Às 18h56, apenas duas horas após o fecho dos centros de votação, um show de fogos de artifício tomou conta do céu salvadorenho. O motivo foi a auto-proclamação de Nayib Bukele, o presidente – e candidato inconstitucional à reeleição – como o vencedor da disputa eleitoral “com mais de 85% dos votos”. Algo no mínimo surpreendente naquele momento, já que muitos locais de votação ainda nem tinham começado a contagem. Mas Bukele já tinha os seus próprios dados.
O Tribunal Superior Eleitoral, autoridade máxima nas eleições, não se pronunciou. Na imaginação do público, o resultado foi inapelável. Horas depois, às 22h15, Bukele apareceu no camarote principal do Palácio Nacional e apresentou-se como presidente reeleito diante de uma multidão que comemorava ter entregado todo o poder a uma única pessoa e a um único partido.
Mais uma vez, fez isso sem que o TSE se manifestasse ou fornecesse qualquer informação precisa e confiável. “Hoje El Salvador quebrou todos os recordes de todas as democracias do mundo”, comemorou o presidente de 42 anos diante de pessoas extasiadas que aplaudiram Bukele no meio de vuvuzelas e vivas.
“E não só ganhámos pela segunda vez a Presidência da República com mais de 85% dos votos, como ganhámos a Assembleia Legislativa com pelo menos 58 dos 60 deputados, é possível que possa ser mais", reiterou Bukele, embora algumas assembleias de voto não tivessem sequer contabilizado um único voto das eleições legislativas e os sistemas de transmissão de votos estivessem a falhar. Bukele aproveitou esse discurso para anunciar que a partir de 1 de maio, quando a nova Assembleia Legislativa tomar posse, El Salvador viverá sob um modelo de partido único. Seria a primeira vez que um partido único existiria num país num sistema totalmente democrático. “Toda a oposição junta foi pulverizada”, gabou-se. O resultado foi oficializado por Bukele, cabe ao TSE agora fazer a soma dos números.
Na ocasião, o site de resultados preliminares do TSE indicava que com 30% das mesas contabilizadas, Bukele obteve mais de 1,2 milhão de votos. Enquanto o seu concorrente mais próximo, Manuel Flores, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, registava apenas 110.244 votos. A eleição presidencial parecia estar próxima. Mas faltavam os dados sobre as eleições legislativas.
Enquanto isso, os presidentes da Guatemala, Honduras e Nicarágua, e os governos dos Estados Unidos e de parte da Europa apressaram-se a felicitar Bukele após os anúncios nas suas redes sociais e no camarote do Palácio Nacional. Não mencionaram que a sua candidatura era inconstitucional e que o mais alto tribunal eleitoral não tinha oficializado o resultado. Simplesmente acreditaram na sua palavra. No caso centro-americano, num contexto de violência generalizada, a figura do presidente salvadorenho é muito popular e vários responsáveis prometeram aplicar o “método Bukele” nos seus próprios países. Até a ministra da Segurança argentina, Patricia Bullrich, um país cujos níveis de insegurança não se assemelham aos da América Central, manifestou a sua vontade de “adaptar” o modelo salvadorenho.
“O povo salvadorenho falou e não só falou alto e bom som, mas falou da forma mais contundente em toda a história da democracia no mundo inteiro”, disse o presidente num país onde, segundo o Latinobarómetro, menos de 50% da população apoia a democracia.
Empresário e publicitário de profissão, Bukele conhece os símbolos e sabe usá-los para deixar as suas mensagens claras. O palco que preparou para se proclamar vencedor não foi acidental. Na sua primeira vitória presidencial, fez um discurso vitorioso numa plataforma noutra praça, um pouco menor. Desta vez, decidiu subir ao púlpito de um edifício público histórico e fazer um discurso em que se dedicou a atacar todas as organizações, governos ou jornalistas que o criticaram (ou revelaram a corrupção da sua administração), e mostrou-se orgulhoso de todos os abusos de autoridade que cometeu desde 2019. Dentro do Palácio Nacional, a sua família e os seus funcionários (muitos acusados de fazer acordos com membros de gangues, cometer dezenas de atos de corrupção e enriquecer injustificadamente) comemoraram ir passar pelo menos mais cinco anos no poder. No final do discurso, entre confetis e uma longa queima de fogos de artifício, tocou a famosa canção do REM "It's the End of the World as We Know It (and I Feel Fine)". Nesse clima de festa, aquela democracia frágil que morreu em 1 de maio de 2021, com o golpe que o Legislativo e o Executivo deram no Poder Judiciário, foi completamente sepultada.
