“Quando eu cantava o fado na rua não nos livrávamos da polícia”

O esquerda.net republica a entrevista de Maria Eduarda a Zeca Afonso publicada na edição nº145 de 9 de dezembro de 1981 do jornal “em marcha”.

22 de fevereiro 2017 - 23:48
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Esta é uma entrevista que, assim à primeira, parece sem razão de existir. O entrevistado chama-se José Afonso – o Zé Afonso, o Zeca – e nem precisa de apresentações. Acaba de regressar de França. A sua “incursão” além-Pirinéus saldou-se por um êxito artístico? Gravou um disco? O que é que há aí de novidade?

Fica aí apenas um resumo prensado do muito que o Zeca tinha (tem sempre!) para contar e a Maria Eduarda anotou. Fazem favor.

Mais êxito e condições de trabalho em França e um certo boicote em Portugal?

De há uns tempos para cá, os nossos protestos, as nossas reclamações têm, a pouco e pouco, sido atendidos. Nalguns casos, surgem algumas condições. Mas, em muitos outros, os artistas da nossa faixa são considerados quase como um serviço de bombeiros voluntários.

O que está a acontecer não se deve à proteção do governo. Muito pelo contrário. Deve-se aos esforços de certos grupos de pessoas, umas que trabalham dentro de instituições oficiais, outras por sua conta e risco. Dentro de um voluntarismo que sempre existiu neste país.

O que é interessante é que, apesar de tudo, nas quase nulas condições que aponto há, pelo país fora, iniciativas interessantíssimas: um festival de música erudita em Silves, uma feira de artesanato no Redondo, seguida de uma concentração de dizedores de décimas, etc. Por todo o lado há iniciativas que se devem à boa vontade de pessoas que nessas terras animam toda a vida cultura.

Apesar da Lei de Proteção à Música Portuguesa, continua a imperar a anglo-americana, não é?

Trata-se de uma lei justa. Independentemente de se saber se a produção nacional é ou não de qualidade, independentemente de se saber que tipo de música portuguesa é que passa na rádio ou na televisão.

Eu não tenho nada contra a música anglo-americana de qualidade. Antes pelo contrário. Acontece é que continuamos a assistir a um bombardeamento musical, através de programas em que se transmite predominantemente ou mesmo exclusivamente esse tipo de música, ignorando-se tudo o mais e condicionando-se o gosto da juventude que desconhece tudo o que não seja a bateria, a guitarra elétrica e cantar rock.

A tua música foi, até agora, quase sempre baseada na música portuguesa de raízes populares. Pela tua experiência, achas que não é suficientemente rica para se trabalhar sobre ela sem ter de passar pela forma de rock?

O rock é uma música aceite, não só pela juventude burguesa, como até pela juventude operária. É o gosto dominante… Antes do rock português, há uns anos atrás, havia o chamado nacional-cançonetismo, imposto pelo regime como música representativa do nosso génio. O rock que se canta para aí, pelo menos, teve esta virtude: ajudou a liquidar o nacional-cançonetismo.

Quando apareceu a chamada balada, por exemplo, também se caiu num certo cansaço. As canções eram um bocado primárias, à base de dois tons ou três na viola. E tudo passava por balada… É possível que esses sujeitos, dentro do condicionamento existente – que o rock é, de facto, um padrão praticamente instituído – consigam, daqui a uns dois ou três anos, fazer coisas com um pouco mais de imaginação. Sem terem de aleijar a língua portuguesa para a meterem dentro dos compassos do rock. Que é uma coisa que se ouve com frequência.

Acabas de gravar um disco com fados de Coimbra. Há grande confusão quanto à qualidade deste tipo de música. Que dizes?

Criou-se aí, sobretudo entra a malta progressista, uma ideia de que o fado de Coimbra é, digamos, um produto reacionário. De inferior qualidade. Que exprimia um sentimento piegas, lamecha, etc. De facto, grande parte dos fados de Coimbra, assim como muitos fados de Lisboa, têm essas características. Mas, o que é certo é que esse tipo de fado correspondeu a um gosto que surgiu, em determinada altura, em Coimbra. Era uma canção mais ou menos dominante, aceite pela classe dominante, aceite pela classe estudantil, mas aceite também por outro tipo de camadas. Por vezes, o próprio estudante alternava a cantar com cantores não estudantes, normalmente em locais ao ar livre. É um tipo de música que está ligado a uma época. E também conheceu intérpretes de grande qualidade – o João de Deus, o Menano, o Edmundo Bettencourt e tantos outros.

Num determinado país não se pode traçar assim, por via burocrática, uma arte ou uma linha. Uma pedagogia artística, digamos assim, que esteja dissociada de aspetos de tradição. Por que não se há-de cantar o fado de Coimbra? Agora, fazem-se serenatas monumentais com figuras ligadas à direita, e cantando os fados mais imbecis, com as letras mais tolas e mais atrasadas que se fizeram em Coimbra, devidamente protegidos pela polícia. Quando eu cantava fados de Coimbra nas ruas e não tinha devida autorização, não nos livráramos da intervenção policial, por vezes violenta.

A direita tem tentado convencer as pessoas de que o fado e o passado de Coimbra são exclusivo dela, direita. Quer dizer, a paladina do passado de Coimbra é a direita. Isto é perfeitamente falso. Cantores como Bettencourt, que tinha uma perspetiva inteligente e progressista da cultura não tem nada a ver com os MIRNs [grupo de extrema-direita] nem com esse tipo de reacender praxes. Quando muito, o que se pode dizer é que o fado de Coimbra não tinha, não estava ligado a nenhuma atitude política.

É o que pretendes reafirmar com este teu disco?

Este disco obedece a dois critérios. Primeiro, mostrar que um individuo de formação progressista, que esteve e está ligado a Coimbra, pode perfeitamente cantar os seus fados com uma certa qualidade artística. Por outro lado, é uma homenagem pessoal que eu faço a Edmundo Bettencourt.

Há pouco, falaste do apoio aos trabalhadores têxteis da Covilhã?

Apoio incondicionalmente a luta dos têxteis e coloco-me à disposição dos operários da Covilhã.

Outra coisa: a situação dos presos políticos do chamado “caso PRP”,…

Como já disse em vários sítios, aqui e lá fora, o que posso fazer (e, já tenho feito) é colocar-me à disposição das comissões de apoio aos presos políticos antifascistas e desenvolver uma atividade, como cidadão e como cantor, aqui ou lá fora, com o objetivo de protestar contra esta situação. Chamar a atenção para este escândalo, depois das decisões do Supremo de anular as sentenças, de manter presas as pessoas envolvidas no “caso PRP”. Parece-me ser o caso mais flagrante de justiça com duas faces. Temos que trabalhar para lançar novamente uma campanha de pressão e força, que as pessoas estão-se a habituar a tudo.

Não estiveste na Festa de Solidariedade com o “em marcha” por estares, nessa altura, em França. Registámos a tua moção de solidariedade.

Vou repetir aquilo que tenho dito: é uma atitude discriminatória, para silenciar um jornal progressista. Um dos poucos jornais representativos da esquerda deste país, que defende a luta dos trabalhadores. Se estou disposto a apoiar as reivindicações dos presos antifascistas, com certeza que também estou disposto a apoiar a luta do vosso jornal.

Apesar de tudo, alguns cantores não esquecem estes deveres. Felizmente.


Entrevista de Maria Eduarda a Zeca Afonso publicada na edição nº145 de 9 de dezembro de 1981 do jornal “em marcha”.

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