Espanha

Exploração humana e ambiental, o outro lado da localidade vítima da caça ao migrante

21 de julho 2025 - 12:46

Degradação ambiental e precarização extrema dos trabalhadores são as premissas da cultura de regadio intensivo que se implementou recentemente na região de Múrcia. Por detrás da perseguição racista descobre-se um sistema lucrativo.

por

Andrés Actis

PARTILHAR
Terras agrícolas com o Mar Menor ao fundo.
Terras agrícolas com o Mar Menor ao fundo. Foto de Álvaro Minguito.

Pedro Luengo, porta-voz dos Ecologistas em Ação em Múrcia, observa há mais de 20 anos a silenciosa mas constante degradação ambiental do Campo de Cartagena (região de Múrcia), a bacia que desagua no Mar Menor, de onde o regadio intensivo na zona, incluindo as plantações de Torre Pacheco, extrai muita água – que é escassa – para rega, colheita e exportação. Passou também duas décadas a observar campos repletos de trabalhadores migrantes, muitos deles em situação administrativa irregular, uma mão-de-obra muito barata que permite que as margens de lucro aumentem. Esta dupla sobre-exploração, humana e ecológica, anda de mãos dadas e sustenta um modelo em que alguns poucos enriquecem para suprir os "caprichos" alimentares da Europa. “Estamos a criar todo este sofrimento, toda esta exploração, todo este desastre ambiental para que os alemães possam comer alface em fevereiro”, resume Luengo, refletindo sobre o que está por detrás desta perseguição racista.

O panorama descrito por este ativista é sustentado por estatísticas, dados e números que demonstram como funciona este "motor económico" de Múrcia. De acordo com a última atualização do Serviço Regional de Emprego (SEF), 30% do emprego registado em Torre de Pacheco é ocupado por migrantes. 5.345 dos mais de 12.000 trabalhadores são estrangeiros, a grande maioria nascida fora da União Europeia. A população africana é de longe a maior (3.354). Quase todos trabalham no setor agrícola. O registo do SEF não regista trabalhadores migrantes indocumentados, o elo mais precário e descartável do mercado de trabalho. "São muitos. Temos de ter em mente que os patrões se aproveitam destes homens e mulheres. Mais exploração, mais lucro", explica Luengo.

A dependência produtiva do capital em relação à mão-de-obra estrangeira cresce à medida que a geografia se expande. Em Múrcia, 54% dos empregos criados após a pandemia foram preenchidos por mão-de-obra estrangeira, de acordo com um relatório da BBVA Research sobre a situação económica desta comunidade autónoma publicado em Maio. Antes da Covid-19, entre 2014 e 2019, a situação era muito diferente: 92% dos novos empregos na região eram ocupados por espanhóis.

Esta estatística mostra que Múrcia é uma das regiões mais dependentes das contribuições dos migrantes para sustentar a sua economia real. Texto do relatório: “Em consonância com algumas restrições no mercado de trabalho e o envelhecimento da população, na Região de Múrcia, a contribuição dos nacionais para o crescimento da força de trabalho diminuiu em comparação com o início dos anos 2000. A chegada de trabalhadores estrangeiros é fundamental para manter o aumento da oferta de mão-de-obra.”

Muitos destes migrantes são peões de outra forma de exploração: a hídrica. Onde há décadas atrás existiam culturas de sequeiro, de acordo com o clima (pouca precipitação) e a geografia (uma bacia hidrográfica sem rios), hoje existem culturas de regadio, que se expandiram com o sistema de transvase Tejo-Segura, um sistema de transferência que basicamente suporta a vida agrícola do Campo de Cartagena, uma zona com escassez de água.

Em Junho, a agência de notação S&P Global Ratings classificou Múrcia como a região espanhola com maior stress hídrico, "agravado pela forte procura de água em setores-chave como o turismo e a agricultura". Em Torre de Pacheco, 6.841 dos 7.120 hectares cultivados (96%) são de regadio. Apenas 279 mantêm o regime de sequeiro, de acordo com a última folha de cálculo (2023) do SEF.

Uma cadeia de impactos

Luengo explica que esta transformação, de culturas de sequeiro para culturas de regadio, remonta à década de 1980, com o fornecimento de água para 40 mil hectares. "O problema no Campo de Cartagena é que o regadio exige muita água e nutrientes porque as terras não têm fertilidade natural", explica.

Nas hortas tradicionais, localizadas nas margens dos rios, em zonas de inundação, a fertilidade é garantida e renova-se com as chuvas. Além disso, acrescenta o ativista, “a água é utilizada de forma muito eficiente”, porque, no final, toda a água que não é utilizada regressa ao aquífero; não é desperdiçada. O que não é absorvido pelas plantas e continua a baixar, acaba no mesmo aquífero. “Ou seja, não se precisa de tanto fertilizante porque o solo já é fértil”, resume.

No Campo de Cartagena, a fertilidade natural não existe. Como se suplementa? Com fertilizantes químicos. “Os aquíferos estão sobre-explorados e contaminados”, descreve Luengo. Este excesso de nitratos explica a "sopa verde" do Mar Menor, uma degradação ambiental que esteve exposta em 2016, quando o ecossistema entrou em colapso.

