A Expo’98 no país das “ilusões consensualistas”

01 de junho 2018 - 22:22

Vinte anos após a realização da Expo’98, publicamos excertos da agenda — “Caderno do Elefante 1998" — que a Associação Abril em Maio nesse ano dedicou ao evento e à propaganda em seu redor.

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Fogo de artifício na noite de encerramento da Expo+98. Foto Susana Barraghan/EPA

Há um século, as grandes Exposições Universais pretendiam quase sempre ser a demonstração da pujança industrial do país organizador, que aí se confrontava com os seus principais concorrentes. Eram a expressão do "progresso" na "ordem", de acordo com o positivismo reinante. Portugal vai fechar o ciclo das exposições deste século comemorando, pelo seu lado, a mais internacional das datas do seu passado (como fez a Espanha em 92), numa evocação dos Oceanos que remete, quer se queira quer não, para a "gesta marítima" há muito enterrada. O progresso já nem é o que era, e o século XXI não promete maravilhas, a não ser um renascido engodo pela navegação, feita agora frente a um computador. Sem muitas capacidades para mostrar (excepto a de ter feito a própria Expo), sem querer ostensivamente comemorar "a data", a Expo não passará de mais de uma Festa do Poder, uma estonteante diversão para "súbditos" embasbacados com as novas tecnologias, que outros trarão. Depois, ficará um bairro onde gente fina terá o Tejo a seus pés. Para os outros, será 4ª Feira, como dizem os brasileiros das agruras do pós-Carnaval.


Se se tem feito, no centenário da data famosa, a Expo-1598 (esqueçamos por momentos que, na altura, o rei era espanhol), ela teria sido feita por escravos africanos. A de hoje é feita por africanos que vieram pelo seu pé, que até se arriscam a ser corridos e tremem só de pensar que ela fica pronta. Em 1598, se não tivessem sido feitos escravos, aqueles africanos teriam ficado nas suas terras sem passar fome. Os que vêm hoje, se não viessem, passariam fome: vêm justamente e de livre vontade (se assim se pode dizer) para que as famílias não passem fome. Um apressado espírito aristotélico concluiria: logo, o que lhes ficou da "descoberta" foi, ao fim de 500 anos, a fome. Por isso mesmo, ainda nos agradecem deixá-los vir, sabendo embora que irão ser mal-olhados e mal-tratados, cá, como de resto sempre o foram, lá, quando éramos senhores coloniais. O que não sabem, esses homens, é que sem eles a Expo era bem capaz de custar o dobro. Ou talvez não, que os desempregados também se vendem por pouco dinheiro.


A Expo realoja ciganos. A Expo assegura-se de que os trabalhadores estão legais e usam capacete. A Expo patrocina (financia) livros, discos, espectáculos, desportos radicais, iniciativas culturais, regatas à volta do mundo. A Expo vai criar um espaço verde com milhentas espécies vindas dos quatro cantos do mundo - a Expo adora as plantas. A Expo vai ter um moderníssimo Oceanário - a Expo adora as espécies marinhas. A Expo promove programas com as escolas e põe os miúdos a adorar os Oceanos - como ela adora. A Expo preza o multiculturalismo, do que é prova a sua publicidade sub-aquática. A Expo esforça-se por não embarcar em triunfalismos cediços sobre a "gesta dos descobrimentos". Não restam dúvidas: a Expo é politicamente correcta e gosta de se rodear de gente tão politicamente correcta quanto possível. E se o politicamente correcto fosse apenas um encobrimento pelo que "deve ser dito" e pelo que deve ser feito" de um projecto ideológico e político mais do que duvidoso? Ou não o será a ostentação de um País inventado para a ocasião por políticos que se limitarão a “inchar” para a ocasião? Entretanto, estes terão aprendido que o politicamente correcto não faz mal a ninguém.


A ideologia do consenso é, no essencial, antidemocrática. Democrático é o conflito de interesses e valores, a obtenção de maiorias e os direitos das minorias. Da Expo, que não constou do Programa de nenhum partido e nunca foi sujeita a sufrágio, o menos que se pode dizer é que é tudo menos consensual. Isto por mais que um autarca lisboeta tenha dito um dia: "nunca vi ninguém que fosse contra a ideia da Expo": Na realidade há os que são pró, os que são contra, e uma variedade de matizes intermédios. Mas que não se assustem com isso aqueles que temem mexer um dedo com receio de “dividir os portugueses". Bem lhes basta que, felizmente, eles já se dividam em torno de questões bem mais importantes: é isso, não os consensos, que faz "avançar" as sociedade. Aliás, a Expo, só por si, já divide de outra forma mais concreta "os portugueses": os que dela aproveitam alguma coisa (uns quantos) e os que não aproveitarão nada a não ser a visita familiar que um dia farão talvez “àquela maravilha", após uma semana talvez extenuante — quase todos. O "País", a sua imagem, o seu universalismo, a sua grandeza, não passam de ilusões consensualistas.


