Auditoria Cidadã apresenta relatório sobre a dívida portuguesa

19 de janeiro 2013 - 12:43

O I Encontro Nacional da Iniciativa por uma Auditoria Cidadã arrancou este sábado em Lisboa, com sala cheia para conhecer a realidade da dívida portuguesa e as propostas para evitar o estrangulamento da economia e da sociedade portuguesa. Na parte da manhã foi apresentado o Relatório Preliminar do Grupo Técnico da Auditoria Cidadã.

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I Encontro Nacional da Iniciativa por uma Auditoria Cidadã

O relatório com mais de 120 páginas aponta as razões do endividamento público e privado, a sua evolução e forma de financiamento ao longo das últimas décadas, para além de propostas de reestruturação. Na primeira parte deste Encontro, alguns dos autores dos capítulos deste relatório fizeram curtas apresentações. 

Depois das intervenções de boas vindas e do resumo de um ano de trabalho da Iniciativa por uma Auditoria Cidadã (IAC), a cargo de Ramiro Rodrigues e Ana Benavente, a economista Sara Rocha, que coordenou o Relatório com Nuno Teles e José Castro Caldas, mostrou às pessoas que encheram a sala do Instituto Franco-Português que a dívida poderá continuar a crescer na próxima década, contrariando as projeções do Governo e da troika. Para isso bastam pequenas revisões em baixa do crescimento económico ou em alta do défice e das taxas de juro, situações recorrentes nas previsões que têm vindo a ser feitas nos últimos anos.  Ainda por cima, "sabemos pelos próprios responsáveis do FMI que o impacto dos cortes na economia tem consequências muito mais graves do que o que eles previram", afirmou Sara Rocha. 

Em seguida, Eugénia Pires apresentou os vários instrumentos da dívida pública e as características de cada um deles, concluindo que a troika está a adquirir a maior parte da nossa dívida, que tradicionalmente usava as Obrigações do Tesouro (OT) como principal instrumento. Para esta economista, essa tendência prejudica os esforços para uma reestruturação, dado que "com a dívida em OT's disseminadas pelo mercado, um país soberano tem mais poder" de ditar as regras da negociação, mas quando uma parte significativa está na mão de entidades oficiais, como a troika, esse poder diminui.  Ou seja, no caso das OTs, todos os credores estão em pé de igualdade, mas tanto os títulos detidos pelo FMI como pela UE intitulam-se "super-seniores" tendo prioridade sobre os restantes e colocando mais obstáculos à reestruturação.

Nuno Teles, outro dos coordenadores do relatório, procurou desmontar o mito de que a despesa pública portuguesa é gigantesca em comparação com outros países. "A dívida pública portuguesa tinha um peso no PIB semelhante à francesa ou alemã em 2008. O problema era a dívida externa, a maior da Europa, a par de Espanha, Grécia e Irlanda. Por isso, a dívida pública destes países passou a ser alvo dos especuladores", explicou o economista. A perda de competitividade com a entrada de Portugal no euro e a estagnação da economia desde 2001, fez o país aumentar o endividamento externo, como os restantes países da periferia europeia.

"Analisando a dívida e o crecimento do PIB nos últimos 20 anos, vemos que os períodos de crescimento são os períodos de estabilidade da dívida pública. Pelo contrário, os períodos de depressão económica são os do crescimento da dívida", assinalou Nuno Teles, elencando como problemas o facto do sistema fiscal português estar enviesado, a concorrência fiscal europeia, que baixa o imposto sobre o capital para atrai investimento, o crescimento dos paraísos fiscais para os grandes rendimentos escaparem ao fisco. O resultado é que "o desequilíbrio entre capital e trabalho tem sido cada vez maior em prejuízo do trabalho".

 

"A dívida pública é o parente pobre da nossa dívida"

Na apresentação da "dimensão privada da dívida", Sandro Mendonça defendeu que "a dívida pública é o parente pobre da nossa dívida agregada" e que "essa dívida empalidece quando comparada com a dívida privada".  Para este economista, o aumento da parte do Estado no total da dívida portuguesa aconteceu a partir de 2009, a seguir à crise financeira. Mas nas vésperas da crise, entre 2005 e 2008, houve uma subida do endividamento das empresas. "Quando nos dizem que o Estado se portou mal, vemos que das empresas não veio um bom exemplo nem um bom endividamento antes da crise rebentar", defendeu Sandro Mendonça, dando o exemplo do "assédio do crédito a particulares por parte dos bancos, que levou ao aumento do endividamento das famílias até à altura da crise".

