França: uma reforma das pensões injusta, desnecessária e, por isso, impopular

20 de abril 2023 - 12:36

O Presidente Emmanuel Macron provocou uma crise política da maior gravidade e não pode continuar a presidir à França sem desistir desta reforma injusta. Artigo de Nathalie de Oliveira, deputada do PS eleita pelo círculo da Europa.

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Manifestação contra a reforma do sistema de pensões de Macron. Foto de TERESA SUAREZ/EPA/Lusa.

Depois de uma primeira tentativa de reforma das pensões, interrompida pelas mobilizações sociais e pela pandemia de Covid em 2020, o governo francês volta à questão em janeiro de 2023. O objetivo desta reforma é aumentar a idade legal de reforma de 62 para 64 anos e aumentar o número de pessoas que terão de pagar 43 anuidades.

Longe de ser uma reforma «de equilíbrio, de justiça e de progresso», esta reforma - tal como foi aprovada sem o assentimento do Parlamento mas com a brutalidade do Artigo 49.3 da Constituição - vai contribuir para agravar as desigualdades!

Uma reforma que tira mais tempo de vida aos mais pobres

A principal injustiça desta reforma é que atingirá mais duramente as pessoas mais pobres e as profissões mais precárias. Na idade atual da reforma, ¼ dos homens mais pobres já morreram, contra 6% dos mais ricos. Com uma idade legal de partida aos 64 anos, já terá morrido 1/3 dos mais pobres, aqueles que muitas vezes têm as profissões mais difíceis e penosas e que terão contribuído toda a vida para pagar a reforma das gerações anteriores, enquanto eles próprios nunca irão beneficiar. Entre os homens mais pobres e mais ricos, a diferença de esperança de vida é de treze anos (fonte: INSEE).

Os ricos podem escapar à reforma, os pobres não…

Ricos e pobres não são iguais face à morte, nem são iguais face às limitações desta reforma. Se os mais ricos dispõem de um património que lhes permite aposentarem-se mais cedo sem terem de contar com a solidariedade nacional, o mesmo não acontece com os mais pobres. Estes últimos não podem contar com outros meios de subsistência, e será sob forte pressão que permanecerão mais tempo no trabalho, quando exercem frequentemente as profissões mais penosas: 56% dos trabalhadores e 53% dos empregados pensam que a idade da reforma atual é já demasiado elevada, contra 48% para a média dos franceses. 

Os mais pobres sofrem mais com o trabalho

Este sofrimento no trabalho é vivido na carne, uma vez que a esperança de vida saudável em França é de 64 anos para os homens e 65 anos para as mulheres. Mas, mais uma vez, ricos e pobres não são iguais: aos 35 anos, um executivo pode viver em média mais 34 anos sem problemas sensoriais e físicos. Para um operário são menos dez anos.

Para os idosos desempregados, mais precariedade

Segundo o instituto de estatística (DREES), em França, 1,4 milhões de pessoas com idades compreendidas entre 53 e 69 anos não recebem rendimentos de atividade nem pensões de reforma. São na sua maioria mulheres, menos saudáveis, menos formadas. A taxa de pobreza nesta categoria atinge 32%.

Já se sabe qual foi o impacto do desfasamento da reforma de 60 a 62 anos: entre 125 mil e 150 mil pessoas suplementares beneficiariam de uma pensão de invalidez entre 60 e 62 anos, enquanto cerca de 80 mil pessoas suplementares passaram a receber um dos três principais apoios sociais. O aumento da idade de reforma aumentaria ainda mais o número de pessoas a necessitar de uma pensão de invalidez ou de apoios sociais, os quais apenas permitem um nível de vida muito baixo. Para os «idosos» nesta «câmara de precariedade» entre o emprego e a reforma, o governo já reduziu a duração dos subsídios de desemprego: esta classe etária encontra muito dificilmente um emprego depois de ter saído e ficará nessa condição socialmente injusta por mais tempo.

Esta reforma vai, portanto, precarizar os mais velhos do mundo do trabalho, penalizando os mais jovens. Com efeito, se os idosos permanecerem em emprego durante mais tempo, libertam postos de trabalho mais tarde, o que não deixa espaço para quem procura emprego.