Bukele é o primeiro presidente salvadorenho em quase um século a conquistar um segundo mandato. Mas, tal como os líderes que o precederam, ele também teve de violar repetidamente e sem consequências a Constituição e as leis do país. Nesse caminho inconstitucional deixou claro que não pouparia meios para acumular todo o poder de um dos menores países do continente americano.
Aquela ironia insípida que consiste em se apresentar como “ditador de El Salvador”, “o ditador mais cool do mundo” e “imperador de El Salvador” na sua biografia na rede X, ou mudar a sua foto de perfil para a do ditador fictício Haffaz Aladeen , personagem do ator cómico Sacha Baron Cohen, tornou-se realidade. Bukele solidificou a ditadura a que deu origem há três anos. O mais grave não é que ele próprio se encarregou de comunicar aos salvadorenhos e ao mundo inteiro que já tinha resultados e que tinha pulverizado a oposição mas que o fez debaixo do nariz de um TSE curvado aos seus caprichos.
A democracia de que Bukele tanto fala quando as suas formas de governar são questionadas tem um cheiro rançoso de ditadura com perfume popular.
Do precipício ao abismo
A sociedade salvadorenha teve a oportunidade de salvar a democracia, de se afastar do autoritarismo. Mas optou por enterrar aquele sistema que não dava resultados visíveis para muitos e que a propaganda oficial demonizava.
Para entender como El Salvador decidiu colocar todo o poder numa única pessoa, é necessário contar de onde veio e como Bukele governou desde 1 de junho de 2019. Nas eleições daquele ano, o então candidato millenial tornou-se uma esperança para milhões de pessoas, pessoas que estavam fartas do sistema bipartidário que governou durante 30 anos, de mãos dadas com duas forças políticas que nasceram durante a guerra civil: a Aliança Republicana Nacionalista (ARENA), o partido salvadorenho de extrema-direita e a FMLN, que nasceu da guerrilha. Este período foi caracterizado por altíssimos índices de violência que chocaram o país e pela corrupção que permeou todo o aparelho de Estado.
Para ganhar o favor do povo e poder competir nessas eleições, Bukele fez todo o possível para que o então partido oficial, o FMLN, o expulsasse das suas fileiras. Assim, ele pôde declarar-se independente daquela política rançosa que mergulhou o país na violência e na corrupção. Embora tenha tentado legalizar o Nuevas Ideas, o seu projeto político personalista, o tempo não foi suficiente. Acabou então por tomar a decisão de ingressar na Grande Aliança pela Unidade Nacional (GANA), partido formado por dissidentes da Arena. Nessas eleições, Bukele venceu com 53,1% dos votos.
O atual presidente é, em essência, um produto dessa velha política, tanto que grande parte dos líderes do Nuevas Ideas também vêm dos antigos partidos hegemónicos.
O seu primeiro mandato ficará para a história por ter conseguido reduzir os homicídios em troca de negociações com a Mara Salvatrucha e as fações Sureños e Revolucionarios do Barrio 18, os três principais gangues de El Salvador; por ter tomado a Assembleia Legislativa junto com os militares e ameaçado dissolvê-la; e por ter implementado uma espécie de campos de concentração como política durante a pandemia de Covid-19. Sem esquecer as dezenas de denúncias de corrupção, as demissões ilegais do procurador-geral e dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, e a revogação de diversas garantias constitucionais com o regime de emergência que está prestes a completar dois anos. No âmbito da sua política contra os gangues, o governo prendeu mais de 75.000 pessoas sem qualquer investigação prévia, com o “custo” de centenas de mortes nos centros penais do regime de emergência, no âmbito de uma campanha eficaz com estética cinematográfica . Mas o governo também se caracterizou pelos constantes ataques à imprensa e às organizações sociais, e por ter usado todo o aparato estatal para catapultar a candidatura inconstitucional do presidente, além de proteger dezenas de funcionários que foram sancionados pelos Estados Unidos e providenciar muitos outros funcionários que encontraram um El Dorado na administração pública.
Com esta nova casta a querer permanecer no poder, os salvadorenhos foram votar no dia 4 de fevereiro. Os já desacreditados partidos da oposição, dizimados pelos maus resultados eleitorais, enfrentaram um tabuleiro inclinado em que o Ministério das Finanças recusou dar-lhes a “dívida política”, o dinheiro que o Estado concede aos partidos para que possam fazer campanha, e diversas manobras contra ele, com a cumplicidade do TSE.
Mas o eleitorado acabou por se importar pouco ou nada com tudo isso. E não é difícil imaginar porquê. Parte do triunfo do governo Bukele foi produto da militarização das forças de segurança, da implementação de um regime de emergência e da captura indiscriminada de suspeitos. Graças a esta política repressiva, o governo conseguiu garantir que os gangues que dominavam grande parte do território acabassem na prisão ou na clandestinidade. E o aparelho de propaganda aproveitou o ressentimento que, com razão, a população tem para com estes grupos criminosos, através de uma espetacularização sem precedentes das detenções – e da humilhação dos detidos.
