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“Quando eu cantava o fado na rua não nos livrávamos da polícia”

O esquerda.net republica a entrevista de Maria Eduarda a Zeca Afonso publicada na edição nº145 de 9 de dezembro de 1981 do jornal “em marcha”.

Esta é uma entrevista que, assim à primeira, parece sem razão de existir. O entrevistado chama-se José Afonso – o Zé Afonso, o Zeca – e nem precisa de apresentações. Acaba de regressar de França. A sua “incursão” além-Pirinéus saldou-se por um êxito artístico? Gravou um disco? O que é que há aí de novidade?

Fica aí apenas um resumo prensado do muito que o Zeca tinha (tem sempre!) para contar e a Maria Eduarda anotou. Fazem favor.

Mais êxito e condições de trabalho em França e um certo boicote em Portugal?

De há uns tempos para cá, os nossos protestos, as nossas reclamações têm, a pouco e pouco, sido atendidos. Nalguns casos, surgem algumas condições. Mas, em muitos outros, os artistas da nossa faixa são considerados quase como um serviço de bombeiros voluntários.

O que está a acontecer não se deve à proteção do governo. Muito pelo contrário. Deve-se aos esforços de certos grupos de pessoas, umas que trabalham dentro de instituições oficiais, outras por sua conta e risco. Dentro de um voluntarismo que sempre existiu neste país.

O que é interessante é que, apesar de tudo, nas quase nulas condições que aponto há, pelo país fora, iniciativas interessantíssimas: um festival de música erudita em Silves, uma feira de artesanato no Redondo, seguida de uma concentração de dizedores de décimas, etc. Por todo o lado há iniciativas que se devem à boa vontade de pessoas que nessas terras animam toda a vida cultura.

Apesar da Lei de Proteção à Música Portuguesa, continua a imperar a anglo-americana, não é?

Trata-se de uma lei justa. Independentemente de se saber se a produção nacional é ou não de qualidade, independentemente de se saber que tipo de música portuguesa é que passa na rádio ou na televisão.

Eu não tenho nada contra a música anglo-americana de qualidade. Antes pelo contrário. Acontece é que continuamos a assistir a um bombardeamento musical, através de programas em que se transmite predominantemente ou mesmo exclusivamente esse tipo de música, ignorando-se tudo o mais e condicionando-se o gosto da juventude que desconhece tudo o que não seja a bateria, a guitarra elétrica e cantar rock.

A tua música foi, até agora, quase sempre baseada na música portuguesa de raízes populares. Pela tua experiência, achas que não é suficientemente rica para se trabalhar sobre ela sem ter de passar pela forma de rock?

O rock é uma música aceite, não só pela juventude burguesa, como até pela juventude operária. É o gosto dominante… Antes do rock português, há uns anos atrás, havia o chamado nacional-cançonetismo, imposto pelo regime como música representativa do nosso génio. O rock que se canta para aí, pelo menos, teve esta virtude: ajudou a liquidar o nacional-cançonetismo.

Quando apareceu a chamada balada, por exemplo, também se caiu num certo cansaço. As canções eram um bocado primárias, à base de dois tons ou três na viola. E tudo passava por balada… É possível que esses sujeitos, dentro do condicionamento existente – que o rock é, de facto, um padrão praticamente instituído – consigam, daqui a uns dois ou três anos, fazer coisas com um pouco mais de imaginação. Sem terem de aleijar a língua portuguesa para a meterem dentro dos compassos do rock. Que é uma coisa que se ouve com frequência.

Acabas de gravar um disco com fados de Coimbra. Há grande confusão quanto à qualidade deste tipo de música. Que dizes?