Em aparência feminista, esta reforma precariza as condições de vida das mulheres

Em França, atualmente, as pensões das mulheres são 40% inferiores às dos homens. Isto explica-se simultaneamente por salários inferiores, por uma forte componente de profissões em part-time e por carreiras mais frequentemente prejudicadas por cuidados não remunerados, nomeadamente para criar as suas crianças. A tomada em consideração das licenças parentais no cálculo da reforma é insuficiente face à amplitude das desigualdades.

Ao prolongar a duração legal da contribuição, uma carreira incompleta torna-se mais penalizadora. Diante da precariedade entre o momento do trabalho e da reforma, homens e mulheres também não são iguais: segundo a autoridade para as condições de trabalho (ANACT), em 2019, 57% dos homens entre 55 e 64 anos estão em atividade, contra apenas 53% das mulheres. A questão do desemprego dos idosos, que se agrava com o adiamento da idade de aposentação, afeta mais as mulheres. O impacto da reforma pode, portanto, agravar - e muito - as desigualdades já existentes.

Por último, a tomada em consideração da dureza nas carreiras é desfavorável às mulheres. Enquanto os acidentes de trabalho e as licenças por doença aumentam fortemente entre as mulheres e diminuem nos homens, os critérios de laboralidade dizem respeito sobretudo às profissões mais masculinizadas. As profissões feminizadas são menos tidas em conta nos critérios de laboralidade, enquanto as mulheres estão sobre-expostas aos riscos psicossociais. Além disso, as condições de trabalho difíceis são invisibilizadas nas profissões de serviço num contexto privado. O governo anunciou querer ter mais em conta os critérios de laboralidade, mas os riscos psicossociais não serão integrados.

Assim, é extremamente provável que a reforma proposta pelo governo agrave as desigualdades entre mulheres e homens, não levando em conta a raiz das desigualdades. Por isso, antes de qualquer proposta de reforma, recomenda-se a criação de dispositivos de avaliação das atuais propostas. As políticas públicas devem deixar de ser cegas ao género, sob pena de aumentarem as atuais lógicas de desigualdade.

A pretensa necessidade da reforma descuida o contributo dos mais ricos e das grandes empresas. Melhor dito: não há necessidade alguma de realizar esta reforma!

Recorde-se, em primeiro lugar, que, segundo o Conselho de Orientação das Pensões, a trajetória financeira está controlada, com uma parte do PIB dedicada ao financiamento das pensões (o fundo de reserva criada pelo Lionel Jospin de 120 mil milhões de euros apesar de ter sido sacrificado desde 2010 sob governação de N. Sarkozy).

As medidas fiscais tomadas durante os cinco anos de Emmanuel Macron beneficiaram sobretudo os mais ricos e as grandes empresas: não se pode dizer que não há dinheiro ao mesmo tempo que se priva o Estado de recursos fiscais através de medidas que beneficiam os mais ricos e os mais poluidores.

Segundo a CGT (segundo maior sindicato em França, fundado em 1895), as despesas do Estado a favor das empresas elevam-se a 157 mil milhões de euros. As perdas da evasão fiscal são estimadas em 100 mil milhões. A simples redução dos impostos de produção representa uma perda de receitas de cerca de 15 biliões por ano desde 2020 e, em 2023-2024, 8 bilhões por ano. A supressão do imposto sobre o alto valor agregado das empresas retirou 8 biliões de euros por ano das receitas do Estado. As reduções de impostos beneficiaram os mais ricos (supressão do ISF, flat tax, redução do imposto sobre o rendimento) e privaram o Estado de 16 mil milhões de euros anuais. As despesas sócio-fiscais (nichos sociais e reduções das contribuições patronais) são estimadas em 64 mil milhões. E isso ainda não é nada comparado com os 544,5 biliões nas mãos dos bilionários franceses.

A França tem o suficiente para financiar o seu sistema de pensões, além do número de pessoas ativas a descontar. É uma questão de opção política: não redistribuir com justiça os ganhos de produtividade (um trabalhador rende três vezes mais do que nos anos 60)!

«Não queremos aumentar o custo do trabalho», ou como favorecer a captação do valor pelos mais ricos

Desde 2020, os 1% mais ricos capturaram quase dois terços de toda a nova riqueza, quase o dobro do rendimento dos restantes 99% da população mundial. Um imposto que tribute até 5% da fortuna de multimilionários e bilionários de todo o mundo poderia render 1,7 triliões de dólares por ano, ou seja, um montante suficiente para tirar 2 mil milhões de pessoas da pobreza e financiar um plano mundial de erradicação da fome. Na França, desde o início de 2020, os bilionários enriqueceram mais de 200 biliões de euros. Estes presentes cada vez maiores oferecidos aos mais ricos não são sustentáveis face ao grau de concentração da riqueza.