Um motorista do Uber resumiu a situação poucos dias antes das eleições: “A verdade é que enriqueceram como todos os anteriores, mas pelo menos trouxeram segurança. E se não votarmos nele, em quem? Esta retórica permeou até algumas vítimas do regime de emergência que perderam os seus familiares na prisão. Muitos familiares de inocentes presos dizem que Bukele fez tudo bem, embora lamentem as capturas arbitrárias, e ainda assim estão dispostos a renovar o seu apoio a ele.
Este salto para o vazio também é possível devido ao desmantelamento da oposição política, que durante o processo eleitoral preferiu dividir e zelar pelos seus interesses pessoais em vez de se unificar e lutar para manter o sistema democrático que tanto sangue custou a El Salvador. Não souberam estar à altura do que a história lhes exigia e agora veem como este capítulo termina de forma amarga.
E agora o quê?
Bukele venceu estas eleições sem ter feito nenhuma nova proposta. A oferta política para ganhar a votação foi fomentar o medo do passado. Ele estava tão certo da sua vitória que delegou a campanha aos seus deputados. Não teve um único banho de multidão. Preferiu usar os equipamentos de comunicação do governo, o telejornal e o jornal que criou para posicionar a sua imagem e a rede de fãs digitais que trabalham para aumentar ainda mais a sua popularidade.
O que ele prometeu é que nos próximos cinco anos dará continuidade ao seu governo. Mas o que isso significa exatamente? A máfia política continuará no Estado que criou esquemas de corrupção que permitiram pactos com gangues, irregularidades em compras de emergência durante a pandemia de Covid-19 e abusos durante o regime de emergência? Continuará a violar sistematicamente os direitos humanos? Continuará ele a negociar com criminosos para garantir uma paz que, quando quebrada, trará um banho de sangue?
“Nestes próximos cinco anos, esperem para ver o que faremos porque continuaremos a fazer o impossível”, disse Bukele no discurso de comemoração. Tão vago quanto isto. Esta foi uma constante no seu primeiro governo. Chegou a declarar que não tinha plano de governo e colocou como reservados todas as informações que pudessem esclarecer, através de dados oficiais, sobre a sua gestão.
O que deixou claro na noite de 4 de fevereiro é que intensificará o seu ataque contra qualquer entidade que o critique com base na certeza de ter desmantelado todos os sistemas de contrapeso e controlo que o poderiam deter. Fê-lo sistematicamente contra a imprensa e as organizações sociais e não hesitou em lançar a sua artilharia retórica contra qualquer governo estrangeiro que o questione.
Este ataque contra organizações, críticos e jornalistas obrigou muitos ao auto-exílio noutros países, como é o caso de antigos magistrados da Câmara Constitucional, do seu antigo advogado de defesa e de pelo menos uma dezena de jornalistas, segundo a Associação de Jornalistas de El Salvador. O próprio presidente ataca jornalistas críticos. Entre os seus ataques na rede X, Bukele afirmou, em maio de 2023, usando uma referência ao magnata e filantropo George Soros, um alvo constante da direita radical: "Em todos os países da América Latina há meios de comunicação e 'jornalistas' pagos por Soros. Mas, na realidade, não são jornalistas, são ativistas políticos com uma agenda global definida e perversa".
As leis, liberdades, deveres e vontades dos salvadorenhos dependem agora dos caprichos de uma pessoa e dos seus irmãos que co-governam nas sombras. Os direitos dos salvadorenhos irão até onde Bukele quiser. Não há quem o limite, como ficou demonstrado nestas eleições.
Pela primeira vez, Bukele não reclamou do processo de fiscalização nem criticou abertamente o TSE. O TSE foi tão permissivo que até permitiu que a Nuevas Ideas fizesse proselitismo junto às urnas em alguns centros de votação, uma clara ilegalidade no processo. E no final foi o presidente quem anunciou os resultados.
Bukele autoproclamou-se vencedor num contexto de graves irregularidades que apontam para fraude eleitoral para aumentar ainda mais as suas maiorias. Mas não importa, a narrativa já está instalada e quem questionar será acusado de golpista. Bukele impôs um partido único e fê-lo em cumplicidade com um TSE que, longe de ser um árbitro imparcial e garantir a confiança no processo eleitoral, demonstrou estar rendido aos pés do ditador.
Jaime Quintanilla é jornalista de investigação, especializado em temas de corrupção e segurança pública.
Texto publicado originalmente na Nueva Sociedad. Traduzido para português pelo Instituto Humanitas. Editado para português de Portugal.