Assinalamos o Bicentenário da primeira Constituição Portuguesa que, embora de existência fugaz, teve um enorme valor político, jurídico e histórico. No seu impulso inicial, não concluiu sequer um ano de vigência, mas permaneceu como o princípio do fim do Antigo Regime.
A pintura que encima este Hemiciclo é uma imagem da Constituinte vintista. Esta imagem segue até hoje como bandeira da soberania popular e da igualdade perante a Lei. E esse é o legado nacional a que nos inclinamos. Podemos ler a Constituição de 1822:
"A Nação é livre e independente, e não pode ser património de ninguém. A ela somente pertence fazer, pelos seus Deputados juntos em cortes, a sua Constituição, ou Lei Fundamental, sem dependência da sanção do Rei."
A Sala das Sessões da Assembleia da República, inaugurada em 1903 e projetada pelo arquiteto Ventura Terra. A centro, grande luneta pintada por Veloso Salgado, representando as Cortes Constituintes de 1821. Fotografia: Miguel Saavedra (2010) para Assembleia da República.
No artigo 9º podemos ler "A Lei é igual para todos". Tudo isto era profundamente revolucionário contra a monarquia absolutista e os seus privilégios de casta. Estava mesmo, até às revoluções de 1830, em contracorrente com a Europa da Santa Aliança, restauracionista do absolutismo pós-revolução francesa.
É certo que essa soberania fundada na Nação se reduzia a cidadãos homens com "renda suficiente", mas não deixa de ser um avanço incomum face a séculos de monarquia e domínio daqueles que estavam acima da lei. Era o produto de um liberalismo que ainda era a "esquerda" da época e, no entender de muitos historiadores, estabeleceu uma "monarquia republicana". A figura real não tinha intervenção substancial nos assuntos públicos e o parlamento seria o novo trono.
Esta ideia nuclear é recuperada na Constituição de 1838 e abre o caminho à eliminação da monarquia e à instauração da República na Constituição de 1911.
A emergência de uma soberania provinda da cidadania é obra, entre outros, do Sinédrio, que reúne a partir de 1818, no Porto. Um grupo de intelectuais e comerciantes que chamou a si o ativismo revolucionário. E foram eles que assumiram o poder, com o apoio do exército e de populares, com uma perspetiva de País. Foram eles que idealizaram a revolução de 1920, depois das pesadas faturas das invasões napoleónicas e do protetorado inglês.
Tinham no próprio nome a mensagem do seu propósito. Sinédrio significa, pelo étimo grego, Assembleia, como esta em que estamos. E, por isso, há que prestar reconhecimento ao mais destacado deles todos, Manuel Fernandes Tomás. Foi o arquiteto do vintismo e da Constituinte de 21. Revelou-se na configuração da estrutura da Constituição e no seu catálogo de direitos individuais e gerais.
Manuel Fernandes Tomás, Manuel Borges Carneiro e Joaquim António de Aguiar por Columbano Augusto Bordalo Pinheiro, no Museu da Assembleia da República.
Mas relevo aqui o que poucas vezes é enaltecido. O facto de ter conseguido a maioria da Constituinte para votar o alargamento do direito de voto aos homens empregados e não proprietários.
Cito Manuel Fernandes Tomás: "O Congresso, privando os trabalhadores de votarem nas eleições, irá pôr a nação portuguesa em pior estado do que estava antes de se estabelecerem eleições diretas; por este modo, qualquer cidadão português não gozará do direito mais precioso que o homem pode ter na sociedade que é o de poder escolher aquele que o há de representar. Se se admite o rico a votar, porque há de ser excluído o que não tem nada".
Gomes Canotilho situa aqui a origem de uma lei eleitoral de janeiro de 1822 que consagraria um direito de sufrágio tendencialmente universal, apesar de não incluir o sufrágio feminino. Na Carta de 1826 esse tipo de sufrágio universal será afastado em favor do voto censitário, mas o sufrágio universal, sem discriminação social, nem de género, foi uma longa jornada que começou realmente 1822.
