Coincidências

11 de janeiro 2014 - 0:08
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As alegações utilizadas pelo governo contra a Constituição não passam de desculpas para justificar a obediência cega às ordens da troika e para justificar a sua incompetência governativa. Artigo de José Joaquim Ferreira dos Santos.

As razões dos chumbos consecutivos do Tribunal Constitucional aos projetos de lei do governo residem na violação sistemática dos princípios da confiança, da proporcionalidade e da igualdade que são comuns a todas as constituições da Europa e não por normas constitucionais esquerdistas, como o governo e entidades estrangeiras nos querem fazer crer. Não é, portanto, com alterações à constituição que o governo passará a agir de forma eficiente e de acordo com a lei.

O tipo de radicalismo neoliberal que a troika está a impor em Portugal, com a colaboração cúmplice do governo PSD/CDS, e o apoio do presidente da Republica, tem sido atenuado pela existência da Constituição da Republica e pela ação do Tribunal Constitucional. Arrasta-se na sociedade portuguesa uma situação podre, de ordem política, económica, social e cultural que leva à desmobilização da política, que desanima os mais capazes, empobrece o país e não resolve coisa nenhuma. A sua irradicação passa pela mudança de políticas que só um novo governo saído de eleições pode implementar.

Cada dia que passa aparecem mais casos sobre os estaleiros de Viana do Castelo. Desta vez é o facto de terem estado lá armazenadas durante vários anos toneladas de aço que foram vendidos a um sucateiro, e posteriormente revendidas à Martifer. Coincidências?

Outros materiais igualmente armazenados nas instalações dos estaleiros são os que, em consequência da compra de submarinos, vieram da Alemanha. Curioso é que esses materiais foram inicialmente avaliados em 250 milhões de euros, mas numa segunda avaliação recente apenas são dados como valendo cerca de 40 milhões.

Tudo isto a par de vendas de navios muito abaixo do preço de custo do fabrico; de devoluções por inadequação à encomenda, sem explicação cabal e do não cumprimento de contratos firmados. É legitimo questionar se todas estas coincidências não podem refletir para além de uma muito deficiente gestão, algo mais.

Dos muitos casos idênticos de exploração desenfreada de trabalhadores portugueses emigrados foi conhecida, entre outras, a situação de trabalhadores contratados por uma empresa de nome CITEREX para as obras de construção do Metro de Copenhaga. Até aqui tudo bem, o pior é que estes trabalhadores foram auferir salários e condições de trabalho, alojamento e alimentação muito inferiores ás dos trabalhadores dinamarqueses. O que é estranho é que só depois dos trabalhadores portugueses terem rescindido os contratos é que a empresa dinamarquesa se preocupou em averiguar o que se passava.

Perante tal pirataria compreende-se melhor a razão da pressão dos mercados para o empobrecimento e desemprego dos trabalhadores dos países do sul da Europa. Trata-se da manutenção de um exército de mão-de-obra de reserva, barato e submisso, disposto a todos os sacrifícios por algum trabalho mesmo mal remunerado, contribuindo para o crescente enriquecimento dos países do norte e especialmente dos seus bancos.

Com base nos balanços trimestrais do FMI, BCE e outros, o governo tem vindo a apregoar como um grande feito, a diminuição das taxas de desemprego.

Entretanto não é capaz de associar essa descida aos mais de duzentos mil trabalhadores que tiveram que procurar possibilidades de emprego no estrangeiro em 2012 e 2013 e ao facto de muitos desempregados deixarem de comparecer nos centros de emprego por terem desistido de encontrar trabalho ou por verem ultrapassado o período do subsidio de desemprego.

Apesar do que o governo diz, as taxas de desemprego jovem continuam a subir. Só no ano que agora finda encerraram 100 mil empregos e isso não é dito. Além disso, o primeiro-ministro enganou-se deliberadamente ao informar que nos primeiros trimestres tinham sido criados 120 mil novos postos de trabalho. Segundo as estatísticas do INE durante 2013 criaram apenas 28 mil postos de trabalho.

Num balanço rápido anual posso constatar que está a tornar-se altamente preocupante a forma como os chamados direitos humanos, políticos, sociais e económicos estão a ser espezinhados por todo o mundo, não só pelo desrespeito pela liberdade de opinião e outros direitos políticos, mas também pelo não cumprimento, pelos estados dos compromissos sociais contratualizados e por formas de quase escravatura laboral inadmissíveis. É o neoliberalismo em todo o seu esplendor: na Grã-Bretanha o governo conservador procura fazer passar legislação muito restritiva da imigração e do apoio a refugiados; no estado espanhol o governo de direita propõe-se fazer retroceder a legislação aprovada referente ao direito ao aborto e até restringir o direito à manifestação; na Itália os candidatos a imigrantes em Lampedusa, oriundos da África sub-saariana e do Magreb, são tratados com a maior indignidade; no Uganda foi aprovada legislação que condena a prisão perpétua os homossexuais, que são igualmente maltratados na Rússia; na Dinamarca há trabalhadores do espaço europeu ou não, tratados de forma diferente dos naturais. Também em Portugal têm vindo a ser destruídas todas as garantias de algum equilíbrio social conquistadas pelos trabalhadores em lutas, por vezes duras, mas que o regime democrático foi instituindo num embrião de estado social.

Voltamos a assistir a perseguições e a massacres por razões étnicas e religiosas em vários países da África e Ásia e não apenas no mundo árabe.

Torna a ser necessário no século XXI que os democratas de todo o mundo voltem a levantar as bandeiras de luta, que desde o século XIX, levaram à imposição das diferentes gerações de direitos humanos, que julgávamos definitivamente consolidados entre nós.

Para os que sempre dizem que lutar não vale a pena, sempre quero lembrar quem sem a luta de tantos antes de nós ainda estaríamos numa situação muito pior.

Artigo de José Joaquim Ferreira dos Santos, membro da Assembleia Municipal de Matosinhos pelo Bloco de Esquerda