"É preciso compreender que tudo faz parte do pacote. O modelo de agricultura intensiva gerou uma transformação paisagística na região", explica. Anteriormente, o Campo de Cartagena era uma "área de socalcos", uma série de campos em socalcos que retinham a chuva (humidade) e impediam a erosão.

“O regadio intensivo requer terrenos muito planos – quanto mais planos, melhor. Os socalcos estorvam. Além disso, a água chega à planta através de irrigação gota-a-gota, por um "tubito". Neste tipo de produção, a chuva molesta porque inunda as culturas e provoca asfixia em algumas delas. O que se faz? Os terrenos são inclinados para que a água flua para as zonas mais baixas", detalha. As inundações nestas “zonas baixas” – cidades e vilas, em muitos casos – são o “terceiro impacto” deste modelo (perverso).

Uma ilegalidade sistémica

No ano passado, a Guarda Civil descobriu 74 poços ilegais a irrigar 2.050 hectares, "contribuindo para a deterioração do Mar Menor". O Ministério Público apurou que 37 empresários extraíram 25,5 milhões de metros cúbicos de água sem licença e despejaram 377,6 mil quilos de fertilizante nitrato. Vários poços estavam localizados em Torre Pacheco.

Luengo esclarece que os poços ilegais não são cavados por "pessoas que entram sorrateiramente no Campo de Cartagena". A ilegalidade faz parte do sistema. São os próprios empresários que "dopam" as suas plantações com água não autorizada. "Isto tem de ser esclarecido porque, caso contrário, parece que há empresas super-legais que fazem tudo na perfeição, e o roubo de água é culpa de alguns piratas que invadem os campos. Os poços ilegais são cavados pelo próprio setor para obter uma rentabilidade ainda maior", explica o ativista dos Ecologistas en Acción.

Os poços não autorizados chegaram a ser mais de mil. Após o colapso do Mar Menor, a torneira foi fechada. As administrações deixaram de fazer vista grossa, e os tribunais abriram centenas de processos. Isto trouxe algum alívio aos aquíferos. “O que temos agora é que o setor agrícola exportador está ansioso por obter mais autorizações. Mas, claro, para poder colher legalmente, os sais e os nitratos têm de ser removidos. Isto é caro. E os empresários não querem fazer este investimento para não perder rentabilidade. Na região do Campo de Cartagena, procura-se sempre o preço mais baixo para competir na Europa. A maior parte do que é cultivado não é para consumo interno; é para exportação para a Europa, principalmente para a Alemanha, França e Inglaterra”, relata.

Em 2024, as exportações horto-frutícolas da Região de Múrcia cresceram 10% em relação a 2023, representando 19,5% de todas as exportações espanholas. As vendas externas de alface dão uma ideia da magnitude do negócio: 65% de todas as exportações de alface foram cultivadas no Campo de Cartagena, segundo dados divulgados pela Associação de Produtores e Exportadores de Frutas e Produtos Hortícolas da Região de Múrcia (Proexport). A Alemanha lidera o ranking dos destinos com 30% dos envios.

É urgente reduzir o regadio intensivo

Julia Martínez Fernández é doutorada em Biologia e diretora técnica da Fundação Nova Cultura da Água. É uma das cientistas mais bem informadas sobre a situação hídrica de Espanha. Amplia a descrição de Luengo com mais dados. Conta que em 2010, graças à monitorização por deteção remota, foram contabilizados mais de 55 mil hectares de terras irrigadas no Campo de Cartagena, enquanto historicamente, antes do transvase, o número não ultrapassava os 12 mil hectares.

"Este enorme aumento do regadio levou a um aumento significativo dos fertilizantes agrícolas, com os nitratos a chegarem à lagoa do Mar Menor. O colapso ocorreu em 2016. Mas, em 2000, muitos cientistas, juntamente com a Universidade de Múrcia, alertaram que isto iria acontecer. Ou seja, a ciência antecipou-se", assinala.

A primeira mortandade em massa de peixes ocorreu em 2016. A situação repetiu-se em 2019 e 2021. "É uma boa notícia que isto não tenha voltado a acontecer em quatro anos. Mas o Mar Menor está muito quente, o que aumenta o risco de anoxia. Se voltar a acontecer, voltaremos à estaca zero. É certo que estão a entrar menos nitratos na água devido ao regadio ilegal mais controlado. Mas a pressão continua elevada", alerta Martínez.

Na sua opinião, a redução do regadio é a única forma de evitar um colapso que já está iminente. Ao nível hídrico, uma taxa de exploração de 20% é considerada de stress. 40%, stress grave. Em Múrcia, a percentagem é de 100%. "A maioria dos aquíferos está sobre-explorada e contaminada por nitratos, com a agravante de que temos cada vez menos água devido às alterações climáticas. Este panorama torna insustentável a manutenção de uma situação futura mínima. O modelo já está a entrar em colapso", alerta.