Quando olhamos para a pintura deste Hemiciclo, de Veloso Salgado, é Manuel Fernandes que vemos no uso da palavra, mas reparamos também no eclesiástico que presidia aos trabalhos. O Bispo da Bahia. E aí estava a encruzilhada maior: que Brasil?
A Constituição destinava-se a ser a Lei Fundamental do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves. Essa projeção colonial ainda tinha guarida no vintismo. O Rei João VI estava no Brasil e fora intimado a aceitar quer o regresso a Lisboa, quer o resultado da Constituinte, o que fez, embora com dissimuladas intenções.
Ainda antes da aceitação formal da Constituição por parte do monarca, a 1 de outubro, o regente Pedro declarou a independência do Brasil. Era o fim do Reino Unido.
"A proclamação da Independência" de François-René Moreaux, retratando D. Pedro ao centro, no Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil.
Os Braganças reagiam ao vintismo não querendo a recolonização do Brasil (entretanto elevado a Reino), nem que nele acabasse o poder da aristocracia agrária e da escravatura, o que era a opressão de classe. A independência do Brasil, sobre a qual também passam duzentos anos, foi a rejeição do vintismo.
É certo que a Constituição vintista não estava isenta de culpa, ela admitia implicitamente a existência de escravos nas colónias e do tráfico de escravos em que assentava o sistema económico brasileiro. Mas não é menos certo que a independência do Brasil - apesar de ter sido querida por muitos, inclusive pelos movimentos abolicionistas negros - manteve o poder dos escravocratas.
Esse sentido de independência incompleta seria 60 anos mais tarde traduzido por Joaquim Nabuco como a vontade de unir “em uma só legião os abolicionistas brasileiros, para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em que vejamos a independência completada pela abolição, e o Brasil elevado à dignidade de país livre, como o foi em 1822 à de nação soberana, perante a América e o mundo”.
Voltando a Pedro, hoje tão celebrado, dissolveu pouco depois a Constituinte brasileira porque não lhe agradava o liberalismo radical que se perfilava nos representantes do povo brasileiro e outorgou a Constituição do Império brasileiro.
Pedro I do Brasil quis repetir o mesmo processo em Portugal com a imposição da Carta Constitucional, rejeitando o acervo da Constituição de 22, mas perdeu o poder para a restauração absolutista. Convém lembrar que pode sempre acontecer uma vila-francada para acabar com as democracias. Note-se, ultrapassando propaganda contrafeita hoje muito em voga, que Pedro era hostil a quaisquer ideias de soberania popular, e podem crer que era do coração.
Vilafrancada: D. Miguel saúda a população à chegada a Vila Franca de Xira, a 27 de Maio de 1823.
A Constituição de 38 já não foi outorgada pela rainha Maria, mas aceite e respeitada pela dita. Pedro não teve outro remédio se não contemporizar com os liberais na guerra civil contra o absolutismo, não teria outro meio para ver a filha no trono. Contudo, isso significou que no Portugal europeu tinha terminado finalmente a monarquia de direito divino. Infelizmente, não no Brasil, onde o Império só cairá em 1889, meses depois da abolição da escravatura.
Outros ilustres vintistas deixaram o seu nome na Constituinte de 21 como Borges Carneiro, ou Ferreira Borges. Todos foram precursores da esquerda republicana e do Portugal que somos. O liberalismo radical do século XIX transportou-se para o republicanismo e para o democratismo que haveria de vencer outros momentos de retrocesso em Portugal.
A recuperação das ideias relativas à soberania popular é um desafio sempre atual quando assistimos à emergência de diretórios político-económicas - outorgados, é a palavra - por tratados internacionais sem qualquer decisão direta dos povos. Um último tributo de memória à Constituição de 22: ela cria a escola pública para rapazes e raparigas em todos os lugares do território. Esse era o horizonte imaterial mais material que ali ficou de um novo Portugal!