A Expo é uma enormidade, um empreendimento gigante. Mas não um monstro, pois ali deixarão o dedo os grandes nomes da arquitectura nacional e alguns lá de fora. Vai ser um festival de materiais, de soluções de futurismo, como em tempos se dizia de tudo o era vanguardista ou meramente insólito (hoje diz-se “pós-modernista”-) Mas por mais que se goste de acusar os “portugueses” de pequenez e de vistas curtas, está por provar que sejam aventuras desmedidas e grandiosas o que nos fará sair da cepa torta. Dois projectos "grandes" dos anos 40 — a Exposição do Mundo Português e o Programa de barragens hidro-eléctricas — deixaram marcas bem distintas. O primeiro foi obra de Propaganda, por mais que tenha sido também montra da moderna arquitectura desse tempo. Mas, sem o segundo, Portugal não teria saído (ou só mais tarde) do ruralismo dominante. Sines também foi enorme, e viu-se o desperdício imenso, que ainda lá está para quem quiser ver. O CCB, esse, foi de inspiração pacóvia (a Presidência Portuguesa da CEE!) e celebração cavaquista, por melhor que se use, já que está feito. Agora a Expo, cenário de quê? De que comemoração? De 1498? Dos Oceanos? Do "Portugal Democrático"? Da moderna arquitectura portuguesa? Nunca mais saímos disto.


"O tema geral do pavilhão (de Portugal] será o contributo português para a descoberta e conquista dos oceanos”. “Portugal afirmou a sua própria identidade e desenvolveu-a através da conquista dos oceanos e da abertura dos mundos". Com a "viagem de Vasco da Gama" e a “abertura das rotas oceânicas", "Oriente e Ocidente unem-se pela primeira vez através dos mares, trocando produtos, línguas, gentes e culturas (…)". "Na aventura das viagens oceânicas forjou-se o mundo moderno e lançaram-se as bases de um entendimento inédito entre os povos”. Através do pavilhão "trata-se de salientar o nosso espírito de aventura, o universalismo da nossa cultura, a comunicação, a tolerância". "Gostaria que ficasse nos Portugueses o orgulho de terem sido eles os construtores dos oceanos, no sentido de comunicação entre os povos e na busca do conhecimento”. Estas citações da Comissária responsável pelo pavilhão de Portugal na Expo (Boletim: “Informação Expo", julho 96) revela um mais do que "deslize" à imagem politicamente correcta que de si sempre pretendeu dar a Expo. Chamar ”entendimento inédito entre os povos" ao colonialismo, “troca de produtos" à espoliação e ao comércio desigual, "troca de gentes e de culturas" à opressão, à conversão forçada, à escravatura!! Falar de "conquista" e “construção”(?) dos Oceanos!! Especialista em museus, é caso para dizer que a senhora veio estragar a pintura.


A Expo quer-se jovem, quer-se para os jovens. Multiplica-se em programas e iniciativas, quase todas em tomo dos Oceanos, a paixão da Expo. Até aqui, tudo bem. Mas, e se a milhares de jovens tocados pela Expo lhes dá também a paixão do mar? Enquanto lhes der para o surf, para a caça submarina, para a pesca à linha ou para a meditação ecológica, ainda tudo bem. Mas, e se eles acreditam mesmo que Portugal é um pais de pescadores e de marinheiros, e disso querem fazer a vida? Aí as coisas complicam-se. A pesca, como se sabe, é um dos alvos de Bruxelas: que Portugal tem de reduzir (ainda mais) as frotas, de reduzir (ainda mais) as capturas, etc. Se não andam depressa, os nossos jovens já não dão com ela. A marinha, também não será grande ideia. A chamada "de guerra" é o que sempre foi: uma caricatura. Nem chega para treinar os futuros comandantes, que de qualquer modo não terão nada para comandar. A mercante, também pequena e desinteressante (as novas tecnologias tiraram-lhe todo o encanto) não dará para mais do que meia dúzia de candidatos, que, de resto, irá desiludir. Que faríamos então a uma tal "geração Expo"?


Nos "bons tempos", o Mar fez de Portugal um país parecido com os emiratos do petróleo dos nossos dias. Os emires vendem o "bruto" e compram palácios de mármore, aplicam dinheiro em Londres e Nova York, depositam na Suíça. Os nossos reis, esses, venderam especiarias, açúcar, ouro e diamantes — e compraram jóias, brocados, paramentos e altares, tapeçarias, esculturas, carrilhões e arquitectos, construíram paços e mosteiros. Nos emiratos, como aqui naquela época, os povos não deram por nada. Ficámos com património-cultural-hoje. Belos cabos manuelinos, sopa de pedra. Findo isso, o mar foi apenas fronteira que nos fechou por um lado, a Espanha por outro. Por ambos se fugia. Primeiro para o Brasil, depois para onde quer que fosse, enfim para a Europa, aqui ao lado. Não fora isso, teríamos agora mais 2 milhões de bocas para dar de comer - e menos o que elas nos mandam para nos ajudar a viver.