A especialista clarifica que esta redução deve começar pelo setor agro-exportador, apoiando os regadios tradicionais e os pequenos agricultores. “Infelizmente, é uma medida que nem sequer aparece no discurso. Os governos estão a esquivar-se de reconhecer a realidade. As alterações climáticas estão a reduzir os recursos disponíveis a um ritmo mais rápido do que os próprios modelos climáticos previam. Ou governamos essa adaptação através das administrações públicas, ou será o mercado, sob o domínio do mais forte, que decidirá quem vai receber a água", conclui.

A exploração humana espalhou-se por toda a Espanha

Os imigrantes indocumentados ou com contratos precários de Torre de Pacheco não são exceção na agricultura espanhola. O colectivo Jornaleras de Huelva en Lucha, que este ano conseguiu registar-se como secção sindical através da Sindical Obrera Andaluza (SOA), tem vindo a denunciar há anos os "abusos laborais" sofridos pelas trabalhadoras sazonais estrangeiras. Estas mulheres são pioneiras na organização sindical no campo e traçam paralelismos entre Torre Pacheco e a sua experiência de trabalho em Huelva, face à falta de auto-organização entre os trabalhadores com uma perspetiva anti-racista na área de Campo de Cartagena.

No caso da região de Huelva, as sindicalistas dizem que os empresários se "aproveitam" da necessidade das pessoas nas zonas da província, que têm poucas alternativas para além da colheita de morangos. O nível de exploração sofrido pela população autóctone é multiplicado no caso dos trabalhadores migrantes sazonais; os señoritos acrescentam à lista de benefícios o facto de aqueles que deixaram o seu país de origem e agora trabalham em Espanha terem, muitas vezes, "necessidades e pobreza ainda maiores", conta Ana Pinto, porta-voz do grupo.

Em maio, as Temporárias apresentaram com sucesso a sua primeira queixa pelo despedimento de uma trabalhadora sazonal marroquina, contratada na origem com um contrato a termo e com um acordo para manter o vínculo laboral durante quatro anos. "Como tantas outras que, por estarem noutro país, não compreendem a língua, não sabem ler nem escrever, não têm acesso fácil à justiça espanhola e por existirem enormes lacunas na lei que regula os seus contratos, perdem todos os seus direitos e ficam sem nada", denuncia o coletivo.

Às péssimas condições laborais junta-se a “espoliação da terra e da água”, lembra Pinto, pois “o agro-negócio é um sistema que sobrevive graças à exploração das pessoas e da natureza”. É por isso que acreditam que a luta laboral também deve ser "antirracista, feminista e ambiental": "Em muitos casos, as mesmas pessoas que criam discurso de ódio entre as comunidades são as mesmas que espoliam a água, esgotam o nosso pulmão verdes e nos deixam sem água para beber." Segundo a porta-voz sindical, os terratenentes estariam a fomentar o racismo, mas também os preconceitos raciais ou nacionais: "Tentam colocar-nos umas contra as outras dizendo que as mulheres marroquinas colhem mais morangos do que as espanholas ou que as romenas são melhores do que as marroquinas".

Para além da questão da contratação e da remuneração, existem as péssimas condições de vida enfrentadas pelos trabalhadores sazonais em Espanha. "Vivem em habitações que não cumprem os padrões de vida adequados e são vítimas de racismo", diz Pinto, referindo-se às trabalhadoras migrantes à jorna da província andaluza. Os assentamentos de trabalhadores sazonais dos campos de morangos e frutos vermelhos têm sido uma parte invisível desta indústria há mais de 25 anos. No caso de Huelva, com uma rentabilidade milionária. A produção/exportação de morangos representa nada mais nada menos que 8% do produto interno bruto (PIB) da Andaluzia.

“Números milionários que se baseiam no trabalho de milhares de trabalhadores migrantes. Na última temporada agrícola, de acordo com dados da Subdelegação do Governo de Huelva, chegaram à região mais de 13.400 pessoas contratadas no seu país de origem, provenientes principalmente de Marrocos, Gana, Guiné Equatorial ou Honduras”, revelam.

Segundo dados recentes do Ministério da Inclusão, Segurança Social e Migrações, a agricultura espanhola aumentou a sua taxa de afiliados estrangeiros em 6% em relação a 2023, para 258 525 empregados de outros países, o que torna o setor o segundo com maior presença de estrangeiros (o primeiro é o setor hoteleiro). A Andaluzia é a região com mais estrangeiros inscritos no Sistema Espanhol de Inscrição (SEA): 93.211 pessoas. Segue-se a Região de Múrcia (52.206), Aragão (22.129), Catalunha (21.364), Comunidade Valenciana (20.973), Castela-La Mancha (20 480) e Castela e Leão (7.625).

Para Luengo, o modelo agroexportador do Campo de Cartagena e de muitos outros territórios sustenta-se “pela depredação dos recursos naturais e por trabalhadores precarizados e sem direitos”. Javier Guzmán, diretor da Justicia Alimentaria, vai direto ao ponto: Torre Pacheco não é mais do que “o sintoma de um sistema agroexportador podre”.


Publicado originalmente no El Salto.