Na França, como noutros lugares do mundo, o aumento das desigualdades vem da partilha do valor das desigualdades. Nos últimos 10 anos, em média, por 100 euros de riqueza criada na França, 35 euros foram capturados pelos 1% mais rico dos franceses e 32 euros pelos 9% seguintes. Os 50% mais pobres receberam apenas 8 euros.

Porque é que o problema da distribuição do valor está ligado ao problema das pensões?

O governo justifica esta reforma com a recusa de aumentar o «custo do trabalho», ou seja, o que um trabalhador custa a uma empresa (salário e contribuições), ou seja, a parte da riqueza criada que reverte para a maioria mais pobre. O governo recusa-se a reequilibrar a distribuição do rendimento, tirando um pouco mais aos que recebem a maioria dos lucros criados pelo trabalho dos mais pobres.

Pode-se também encontrar recursos fiscais aumentando os salários. Um estudo mostrou, por exemplo, que, se as mulheres fossem pagas como os homens, receberíamos mais 5500 milhões de euros de contribuições para pensões. Porém, o governo opta por baixar as contribuições, esgotando assim o sistema de pensões, para fazer aumentar o salário líquido. Mas não se trata de um verdadeiro aumento, pois resulta em menos salário diferido.

Trabalhar mais, para quê?

Tornando mais difícil o acesso à reforma sem penalização, esta reforma corre o risco de encorajar o recurso pelos mais ricos a fundos de pensões para assegurar uma parte da sua reforma através de um sistema de capitalização. Este sistema de capitalização representa 250 mil milhões de euros de ativos para a poupança-reforma em 2020 e o projeto de Macron pode aumentar significativamente este número. Além de aumentar as desigualdades, este mecanismo tem consequências ecológicas devastadoras, uma vez que os fundos de pensões continuam a investir maciçamente em combustíveis fósseis, e nenhum compromisso sério em relação ao cumprimento do acordo de Paris foi assumido pelos principais gestores de ativos.

Como me defino contra esta reforma?

Socialista, defendo um mundo de solidariedade e medidas concretas para combater as desigualdades. Uma coisa é certa: a reforma proposta pelo Governo vai no sentido oposto ao que deveria ser feito. Em vez de reduzir as desigualdades, aumenta-as. Em vez de construir uma sociedade mais democrática, vai contra a opinião da maioria dos franceses. Em vez de construir uma sociedade ecológica, continua a aumentar a produção. Estou firmemente oposta a esta reforma e apoio o movimento social que a quer vencer.

Se os 10% mais ricos capturaram dois terços da riqueza produzida e se apenas 2% da riqueza dos bilionários franceses compensaria o défice do sistema de pensões, é imperativo usar todas as alavancas possíveis para que todos vivam verdadeiramente uma reforma digna e saudável.

«Vivemos mais tempo, por isso temos de trabalhar mais?»

Esse é o argumento “farol” do aumento da idade da reforma. Primeiro, podemos perguntar-nos se a vida deve ser inteiramente dedicada ao trabalho? Pensar numa sociedade mais justa e mais igualitária é também imaginar uma sociedade onde se trabalhe para viver e onde não se viva unicamente para trabalhar. O Conselho de Orientação das Pensões nota uma população ativa estável de cerca de 29 milhões de contribuintes até 2050.

Em segundo lugar, o aumento da esperança de vida estabilizou em França e a esperança de vida saudável não aumenta. Ela pode mesmo baixar se for prolongada a duração do trabalho das pessoas que exercem as profissões mais duras.

Por último, as anteriores reformas das pensões já reduziram a esperança de vida na reforma. Com a passagem da reforma para 62 anos, o aumento da duração do trabalho obrigatório é mais rápido do que o da esperança de vida. 

O Presidente Emmanuel Macron provocou uma crise política da maior gravidade e não pode continuar a presidir à França sem desistir desta reforma injusta. Como reconheceu Jacques Chirac em 1995, quando desistiu da proposta de reforma das pensões e dissolveu o parlamento, não se pode mudar a França sem os franceses!