O capítulo das Parcerias Público Privadas foi apresentado por João Camargo, que começou por defender que "as PPP não são mais transparentes, não são mais baratas nem têm menos derrapagens que as obras públicas tradicionais. São mais uma forma de resgate do sistema financeiro". A análise dos números permite à IAC concluir que "Portugal é o campeão do mundo em PPP em relação ao PIB". João Camargo identificou "120 PPP no Estado central, mas há centenas ou milhares de PPP a nível local". Quem mais lucra com elas são as "big four": Mota Engil, Grupo Espírito Santo, Soares da Costa e Grupo Mello - 16 mil milhões, a que se junta a recém-privatizada EDP com o plano nacional de barragens e a rede de distribuição de eletricidade.

João Camargo referiu-se ainda à auditoria encomendada pelo Estado, que "só auditou uma parte e o relatório nem sequer foi divulgado" e denunciou que a empresa contratada - a Ernst & Young - trabalha com as empresas que estão em 25 PPP. Quanto às renegociações prometidas por Passos Coelho, a IAC verifica que "prolongam as concessões e prejudicam a população", nomeadamente com a introdução de mais portagens. "A nacionalização com compensação das PPP, por exemplo das autoestradas, pode ser o último grande saque ao erário público", alertou Camargo, antes de deixar aos presentes uma definição para este modelo de negócio em que "as empresas fornecem os bolsos e o Estado fornece o dinheiro".

 

"Precisamos duma reestruturação liderada pelo devedor"

José Castro Caldas concluiu as apresentações do relatório, agradecendo aos autores que dedicaram "um ano de trabalho para compreender e analisar melhor a dívida". "A nossa primeira conclusão é que não sabemos da missa a metade", destacou o economista, exemplificando com o caso da banca. "No BPN há 3 mil milhões de dívidas já assumidas e 4 mil milhões de dívidas potenciais. Nos outros bancos, há 21 mil milhões de garantias públicas, que podem ser transformados em perdas públicas", avisou.

"Sabemos hoje que não foi o perigo de ficarmos sem dinheiro para salários e pensões que foi o motivo do pedido de empréstimo da troika: foram os bancos que ficaram sem acesso ao crédito. Porque é que não nos contaram a verdade?", questionou Castro Caldas, assumindo a impossibilidade de pagar a atual dívida e contestando o rumo da "austeridade que nos empobrece e nos conduz a um declínio prolongado que não serve para pagar a dívida", o que "exigiria uma redução dos salários e do Estado Social em proporções inimagináveis e incompatíveis com a democracia e o Estado de direito".

"A dívida está inquinada com despesa pública ilegítima, que socializa perdas privadas, em particular dos bancos. São sobrepostos os interesses dos credores aos direitos humanos da maior parte dos cidadãos", defendeu ainda o coordenador do relatório. Abrindo o caminho à discussão da parte da tarde sobre as alternativas, Castro Caldas defendeu "um processo de renegociação urgente com os credores, incluindo a troika, dos juros, maturidades e do próprio valor da dívida". Nas suas palavras será um processo feito "com determinação", que implica que "o Estado português adote uma moratória do pagamento da dívida enquanto o processo de negociações decorrer". Castro Caldas contrastou esta renegociação com a que foi posta em prática na Grécia, que é "uma reestruturação liderada pelos credores, que protege mais os interesses destes do que dos cidadãos" e deixa de fora os credores oficiais, que detêm a fatia de leão da nossa dívida. "Uma reestruturação da dívida nestas condições traria consigo um novo memorando da troika, com mais austeridade. Não é de uma reestruturação à grega que nós precisamos, precisamos duma reestruturação liderada pelo devedor, com uma moratória ao serviço da dívida", argumentou.

Castro Caldas acredita que a reestruturação irá ocorrer e "mais vale que seja cedo do que tarde, quando a nossa economia chegar ao ponto do que se passa na economia grega". Para isso a IAC pretende "reunir o melhor conhecimento da sociedade portuguesa para levar para a frente este processo e exigir ao Estado português que se prepare também".