fazendo um debate mais profundo sobre responsabilidade democrática, combate à censura, garantias e direitos pelos quais todo o poder judiciário tem de se responsabilizar.

Evidentemente, é absurdo desvincular um programa de humor por um valor moral. A gente devia questionar isto. Não há nada mais contrário ao pensamento cristão do que a existência de moradores em situação de rua. Isso é muito mais grave que qualquer programa de humor. Não se vê nenhuma medida judicial contra a prefeitura por aumentar os números de moradores em situação de rua, por exemplo, no Rio de Janeiro. Estes valores deviam ser questionados e trazidos para um debate.

Isto não pode se remeter a um debate de mérito – gostar ou não do programa do Porta dos Fundos. Esse não é o debate. Posso gostar ou não gostar, que é sem graça ou não, tudo isso está na norma democrática. O que não se pode é ter o elemento da censura disfarçado de um elemento moral cristão, o que fere o Estado laico, na própria decisão do poder judiciário. Espero que se reverta essa decisão.

Depois das mobilizações no Chile, no Equador e na Bolívia, há a possibilidade de um ressurgimento da esquerda revolucionária na América Latina?

Espero que sim. Um dos temas que vou discutir aqui em Portugal é que essa revolução não pode ser um endereço, não pode ser uma linha de chegada, tem de ser um processo permanente no dia-a-dia e a nossa capacidade mais fraterna de nos organizarmos enquanto forças políticas em que as nossas diferenças não podem ser tratadas como maiores do que o nosso desafio perante a ruptura democrática que hoje está colocada no Brasil.

O Brasil tem um dos governos mais à direita no mundo, visto como referência da extrema-direita mundial. Por mais que as forças progressistas possam ter divergências, precisam de ser tratadas como menores do que o desafio maior de entender o que está a acontecer com o país. A situação pode piorar. Estamos no primeiro ano da presidência de Bolsonaro, que tem 30% de aceitação. As medidas mais absurdas, defensoras da ditadura, colocam isto no lugar do inaceitável.

É importante que a esquerda tenha um programa para as cidades, a economia. A gente tem um problema mundial, o modelo neoliberal dialogando com forças totalitárias porque a democracia passou a ser uma ameaça para o modelo de um capitalismo produtivo. Qual é a nossa proposta económica, qual é a nossa proposta concreta para a segurança, a nossa proposta capaz de unificar o campo progressista e chamar as pessoas para acreditarem novamente na política?

Bolsonaro ganha uma eleição dizendo que a política não presta e ele nega a política, o que é uma farsa, porque ele sempre fez parte da política. Qual é a política que a gente pode ser apresentar para que sejamos o establishement, sem que sejamos a velha política, e ele possa ser o novo que nunca foi? Como a gente dialoga com uma população que deixou de acreditar em toda a representatividade política? É preciso fazer algo diferente. A nossa democracia não está no passado, está em algo que virá.

 

Achas que o establishment vai continuar a aceitar e a sustentar um governo de base fanática e envolvido em escândalos?

São duas coisas diferentes. Se tem um setor económico, que é um setor vinculado ao mercado, que não é necessariamente bolsonarista, mas dialoga com o bolsonarismo, e acha aceitável flexibilizar a democracia para que a bolsa, o mercado, as ações, possam estar bem, têm de ser chamados à responsabilidade. É preciso um diálogo que quebre as bases bolsonaristas. Nem todos os liberais são necessariamente fascistas. Saber separar isso e gerar quebra no bolsonarismo é muito importante. Isso nao significa que são aliados eleitorais, mas significa que podem ser aliados para garantir a democracia, até para podermos ser aliados dentro da democracia. São escalas diferentes de alianças. Uma aliança pela democracia não é uma aliança eleitoral e a gente precisa de estabelecer um diálogo com um setor muito mais amplo da sociedade. E estabelecer alianças eleitorais, programáticas, que possam trazer para o campo progressista a possibilidade de dialogar com setores mais populares que votaram bolsonarismo.

Bolsonaro não foi eleito com o voto das elites. Foi eleito pelos setores pobres. É importante entender porque é que essa população vota Bolsonaro.

De um lado, é a parte económica; do outro, é o fanatismo, que marca boa parte dos ministérios de Bolsonaro. Quanto a esse debate com o fanatismo, a gente de precisa apresentar uma razão política que supere isso. É muito grave ter um ministro da educação que age como age. Uma parte dos ministros de Bolsonaro dizem que a terra é plana.

Bolsonaro produz a própria crise no seu governo. A agenda do governo Bolsonaro é dada pelo próprio Bolsonaro. É uma estratégia de quem quer governar como se não fosse parte da política, como se fosse anti-sistémico.

Bolsonaro aprovou a medida de “Juiz de Garantias”, contrariando Sério Moro. O que pensas sobre essa decisão de Bolsonaro?

O juiz de garantia é a garantia de que o juiz da investigação não é o mesmo que decide o caso. Não aumenta o custo e torna o processo mais transparente. Um juiz não pode agir como um promotor, e talvez por isso Sérgio Moro fosse tanto contra esta medida.

Bolsonaro não vetou, contrariando o interesse de Sérgio Moro, porque sabia que seria derrotado no Congresso. Foram 200 dias debatendo o pacote anti-crime e o juiz de garantia foi aprovado por ampla maioria da casa. Foi um debate muito profundo feito por um setor republicano, não só pela esquerda.

Bolsonaro seria derrubado no Congresso. preferiu sacrificar Sérgio Moro a sacrificar seu nome no Congresso. Sem contar que o próprio STF também é favorável.

Foi um debate que a gente ganhou na sociedade e foi uma derrota para Sérgio Moro, o que faz bem para o Brasil.

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