Criou-se aí, sobretudo entra a malta progressista, uma ideia de que o fado de Coimbra é, digamos, um produto reacionário. De inferior qualidade. Que exprimia um sentimento piegas, lamecha, etc. De facto, grande parte dos fados de Coimbra, assim como muitos fados de Lisboa, têm essas características. Mas, o que é certo é que esse tipo de fado correspondeu a um gosto que surgiu, em determinada altura, em Coimbra. Era uma canção mais ou menos dominante, aceite pela classe dominante, aceite pela classe estudantil, mas aceite também por outro tipo de camadas. Por vezes, o próprio estudante alternava a cantar com cantores não estudantes, normalmente em locais ao ar livre. É um tipo de música que está ligado a uma época. E também conheceu intérpretes de grande qualidade – o João de Deus, o Menano, o Edmundo Bettencourt e tantos outros.

Num determinado país não se pode traçar assim, por via burocrática, uma arte ou uma linha. Uma pedagogia artística, digamos assim, que esteja dissociada de aspetos de tradição. Por que não se há-de cantar o fado de Coimbra? Agora, fazem-se serenatas monumentais com figuras ligadas à direita, e cantando os fados mais imbecis, com as letras mais tolas e mais atrasadas que se fizeram em Coimbra, devidamente protegidos pela polícia. Quando eu cantava fados de Coimbra nas ruas e não tinha devida autorização, não nos livráramos da intervenção policial, por vezes violenta.

A direita tem tentado convencer as pessoas de que o fado e o passado de Coimbra são exclusivo dela, direita. Quer dizer, a paladina do passado de Coimbra é a direita. Isto é perfeitamente falso. Cantores como Bettencourt, que tinha uma perspetiva inteligente e progressista da cultura não tem nada a ver com os MIRNs [grupo de extrema-direita] nem com esse tipo de reacender praxes. Quando muito, o que se pode dizer é que o fado de Coimbra não tinha, não estava ligado a nenhuma atitude política.

É o que pretendes reafirmar com este teu disco?

Este disco obedece a dois critérios. Primeiro, mostrar que um individuo de formação progressista, que esteve e está ligado a Coimbra, pode perfeitamente cantar os seus fados com uma certa qualidade artística. Por outro lado, é uma homenagem pessoal que eu faço a Edmundo Bettencourt.

Há pouco, falaste do apoio aos trabalhadores têxteis da Covilhã?

Apoio incondicionalmente a luta dos têxteis e coloco-me à disposição dos operários da Covilhã.

Outra coisa: a situação dos presos políticos do chamado “caso PRP”,…

Como já disse em vários sítios, aqui e lá fora, o que posso fazer (e, já tenho feito) é colocar-me à disposição das comissões de apoio aos presos políticos antifascistas e desenvolver uma atividade, como cidadão e como cantor, aqui ou lá fora, com o objetivo de protestar contra esta situação. Chamar a atenção para este escândalo, depois das decisões do Supremo de anular as sentenças, de manter presas as pessoas envolvidas no “caso PRP”. Parece-me ser o caso mais flagrante de justiça com duas faces. Temos que trabalhar para lançar novamente uma campanha de pressão e força, que as pessoas estão-se a habituar a tudo.

Não estiveste na Festa de Solidariedade com o “em marcha” por estares, nessa altura, em França. Registámos a tua moção de solidariedade.

Vou repetir aquilo que tenho dito: é uma atitude discriminatória, para silenciar um jornal progressista. Um dos poucos jornais representativos da esquerda deste país, que defende a luta dos trabalhadores. Se estou disposto a apoiar as reivindicações dos presos antifascistas, com certeza que também estou disposto a apoiar a luta do vosso jornal.

Apesar de tudo, alguns cantores não esquecem estes deveres. Felizmente.


Entrevista de Maria Eduarda a Zeca Afonso publicada na edição nº145 de 9 de dezembro de 1981 do jornal “em marcha”.

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Neste dossier:

Zeca Afonso: Sem muros nem ameias

Um homem comprometido com a luta pela Liberdade. Um homem bom e humilde, solidário, com um enorme sentido de humor. Um criador nato, um génio. É assim que o descrevem músicos, ex-alunos, jornalistas... os Amigos do Zeca Afonso com quem o Esquerda.net falou. Dossier organizado por Mariana Carneiro.

Zeca Afonso: A incessante tentativa de transformar o mundo

As letras das músicas de Zeca Afonso, os seus poemas, as declarações prestadas nas inúmeras entrevistas que concedeu ao longo da sua vida, todos os seus testemunhos, não só nos dão a conhecer um pouco mais o seu percurso, a sua forma de estar na vida, a sua incessante tentativa de transformar o mundo, como também retratam a intemporalidade do seu contributo.

José Afonso: O Homem, o Professor, o Companheiro, o Amigo

No dia da sua partida, ia apanhar o comboio, de regresso, mas, quando chegou à estação, tinha uma quantidade de gente – população e alunos – a querer despedir-se do professor e do homem. Por Francisco Naia.

Com o Zeca Afonso aprendi a estar no palco e na música de modo diferente

O palco como espaço de partilha, não só entre músicos mas com o público; máximo rigor na prestação musical, inovação constante rejeitando «importações» alienantes preservando a nossa identidade, sempre valorizando a palavra. Por Janita Salomé.

Zeca Afonso em vídeo

Neste artigo, poderá aceder, entre outros, ao vídeo do concerto do Zeca Afonso no coliseu, em Lisboa, em 1983, a entrevistas concedidas pelo próprio à RTP e a uma televisão espanhola, assim como a um testemunho de Mário Viegas sobre o Zeca e a alguns tributos que lhe foram prestados após a sua morte.

Zeca Afonso, a força das palavras

O Esquerda.net relembra o grande artista e ativista e reproduz uma entrevista na qual Zeca fala sobre a necessidade de os jovens se oporem a um modelo de sociedade que é “teleguiado de longe por qualquer FMI, por qualquer deus banqueiro”.

“Quando eu cantava o fado na rua não nos livrávamos da polícia”

O esquerda.net republica a entrevista de Maria Eduarda a Zeca Afonso publicada na edição nº145 de 9 de dezembro de 1981 do jornal “em marcha”.

Zeca Afonso era de uma grande coragem física e intelectual

Questionado pelo Esquerda.net sobre qual é a grande herança do Zeca Afonso, Carlos Guerreiro responde: “Era um gajo muito bom. Era farol mas também era regaço, era riso mas também era profundidade intelectual. Era o Zeca, pá! Era um homem bom e humilde”.

O que aprendi de mais importante com o Zeca tem a ver com uma postura em relação ao mundo

No testemunho recolhido pelo Esquerda.net, o cantor Manuel Freire recorda a primeira vez que cantou com o Zeca e lembra o amigo como “um fulano normal que era um grande intérprete e um grande criador”.

Zeca Afonso foi estruturalmente um homem de cultura

Em conversa com o Esquerda.net, o arquiteto José Veloso fala sobre o seu convívio com Zeca Afonso aquando da participação de ambos no documentário do realizador de cinema Cunha Telles “Os Índios da Meia Praia”.

Zeca Afonso: Grande admiração pela juventude

Júlio Pereira recorda o seu melhor amigo, e como era fundamental para a sua criatividade estar rodeado de jovens e de coisas novas. O músico assinala ainda a forma como Zeca Afonso sente de uma maneira catastrófica a falência do 25 de Abril.

O Zeca era um inovador nato

Em conversa com o Esquerda.net, Sérgio Godinho afirma que a importância de Zeca Afonso "passa também por ele ser tão inovador, tão inventivo na maneira como compunha e tão surpreendente”. O músico deixa um conselho: “Ouçam o Zeca, vale a pena!”

Que viva o Zeca

De tanto se falar em José Afonso, o artista, por vezes corremos o risco de esquecer o Zeca, o ser inteiro. Por Viriato Teles.

Zeca Afonso: Um homem comprometido que fez da sua arte uma luta

Em entrevista ao Esquerda.net, Rui Pato fala sobre o seu companheiro de música e de estrada: “é um símbolo da liberdade e da luta pela liberdade. Sobre o ponto de vista musical, ele é que atirou a pedrada ao charco. Há música portuguesa antes do Zeca Afonso e depois do Zeca Afonso”.

