José Paulo Velho Geraldo de Albuquerque nasceu em Lagos, a 9 de junho de 1930. Licenciou-se em Arquitectura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e passou a exercer a sua profissão em Lagos.
Entre 1974 e 1976, trabalhou para o Fundo de Fomento da Habitação, como coordenador de equipas de projecto do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), com projectos construídos em diversos concelhos algarvios, entre os quais o do bairro dos “Índios da Meia Praia”.
O realizador de cinema Cunha Telles documentou em filme de longa metragem o processo de participação popular levado a cabo nessa comunidade piscatória. José Afonso escreveu, musicou e cantou a canção com o mesmo nome. (informações retiradas da biografia de José Veloso publicada na página de facebook Antifascistas da Resistência)
Fui colega do Zeca Afonso, durante um ano letivo, quando ele foi professor na então Escola Comercial e Industrial de Lagos. Éramos dois jovens professores, andávamos ambos na casa dos 20 anos. Mas nessa altura conheci-o muito mal. O Zeca nunca esteve muito ligado a Lagos, teve uma ligação muito mais profunda com as pessoas e a sociedade de Olhão e Faro. Aqui não, foi uma passagem de um jovem professor que tinha uma viola e cantava.
Conheci-o melhor já passados alguns anos e, muito particularmente, a seguir ao 25 de Abril.
Entre várias outras situações pontuais, encontrei-o aquando da sua participação no filme do Cunha Teles, “Os Índios da Meia Praia”, que foi feito em Lagos. A nível pessoal, já nos tínhamos encontrado noutros contextos, em termos de atuação conjunta foi nessa altura que convivemos. E a partir daí sim, tive vários contactos a nível pessoal e familiar com ele.
Eu também participei no filme do Cunha Teles, na medida em que o mesmo era sobre “os Índios da Meia Praia”, e a sua participação no processo de eliminação das barracas, no qual fui também um participante direto, porque o projeto era meu. A ação e participação com a população do bairro nessa altura foi, de facto, muito intensa.
O Zeca, com a sua postura de cidadão solidário, inteligente e culto, apreendeu a dimensão do que os índios da Meia Praia estavam realizando e entregou-se à sua própria participação, cantando a história da epopeia que era aquele magnifico esforço colectivo na transformação das suas vidas. Tinham sido os marginalizados índios da Meia Praia. Eram os lutadores índios da Meia Praia, cidadãos de corpo inteiro.
Um dia o Zeca disse-me que já tinha a melodia e estava a preparar a letra para o filme e que queria ver isso comigo. Encontrámos-nos uma noite em Setúbal num café e ali, numa das mesas, com uma pilha de folhas A4, escreveu a música para o filme, conversando comigo, tirando dúvidas e pedindo opiniões. Estivemos cerca de três horas juntos e dali saiu a letra do poema que ele fez sobre os índios da meia praia, do qual escolheu não sei quantas quadras que são as que constam da canção. Quando acabou de escrever, ofereceu-me o manuscrito, que, recentemente, ofereci à Associação José Afonso.
Descrever o Zeca? Uma personalidade como o Zeca Afonso, um homem com a vida que ele teve, com a sua maneira de ser, a sua personalidade, não se descreve assim ao telefone! Não tenho nada a acrescentar, com certeza, da minha opinião pessoal, ao que todos aqueles que estão muito mais habilitados do que eu já disseram sobre a sua vida e o seu trabalho. Não tenho nada a acrescentar. A grande definição que eu dou do Zeca Afonso é que foi estruturalmente um homem de cultura. Em tudo o que isto quer dizer: personalidade, caráter, um homem social, um homem solidário, um homem político, um artista... Tudo isso estruturado numa profunda cultura e uma grande exigência cultural – no sentido mais lato que pode haver - em todos os seus atos. Isto é o que posso dizer sobre o Zeca, que não é nada mais do que já foi dito.
Testemunho gravado pelo Esquerda.net via telemóvel a 20 de fevereiro de 2017.
Os Índios da Meia-Praia
Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço
De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a ré
Houve até quem estendesse
A mão a mãe caridade
Para comprar um bilhete
De paragem para a cidade
Oh mar que tanto forcejas
Pescador de peixe ingrato
Trabalhaste noite e dia
Para ganhares um pataco
Quando os teus olhos tropeçam
No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê peças
De ouro caindo na lota
Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Uma cabana de colmo
E viva a comunidade
Quando a gente está unida
Tudo se faz de vontade
Tudo se faz de vontade
Mas não chega a nossa voz
Só do mar tem o proveito
Quem se aproveita de nós
Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Chupam-te o couro cab'ludo
Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia
Diz o amigo no aperto
Pouco ganho, muita léria
Hei-de fazer uma casa
Feita de pau e de pedra
Adeus disse a Monte-Gordo
(Nada o prende ao mal passado)
Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado
Foram "ficando ficando"
Quando um dia um cidadão
Não sei nem como nem quando
Veio à baila a habitação
Mas quem tem calos no rabo
- E isto não é segredo -
É sempre desconfiado
Põe-se atrás do arvoredo
Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado
Veio um cheque pelo correio
E alguns pedreiros amigos
Disse o pescador consigo
Só quem trabalha é honrado
Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo
E toda a gente interessada
Colaborou a preceito
- Vamos trabalhar a eito
Dizia a rapaziada
Não basta pregar um prego
Para ter um bairro novo
Só "unidos venceremos"
Reza um ditado do Povo
E se a má língua não cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia
Foi sempre a tua figura
Tubarão de mil aparas
Deixas tudo à dependura
Quando na presa reparas
Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Quem vê na praia o turista
Para jogar na roleta
Vestir a casaca preta
Do malfrão capitalista
Mas não por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua
Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar pra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz
E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hão-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada
Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo