Como as desigualdades se constroem na infância a partir da linguagem

20 de abril 2024 - 13:35

A linguagem é um recurso socialmente valorizado e a competência em usá-la traduz-se em desigualdades. Marianne Woollven explica alguns dos mecanismos pelos quais estas são transmitidas através da família.

por

Marianne Woollven

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Criança. Foto de Paulete Matos.
Foto de Paulete Matos.

O vocabulário das crianças pequenas varia em função das características económicas e culturais das suas famílias. Na medida em que a linguagem é um recurso socialmente valorizado pelas instituições, a começar pela escola e pelas administrações públicas, estas variações sociais das competências linguísticas constituem desigualdades. Como explicar a sua reprodução?

Um estudo sociológico coletivo dirigido por Bernard Lahire, realizado com crianças de 5-6 anos de diferentes meios sociais e publicado no livro Enfances de classe. De l'inégalité parmi les enfants fornece algumas respostas.

A aquisição da linguagem é um objeto de estudo clássico da psicologia e da linguística, tendo estas disciplinas contribuído, em particular, para evidenciar as normas de desenvolvimento neste domínio. Numa perspetiva sociológica, é encarada como um processo que ocorre durante a primeira infância, essencialmente no contexto familiar, mas as normas a ter em conta são de natureza cultural. Numa perspetiva sociológica, é vista como um processo que ocorre durante a primeira infância, essencialmente no contexto familiar, mas as normas que estamos a considerar são de natureza cultural.

O objetivo da investigação era estudar a socialização das crianças (ou seja, o conjunto dos processos pelos quais elas adquirem modos de fazer, de pensar e de ser socialmente situados) a fim de explicar a construção precoce das desigualdades em diferentes domínios: habitação, escolaridade, corpo, lazer, etc. A investigação debruçou-se igualmente sobre a socialização das crianças (ou seja, o conjunto dos processos pelos quais elas adquirem modos de fazer, de pensar e de ser socialmente situados) a fim de explicar a construção precoce das desigualdades em diferentes domínios: habitação, escolaridade, corpo, lazer, etc.

Relações com a linguagem socialmente diferenciadas

No que diz respeito à linguagem, o estudo das desigualdades na primeira infância implica não só a avaliação da "qualidade" linguística do discurso, segundo critérios como a riqueza do vocabulário ou o grau de correção gramatical e sintática, mas também a relação com a linguagem, ou seja, a forma como esta é utilizada.

Existem duas relações opostas, desigualmente legítimas, em relação à linguagem. A primeira consiste em tratar a língua em si mesma, como um objeto autónomo que pode ser manipulado independentemente do contexto em que é pronunciado. Esta relação qualificada como reflexiva com a língua é muito valorizada em todas as instituições da sociedade e, em particular, na escola. A segunda relação com a língua, descrita como pragmática, envolve a utilização da língua de uma forma prática, para fazer coisas, em contextos específicos.

O estudo mostra que, através de toda uma série de práticas familiares quotidianas, as crianças aprendem gradualmente a encarar a língua de uma forma ou de outra, consoante o grupo social a que pertencem. Isto prepara-as de forma desigual para a vida social e, mais particularmente, para as situações escolares.

De todas as práticas estudadas no inquérito, vejamos mais de perto a escolha dos livros lidos às crianças e a utilização do humor.

Escolhas de leitura: critérios utilitários ou estéticos

Contar histórias às crianças desde a mais tenra idade é uma prática muito difundida na sociedade francesa atual e que diz respeito também a uma grande maioria das crianças inquiridas. No entanto, os critérios utilizados pelos pais para escolherem os livros que vão ler aos seus filhos variam consideravelmente em função dos seus recursos económicos, e ainda mais em função do seu nível de escolaridade, e refletem relações socialmente diferenciadas com a linguagem.

Entre os pais com menos qualificações e entre as classes populares, os livros são frequentemente encarados como um meio através do qual as crianças podem aprender coisas. Pode tratar-se de aprender a ler e a escrever, mas também de competências práticas, como o comportamento na vida quotidiana (por exemplo, a limpeza).

A relação com a linguagem transmitida às crianças através das práticas de leitura é, portanto, pragmática, na medida em que as histórias são encaradas sobretudo na sua dimensão funcional e instrumental. Do mesmo modo, em algumas famílias socialmente próximas, a leitura é também vista como uma forma de "apaziguar" as crianças.

Entre os pais com qualificações mais elevadas, os critérios são diferentes e seguem duas lógicas distintas.

Para os mais qualificados e mais próximos da cultura escrita, a linguagem utilizada e a qualidade literária são critérios centrais de escolha. Outros pais, também com qualificações elevadas mas mais próximos das profissões artísticas, valorizam a imagem e o grafismo pela sua dimensão estética.

Outros pais, com qualificações científicas e técnicas e maior capital económico, apreciam histórias que lhes permitam "responder a perguntas" ou fazer descobertas, nomeadamente no domínio das ciências. Para eles, a palavra escrita é vista como uma mediação para os saberes, nomeadamente os escolares.

Em todas estas famílias, a leitura de histórias é uma prática regular que ajuda as crianças a adotar uma atitude reflexiva em relação aos livros que lhes são propostos.

Humor: a reflexividade e a palavra escrita fazem a diferença

As formas de humor praticadas no seio da família são também fatores que contribuem para moldar as relações das crianças com uma linguagem de valor social desigual. Em todas as famílias inquiridas, as brincadeiras e a comédia de situação são muito difundidas e apreciadas pelas crianças.

Em todas os meios sociais, as crianças mais pequenas gostam de se esconder ou de esconder objetos, de assustar os pais, etc. Este tipo de humor predomina nas classes populares: a comédia gestual e as imitações são frequentes, assim como as adivinhas que implicam adivinhar um objeto escondido, por exemplo. Este tipo de interação dá lugar a trocas verbais, mas não a jogos abstratos, e só faz sentido no contexto preciso da situação de enunciação.

Estes tipos de humor existem também nas classes média e alta, mas o que distingue este último tipo de família das outras é sobretudo a diversidade, a intensidade e a complexidade dos trocadilhos, das histórias engraçadas, das charadas e das adivinhas que as crianças por vezes ouvem e praticam. Nas famílias em que os pais têm mais qualificações e estão frequentemente próximos do mundo da educação, observa-se uma acumulação destas diferentes formas de humor que são, por outro lado, articuladas com suportes escritos.

Nestas mesmas famílias, e em contraste com as outras, é recorrente o recurso à ironia, ao segundo grau e a afirmações por vezes implausíveis, que chamam a atenção das crianças para as propriedades e os poderes da linguagem. Nas famílias em que os pais são menos escolarizados, este tipo de jogo de linguagem é menos frequente e as crianças são muitas vezes consideradas demasiado jovens para as compreenderem.

Para além do tipo de humor praticado e da sua articulação com a linguagem, há um elemento suplementar que contribui para forjar relações socialmente diferenciadas com a linguagem. Uma minoria dos pais e avós inquiridos, entre os mais instruídos, explica e discute jogos de palavras ou procedimentos como a ironia, fornecendo assim aos seus filhos um feedback educativo e iniciando-os explicitamente numa atitude reflexiva em relação à linguagem.

Estas práticas permitem-nos transmitir às crianças, de uma forma relativamente informal e quotidiana, elementos de vocabulário, conhecimentos dos registos da linguagem e uma preocupação de explicitação constitutiva de uma relação reflexiva com a linguagem.

As crianças do nosso inquérito crescem, portanto, em contextos que as familiarizam com uma relação reflexiva com a linguagem, próxima da que têm na escola, ou, pelo contrário, que os afastam dela, favorecendo uma relação pragmática. A acumulação e a repetição de práticas quotidianas, como a leitura de livros ou o uso do humor, criam assim desigualdades em relação à linguagem.


Marianne Woollven é professora de Sociologia na Universidade Clermont Auvergne. Texto publicado originalmente no The Conversation.

Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.