É verdade que a zona oriental da cidade era uma espécie de parêntese urbano: vasta área isolada, degradada e inóspita, onde vegetavam contentores, indústrias obsoletas, depósitos de combustível e de material militar, espaço sem vida própria (ou com vida da pior qualidade. Limitado por um riacho com mais poluição do que água. É verdade que assim era há muito, enquanto a autarquia, também de há muito, só tem tido olhos para os problemas da circulação automóvel. que dão pelos vistos mais votos do que o urbanismo ou a habitação social. Mas será assim tão delirante pensar que, se a autarquia tem feito disso uma prioridade, teria sido possível em meia dúzia de anos revitalizar aquela mesma zona a custos bem menores que os da Expo e com objectivos sociais e urbanísticos bem mais ajustados ao equilíbrio da cidade? Não se urbanizaram, muito antes, nos Olivais, áreas bem superiores? Os grandes arquitectos, os actores culturais, os munícipes não se teriam mobilizado em tomo desse projecto - como de outros - se outras fossem as prioridades? Ou só é mesmo possível fixar metas, cumprir prazos e congregar esforços quando "está em jogo o nome do Pais"?? Certo, certo é que a cidade seria menos badalada durante uns meses, mas ficaria a ganhar.


A Expo tornou-se o lado caricato da regionalização — admitindo que esta vai ter outros. Enquanto não se sabe o que ela vai ser, os autarcas viram na Expo a "moeda de troca" ideal para a sua própria afirmação política. O Porto quer à fina força a realização, por certo no Europarque, de qualquer grande conferência internacional, e a cimeira ibero-americana seria o ideal. Pelo seu lado, um autarca transmontano reivindica a passagem por Bragança das legiões de visitantes norte-europeus que se dirigirão à Expo, para o que bastaria, segundo ele, uma escassa ligação de umas dezenas de quilómetros à rede viária espanhola: "Assim, Bragança pode, de uma forma indelével, ficar ligada a esse acontecimento tão importante quanto é a Expo-98, tirando daí grandes benefícios de carácter promocional" (sic). Benefícios de fachada, como se vê, mais para o autarca do que para as populações. Mas porque não há-de a Expo, que ajudou tanta gente, também ajudar alguns na sua ascensão política?


"A Europa só por si já não nos chega", disse em 1997 o senhor primeiro-ministro em fim de visita a uma ex-colónia. Depois de tudo, e parece que foi muito o que "demos" a esta Europa irremediavelmente envelhecida e embrulhada em problemas (por não nos quererem ouvir, subentenda-se), aí está o irrecusável apelo dos mares, de terras exóticas em que nos voltaremos a miscigenar. Portugal, país cada vez mais jovem (ao contrário do que mostram as estatísticas), sempre irrequieto, criativo, tolerante e amigo do seu amigo, não pode escusar-se, já que a civilização deste fim de século nada tem que ver com a de quinhentos, a levar agora esta civilização a povos que pelos vistos se deram mal com a anterior. E, para começar, nada melhor do que a Expo, onde toda essa gente já teve o seu belo pavilhão, para lhes dar a conhecer o mundo alucinante dos computadores e dos telemóveis, para lhes mostrar os magníficos bairros que, após a exposição, ficarão ao dispor de quantos africanos e asiáticos por cá vivem - e serão eles, certamente, que nos suplicarão uma nova "gesta civilizadora". Os fabricantes de pronto-a-vestir e de sapatos baratos embarcarão então em sumptuosas aeronaves para pressurosamente lhos irem vender, pois a Europa já não nos chega: anda a comprá-los justamente a alguns desses países...


Se o Pavilhão da Utopia só assim se chamou durante a Expo, passando depois a "Multiusos", como não ver nisto uma alusão a que a utopia serve, no fim de contas, para tudo o que lá se queira meter? Já há muito que a utopia não é o que era. Há muito que uma revista que a tinha no nome era dirigida por uma actual deputada do PSD no Parlamento Europeu - o que fazia desconfiar. Depois, uns tantos ecologistas sonhando com o retorno aos líricos campos dos nossos avós. E hoje, quantos discursos e comentários de gente com os pés bem assentes na terra e a moeda única na mente não terminam com desvelos utópicos, quando não com autênticos apelos à utopia? O tal Pavilhão sugere obviamente que os mareantes de antanho eram utópicos e sonhadores, quando se sabe de quantos não passavam de aventureiros, condenados, comerciantes ou inquisidores. E vai acabar um pouco como eles, que os tempos são outros, no comércio agora do desporto, do rock, da "cultura". "O objectivo é rentabilizar o pavilhão no período pós-Expo com espectáculos de grande público" (Público, 22-05-97). Ainda um dia "os utópicos" terão um clube com sócios, cartão electrónico, data de admissão e quotas se possível em dia, e farão piqueniques regados talvez com "vinho europeu".


O "Caderno do Elefante 1998" é uma agenda publicada pela Associação Abril em Maio e pelas edições Salamandra para esse ano. Os excertos aqui reunidos estão publicados como "introdução" a cada mês do ano.

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