Zeca Afonso era de uma grande coragem física e intelectual

Questionado pelo Esquerda.net sobre qual é a grande herança do Zeca Afonso, Carlos Guerreiro responde: “Era um gajo muito bom. Era farol mas também era regaço, era riso mas também era profundidade intelectual. Era o Zeca, pá! Era um homem bom e humilde”.

22 de fevereiro 2017 - 21:45
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“Os Vampiros” passavam por baixo de tudo e por cima de todos

Conheci o Zeca por volta de 1971, em Setúbal, onde residia, no café Central - não sei se ainda tem o mesmo nome -, no âmbito das atividades do círculo cultural de Setúbal. O Zeca já era, no entanto, conhecido do meu irmão, que era amigo íntimo e colega dos seus dois filhos mais velhos, do primeiro casamento, - a Lena e o Zé Manel. Como estudei num colégio interno de regime militar, até àquela data, da música dele só conhecia “Os Vampiros” , porque “Os Vampiros” passavam por baixo de tudo e por cima de todos.

Em mim, o impacto que teve foi o de romper a campânula onde vivia metido

Como músico e como poeta, encontrarás seguramente gente habilitada a falar-te disso com mais propriedade. Em mim, o impacto que teve foi o de romper a campânula onde vivia metido. Possibilitou-me o contacto com novo vocabulário, novos livros, novos discos, novas palavras, uma nova visão de uma série de coisas, falar de problemas que eram importantes na sociedade portuguesa e que estavam completamente congelados... Abriu um mundo novo.

Tinha a rara capacidade de se relacionar com as pessoas pelos mais variados motivos

O convívio com o Zeca foi de várias índoles, porque ele tinha a rara capacidade de se relacionar com as pessoas pelos mais variados motivos. O primeiro espectáculo que se fez num quartel depois do 25 de Abril fui eu que o organizei com o Zeca na Escola Prática de Serviço de Material em Sacavém. O Zeca foi próximo da LUAR, da qual eu também era mais ou menos próximo. Em Setúbal existia um grupo muito forte que tinha muita influência do Zeca, gente muito jovem que tinha feito também toda uma aprendizagem em torno dele. Entretanto, fui eu que trouxe o Zeca para morar em Azeitão, com a minha mulher. Fomos nós que tratámos da vinda deles e, assim, passámos a ter uma relação de vizinhança e de proximidade muito grande. Além disso, de vez em quando tomava conta dos putos dele, filhos do segundo casamento. O Zeca não conduzia, e era a Zélia que normalmente se deslocava com ele para todo o lado. A Lena, a filha mais velha do primeiro casamento, e um grupo de amigos, costumavam tomar conta do Pedro e da Joana. Tinha com o Zeca relações da mais variada índole, que iam da simples vizinhança até ao companheirismo e militância, política e cultural.

De uma grande coragem física e intelectual

Tive muitas experiências marcantes com o Zeca, mas o que me parece mais relevante é dar nota de que ele era um indivíduo que, para além de extremamente inteligente, era extremamente humilde e de uma grande coragem física e intelectual. E, às vezes, a coragem intelectual é bem mais difícil de sustentar do que a física. O Zeca era um gajo de uma dádiva total, solidário como ninguém, humilde, capaz de encontrar nas pessoas mais humildes coragem e capacidade de luta que o galvanizavam também a ele. Tenho muitas histórias conjuntas, mas não me parece que sejam relevantes. Vou-te dar um exemplo apenas.. Quando o Zeca fez o “Como se fora seu filho”, gravou uma canção chamada “Papuça”. Meses antes da saída do disco, telefonou-me para me pedir para estar com ele. Morávamos perto um do outro. Mostrou-me o poema “Papuça”, o que me deixou muito admirado, porque o Zeca nunca tinha feito isso. Li o poema e quando cheguei ao fim olhei para ele um bocado interrogativamente, perguntando-lhe porque é que me tinha chamado para ler aquilo. Respondeu-me da seguinte forma: “é que eu falo na cantiga de quatro amigos nossos, comuns, e queria saber se achas que os outros amigos ficam de algum modo chateados por só falar desses e não de outros”. Ora uma pessoa, um génio musical como o Zeca, que se permite fazer isto e pedir a opinião a um pé de chumbo... só me levou a responder que era um assunto de autor e que não tinha de dar satisfação a ninguém. Que, seguramente, os amigos não iam ficar chateados e se ficassem tínhamos pena… É para te dar o exemplo de como o Zeca, que era um indivíduo que tinha qualidades tão arreigadas, se permitia depois junto dos amigos ter o tratamento igualitário que tinha em relação às questões sociais.

O Zeca era um homem comprometidíssimo com a luta pela liberdade, ia a todas. Havia, ainda assim, tendo para a descontração. O Zeca tinha um bom humor e um sentido de humor apuradíssimo, e também gostava de copos, mas quando o conheci já o estômago não lhe permitia fazer grandes farras. Da maneira como se dava na totalidade, participava em tudo e não cuidava de si. Cantava em condições precárias, não tinha tempo para comer, não comia decentemente... Ele gostava de jogar futebol, ainda joguei futebol com o Zeca, e adorava judo. Era um jogador de futebol razoável. Tinha sido extremo direito na Académica e nós dizíamos-lhe, em tom de piada, que quem joga pela direita, mesmo que seja futebol, tem sempre alguma quebra. O Zeca era também um ouvinte eclético de música e era de uma generosidade incrível. Era incapaz de passar na estrada e ver alguém a pedir boleia e não quase que obrigar a Zélia a parar para dar boleia. Fosse quem fosse, tivesse o aspeto que tivesse. Esquecia-se de si em prol de ativar as pessoas, de as pôr a pensar, de as pôr a combater, sempre numa perspetiva unitária, quer antes do 25 de Abril, quer depois, pese embora algumas incompreensões que por aí tenham surgido pelo caminho.

O Zeca era um gajo muito bom

A grande herança do Zeca? Era um gajo muito bom. Era farol mas também era regaço, era riso mas também era profundidade intelectual. Era o Zeca, pá! Era um homem bom e humilde.


 

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