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Educação: a “acumulação” dará lugar à “experiência”?

A escola insiste em reproduzir as lógicas desgastadas do capitalismo industrial. Face à crise civilizacional, abrem-se brechas para novos paradigmas. Eis algumas ideias para construir uma pedagogia baseada não na extensão, mas na profundidade. Por Roberto Rafael Dias da Silva.
Estudar. Foto de Cyria Gonzales/Flickr.
Estudar. Foto de Cyria Gonzales/Flickr.

Os modelos formativos da escola moderna, tal como foram desenhados no capitalismo industrial, traziam as marcas de uma padronização subjetiva, em que normas, valores e conhecimentos eram desenvolvidos em todos os indivíduos que ingressavam no processo de escolarização. Era recorrente a preocupação com a formação de uma mão-de-obra capaz de responder às exigências requeridas por este modelo de economia. A escola industrial apropriou-se da matriz disciplinadora dos modelos pedagógicos da Modernidade – dos corpos e das almas como nos ensinou Michel Foucault –, levando adiante metodologias de molde único, uma vez que o seu campo de expectativas era restrito. A democratização da escola para todos – principal realização política do Ocidente no último século – trazia essas marcas e, ao mesmo tempo, escondia profundas desigualdades.

Em termos curriculares, esta escola organizava-se em torno de uma lógica enciclopédica e fragmentada, na qual a atuação dos professores era movida por metodologias de transmissão, de caráter unidirecional. Costumo retomar uma expressão utilizada por colegas espanhóis: tratava-se de um currículo com “quilómetros de extensão e milímetros de profundidade”. Os tempos cronometrados de cinquenta minutos e os espaços que separavam os corpos por idades, níveis de aprendizagem ou interesses evidenciavam as similaridades desta instituição com os modelos industriais. Associam-se a este cenário os exames regulares e a imposição de normas de conduta que constituíam um campo de expectativas vinculado às promessas de ascensão social atribuídas à escola. Num exercício de síntese, poderíamos afirmar que o imperativo explicativo dos currículos aqui descritos seria “Acumular!”. Os estudantes eram educados para acumular conhecimentos para terem uma inserção qualificada na vida adulta, qualificada pelas normas e valores que lhes eram oferecidas permanentemente para a obtenção de resultados futuros.

Todavia, este imperativo curricular – Acumular! – tem colidido com as novas expectativas dos estudantes e os seus modos de relação com o saber, com a pluralização da função socializadora da escola e com a própria reorganização do capitalismo (cada vez menos identificado com os princípios da sociedade industrial). Não restam dúvidas de que o desenvolvimento curricular precisa continuar a ser mobilizado na seleção de conhecimentos relevantes para a formação das futuras gerações e que este processo garante o direito a uma escola de qualidade – fruto de históricas lutas no nosso país. O que precisamos, coletivamente, é rediscutir os nossos propósitos formativos para projetar novas arquiteturas curriculares para um contexto pós-capitalista. Para tanto, na minha perceção, podemos vislumbrar estas alternativas cartografando as práticas escolares de nosso tempo.

Uma primeira dimensão poderia ser vislumbrada a partir do reconhecimento de que as aprendizagens não se esgotam ou se limitam à sala de aula. Trata-se de uma herança do pensamento educacional progressista que, por diferentes caminhos, nos conduziu a pensar as situações didáticas como espaços abertos para a experimentação e a liberdade de pensamento. Explorar, questionar ou levantar hipóteses continuam a proporcionar a criação de ambientes pedagógicos em que os estudantes podem expressar a sua curiosidade, a sua criatividade e o pensamento crítico. Os nossos colegas, professores e professoras, têm reiterado a importância de construir uma pedagogia da pergunta, que ultrapasse o imperativo da acumulação de conhecimentos descrita anteriormente.

O reconhecimento da ampliação das funções sociais da escola também se converte numa dimensão importante. Ao não se reduzir aos processos de disciplinação, assistimos à emergência de modelos de relação pedagógica mais negociados e horizontais em que coabitam estilos variados de autoridade e os estudantes reivindicam o seu protagonismo. A diversificação dos percursos escolares tem sido exigida pelas novas arquiteturas curriculares, reconhecendo que os tempos e os espaços de formação podem ser diferenciados, especialmente nos cenários em que as desigualdades se tornam mais evidentes. Os avanços nas teorias de aprendizagem – inspirados por tradições heterogéneas – têm auxiliado no alargamento da nossa sensibilidade sobre o desenvolvimento humano, favorecendo com que possamos compreender a questão desde novas perspetivas.

O diálogo com Pérez-Gomez, pedagogo espanhol, tem sido fértil para pensar sobre as formas curriculares emergentes na era digital. Em busca de uma nova pedagogia, o autor tem defendido alguns princípios que nos parecem pertinentes para esta reflexão: a) menos extensão e mais profundidade; b) primeiro as vivências, depois as formalizações; c) aprender fazendo; d) primar pela cooperação e fomentar o clima de confiança; e) avaliar de outros modos. Estes aspetos são bastante pertinentes e, com maior ou menor ênfase, sinalizam a nossa abordagem para este importante direcionamento no desenvolvimento de políticas curriculares: o declínio da acumulação de conhecimentos e a consolidação dos métodos vivenciais. Por outras palavras, assistimos ao deslocamento do princípio do “Acumular!” para o imperativo do “Experienciar!”.

Não deixamos de reconhecer as controvérsias que perfazem a este deslocamento, especialmente quando as políticas neoliberais ainda nos rondam com tanta intensidade. A oportunidade de reposicionar as pautas formativas da escola, à luz das mutações em curso, auxiliam-nos a manter a escola como um “espaço livre”, não completamente definido pela sociedade e seus agenciamentos. O filósofo Gert Biesta defende que, em tais condições, podemos “ter lugares de refúgio em que outros modos de ser e estar juntos podem ser praticados”. Em busca de um novo léxico, que nos permita apostar na construção de uma escola pós-capitalista, ao longo deste texto defendi que o declínio da escola do capitalismo industrial abre novas possibilidades de criação pedagógica. Mais inovadoras e democráticas. Mais sintonizadas com as exigências de um novo porvir!


Roberto Rafael Dias da Silva é Professor da Escola de Humanidades da Unisinos.

Texto publicado no Outras Palavras. Editado para português de Portugal por Esquerda.net.


Referências:

BIESTA, Gert. Reconquistando o coração democrático da educação. Educação Unisinos, v. 25, p. 1-7, 2021.

PEREZ-GÓMEZ, Angel. Educação na Era Digital: a escola educativa. Porto Alegre: Penso, 2015.

SILVA, Roberto Rafael Dias da. Educação, tecnologias 4.0 e a estetização ilimitada da vida: pistas para uma crítica curricular. Cadernos IHU Ideias, v. 18, n. 301, 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/344210399_Educacao_tecnologias_40_e_a_estetizacao_ilimitada_da_vida_pistas_para_uma_critica_curricular

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