À hora a que alinhavo este texto acaba de entrar em vigor uma trégua entre israelitas e palestinianos. Mais uma. Haverá uma estatística final com o número de vítimas e a destruição provocada. Até ao próximo reacender do conflito. E assim sucessivamente. Provoca uma enorme perplexidade a forma como a chamada comunidade internacional olha e reage a este conflito entre israelitas e palestinianos, quase como algo de inevitável em relação ao qual nada possa ser feito. Um olhar muito diferente em relação a outros conflitos ou guerras.
É verdade que o confronto dos últimos cinco dias não foi uma surpresa. Os picos frequentes de tensão e violência indicavam que poderia estar para chegar uma crise maior. E chegou. E pode reacender-se a qualquer momento.
Infografia de OCHA, United Nations Office for the Coordination of Humanitarian affairs. A Faixa de Gaza cercada por um muro que impede a passagem para Israel e outro na fronteira com o Egipto.
É bom recordar que a Faixa de Gaza, palco destes cinco dias de quase guerra, é um território de 360 km quadrados, com cerca de 2,3 milhões de habitantes, e que sofre um bloqueio desde 2007. Sim, desde 2007, há mais de 16 anos. O desemprego ronda os 50%, sair e entrar deste território é tarefa quase impossível para a esmagadora maioria dos palestinianos. É um território marcado por elevada pobreza, dependente de abastecimentos que entram por um único posto de fronteira sob controlo israelita. São mais de 300 camiões por dia, muitos deles com ajuda humanitária.
Israelitas e palestinianos continuam esta guerra sem fim enquanto, de um lado e do outro, os governos perderam parte substancial da base de apoio.
Crise israelita
Os israelitas, de tanto deslocarem o voto para a direita, acordaram agora para uma realidade perigosa. Têm sido semanas consecutivas de protestos e manifestações para tentar travar uma reforma do sistema de justiça com a qual o Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu pretende retirar poderes ao Supremo Tribunal, colocando-os nas mãos do governo e do Parlamento. Não surpreende que a cosmopolita Telavive se manifeste em defesa da democracia, contra o Governo de Netanyahu, mas as manifestações também em Jerusalém (onde o factor religioso tem forte peso) e Haifa (terceira cidade israelita em número de habitantes) acrescentam significado. Num quadro político-partidário em que a Esquerda praticamente desapareceu do mapa, os israelitas estão a perceber que o céu lhes pode cair em cima e que Israel pode vir a ser o mais recente exemplo de um sistema democrático raptado por um regime autoritário. O actual governo israelita disse ao que vinha e já provou que é para levar a sério. Com Benjamin Netanyahu de regresso ao posto de Primeiro-Ministro, aliado a fundamentalistas religiosos e a colonos de extrema-direita, dificilmente a situação poderia ser outra. Meir Shalev, recentemente falecido, grande figura da esquerda e da literatura israelita (a par de Amos OZ e David Grossman), opositor à ocupação dos territórios palestinianos, já tinha alertado, em 2019, que Benjamin Netanyahu colocava “em risco a própria existência do Estado de Israel”.
Crise palestiniana
Do lado palestiniano, Mahmoud Abbas, 88 anos, preside à Autoridade Palestiniana (AP) mas já não tem apoio suficiente que o legitime na função. O sucessor e antigo compagnon de route de Yasser Arafat nunca mais foi a votos desde que foi eleito em 2005. Lidera também a Organização de Libertação da Palestina e o partido político Fatah, mas tudo isso de nada tem valido aos palestinianos. A Autoridade Palestiniana, que não tem poder sobre todos os territórios palestinianos, sem eleições desde 2006 (nas quais o Hamas venceu) e por consequência com a legitimidade ferida de morte, navega entre os interesses dos actuais dirigentes, a colaboração com Israel em matéria de segurança e um cada vez maior antagonismo da sua própria população, sendo cada vez mais frequentes os conflitos entre as forças da AP e grupos palestinianos que já não aceitam a actual liderança.
Os territórios palestinianos, divididos em termos geográficos, continuam também politicamente divididos desde 2007, com o Hamas a controlar a Faixa de Gaza e a Fatah a controlar a Cisjordânia através da AP. Mas a Cisjordânia pode rapidamente fugir ao controlo da Autoridade dominada por Mahmoud Abbas. Um forte sinal de vontade de resistência para além das forças políticas tradicionais (e dominantes) na Cisjordânia é a formação dos “Leões de Nablus” (“cova dos leões”, em tradução mais literal…). Este novo grupo dado a conhecer no verão de 2022, vê na resistência armada o único mecanismo de libertação da Palestina. Recentemente, Nablus foi alvo das ofensivas mais mortais e mais violentas do exército israelita.
A origem do problema
Sempre que estamos perante estes picos de violência, não é raro ver comentadores e analistas procurarem causas próximas (no tempo) para explicar os acontecimentos. Pode, de facto, ser um elemento de análise, mas será apenas aquilo que habitualmente designamos por “espuma dos dias”. Evidentemente que os acontecimentos em que morrem pessoas não podem ser desvalorizados, mas eles são apenas o resultado de outros acontecimentos, esses sim, importantes e que importa descodificar.
Cisjordânia e Jerusalém Oriental cada vez mais preenchidas por colonatos israelitas. A Cisjordânia é toda a área dentro da linha vermelha, mas apenas as zonas a verde estão sob a Autoridade Palestiniana e ainda assim sujeitas a constantes incursões do exército israelita.
A violência que emerge com frequência em Israel e na Palestina tem como causa principal a ocupação israelita dos territórios palestinianos. Essa é a causa mãe dos problemas que se vivem na região. Não adianta arranjar argumentos para tentar iludir a questão, nem adianta acusar de antissemitismo quem não valida os argumentos dos que até agora outra coisa não têm feito a não ser apertar um cerco que deixa os palestinianos em pequenas bolsas de terreno, cada vez mais estreitas.
Os postos de controlo e a humilhação que os palestinianos sofrem, o muro de separação, as demolições de casas, o roubo de terras, a destruição das oliveiras e culturas, a construção e expansão de colonatos (há cerca de 500.00 colonos israelitas na Cisjordânia), o acesso condicionado à Esplanada das Mesquitas, as investidas do exército nas aldeias e cidades da Cisjordânia, as prisões constantes de palestinianos e as condições em que ficam presos, as punições colectivas, o cerco da Faixa de Gaza… e o Estado palestiniano tornado impossível.
Tem sido esta a história das últimas décadas. Se cada um de nós se colocar nos sapatos dos palestinianos, confrontado com esta realidade, qual seria a resposta? Que cada um ponha a mão na consciência e responda.
Por José Manuel Rosendo em Meu Mundo minha Aldeia.