Zeca Afonso: Instantes de vida

Com o Zeca, companheiro-intérprete de uma geração, aprendíamos as canções pilares de resistência, de esperança. Nas palavras certas para dizer revoltas e sonhos cabiam revolucionários, pacifistas… e todos os homens de boa vontade. Por Maria Antonieta Garcia.

Zeca Afonso: Um grande amigo e um homem extraordinário

Luís Cília refere a grande amizade que o une a Zeca Afonso. A enorme qualidade do seu trabalho “deixa grandes marcas na cultura portuguesa”, assinala o compositor e intérprete no testemunho que deu ao Esquerda.net.

Ação ou Acção ou há são

Sempre gostei de agir atuar e falar tal cumo Zeca escrevia cantava tocava atuava agia na clandestinidade depois no sucesso daí nossa amizade simples”. Por José Duarte.

Encontrei no Zeca Afonso um dos melhores seres humanos que alguma vez conheci

Num testemunho enviado ao Esquerda.net, Jorge Palma afirma que “quanto ao seu trabalho enquanto criador, a sua voz clara e sincera, o seu constante combate pela Liberdade, só temos de lhe ficar eternamente gratos e seguir o seu exemplo”.

Vejo sobretudo o Zeca como um músico e um poeta extraordinário

Em declarações ao Esquerda.net, Joaquim Vieira sinalizou que, enquanto músico, Zeca Afonso “reunia três qualidades: a poesia, a música e a voz”. “Nessa medida foi insuperável, ninguém chegou ao nível dele”, destaca o jornalista.

Zeca Afonso: As suas aulas eram absolutamente revolucionárias

Hélida Carvalho foi aluna de Zeca Afonso no Liceu Nacional de Setúbal durante cerca de dois meses, até o seu professor de Organização Política ser preso pela PIDE. Ao Esquerda.net descreve o primeiro contacto com a “ave rara”.

O Zeca passou a vida a dar-me conselhos

O encenador e diretor artístico Hélder Costa conheceu Zeca Afonso em Coimbra, na República do Prá-Kis-Tão. Já o último encontro teve lugar em Azeitão: foi “num dia absolutamente tétrico”, aquando da eleição de Cavaco Silva com maioria absoluta.

José Afonso, um cantor de valores

A maior herança que nos deixa é a sua obra, em musicalidade e conteúdo, que se revaloriza e se renova dia a dia pelos diferentes grupos e cantoras/es que continuam a beber da sua fonte, que parece inesgotável. Tem grande impacto e influência na Galiza. Por Francisco Peña (Xico de Carinho).

Fazemos da saudade e da memória do Zeca Afonso uma arma

Francisco Fanhais fala-nos da sua cumplicidade com o Zeca Afonso, dos vários momentos em que partilharam o palco, da gravação do álbum “Cantigas do Maio”, dos tempos do PREC, da participação nas campanhas de dinamização cultural do MFA.

Zeca Afonso: Ode à alegria

No caso do Zeca Afonso nunca resultaram os guetos de silêncio a que tentaram condená-lo, desde antes de Abril, quando a censura cortava o seu nome, impondo-lhe a morte do silêncio, tão pouco com os silêncios de matriz "democrático" por via da incomodidade do seu canto insurrecto. Por Fernando Paulouro Neves.

Para o Zeca

Digo-to, também por ti, para que saibas que a tua força não se acabou quando te foste, e enquanto houver memória, haverá força para ir longe, bem longe, mesmo além de Taprobana. Por Camilo Mortágua.

Sobre o Zeca Afonso

O que nos unia? Sei que nunca por nunca tentámos “converter-nos” um ao outro a opções religiosas ou ideológicas; tínhamos em comum o ideal que Mário Sacramento sintetizou naquela recomendação lapidar: “Por favor, façam que o mundo seja bom”. Por António Correia.

AJA celebra 30 anos a evocar a Obra e o exemplo de cidadão de José Afonso

Em declarações ao Esquerda.net, o presidente da direção da Associação José Afonso (AJA), Francisco Fanhais, afirma que a AJA tem como objetivo “dar continuidade ao legado do Zeca, preservar a sua memória e pôr a sua arte ao serviço da cidadania”.