Naquela altura eu era músico de rock
A minha consciência política começa a formar-se no princípio dos anos 70, altura em que um dos amigos mais chegados – o Abílio Mendes – é preso e torturado pela PIDE. Só aí começo a ouvir Zeca e lembro-me de ter tentado ir ouvi-lo em duas situações. Digo tentado pois ambas (em Moscavide e creio Campo de Ourique) não se realizaram porque foram proibidas…! Apesar de nos termos cruzado algumas vezes (já depois do 25 de Abril) só o venho a conhecer mais de perto em 1976, quando o convido para participar no meu disco “Fernandinho vai ó vinho”.
Naquela altura eu era músico de rock. Dos 10 aos 20 anos. Quando faço 20 é quando se dá o 25 de Abril. A música que ouvia até ao 25 de Abril era fundamentalmente rock, porque era aquilo que fazia e o que mais me interessava.
Há um momento em que tinha uma banda chamada Playboys. Fomos tocar às Caldas da Rainha, ao Casino das Caldas, e que era um casino curioso. Tinha música ao vivo durante as férias de verão e os clientes noturnos eram jovens que iam para a Foz do Arelho. Era aquilo que correspondia ao conceito de discoteca de hoje. Eles quiseram fazer uma noite diferente e convidaram o Paulo de Carvalho e esta banda na qual eu tocava. Quando estou a tocar, ou logo a seguir, sou abordado pelo Pedro Castro que me convidou, e ao baterista, para fazermos parte de uma banda que ele estava a formar - a Petrus Castrus. Esta banda de algum modo foi importante, já que era uma banda de rock que gravava em português e que tinha preocupações ao nível dos textos que escolhia. A banda gravava para a editora Sassetti, que, por sua vez, era a editora do José Jorge Letria, do José Mário Branco, do Sérgio Godinho e de outros. Como o José Mário Branco estava em França, era ele que tinha o contacto com os estúdios, que se chamavam Château d'Hérouville, onde gravavam os Pink Floyd, o Elton John. Fomos gravar a esse estúdio.
Lembro-me perfeitamente de estar no Châteaud'Hérouville e de ler o poema “Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos”, que é de uma música que canta o José Mário Branco, e que eu sempre pensei que era dele e que, afinal de contas, foi escrita pelo Sérgio Godinho. Foi a primeira pancada que levei a nível de texto literário ligado à música. Transtornou-me, no bom sentido.
Tudo isto para dizer que, até ao 25 de Abril, tudo aquilo que vivia estava ligado ao rock, e isso passa não só pela música, mas também pela atitude, pela forma de vida. Lembro-me que, naquela altura, fui expulso de um café por usar maxi casaco. Estamos a falar de 1970... Ou ser expulso de um bar por dar um beijo inócuo na minha mulher, que era a mãe do meu primeiro filho. Ser rocker naquela altura não era uma coisa muito fácil. Não tinha aprovação social e muito menos aprovação da família. Portanto, até esta altura, não tive muito contacto com a música do Zeca. Ouvi “Os Vampiros” e pouco mais. É a partir do 25 de Abril que a minha vida se transforma.
Vivíamos intensamente a construção dos discos
Em 1974, cria-se a primeira peça musical de teatro no nosso país - excetuando a revista, no contexto tradicional que tinha - que se chamava “Liberdade, Liberdade”e José Mário Branco convidou-me para formar um grupo e tocar nesta peça. Esteve no Villaret e foi um êxito enorme, estava sempre cheio. A esta peça foram todos os cantautores importantes do nosso país. Tive oportunidade de os conhecer, e como era um ' puto jeitoso' para instrumentos de corda, começaram a convidar-me para os seus discos: o Fausto, o Vitorino, o Adriano, o Zeca... Dos 20 aos 30 anos fui, praticamente, músico de estúdio, a trabalhar com gente gira, que tinha histórias incríveis para contar aos outros. Foi talvez a experiência mais enriquecedora de toda a minha vida. Na peça “Liberdade, Liberdade” já não tocava viola elétrica, passei a tocar uma viola acústica, e, depois, da viola acústica aos outros instrumentos que fui conhecendo foi um passo. Foi tudo muito calmo, aconteceu naturalmente. Essa época da minha vida, em termos de música, foi de uma riqueza inimaginável. Quer fosse o Fausto, Vitorino, Adriano, Zé Mário, Sérgio, todos tinham uma obra completa em termos de unidade, marcam uma época. Trabalhavam muito para a construção de cada uma das histórias. E pude viver toda a construção dessas histórias com eles, nomeadamente o Fausto, que foi o primeiro, logo a seguir o Vitorino, o Adriano, e depois outros. Porque, entretanto, outros músicos, artistas, cantores, cantautores, vieram-me convidar, como o Paulo de Carvalho, José Barata Moura, o José Jorge Letria,... Foi uma década de uma riqueza muito grande, de trabalho consecutivo, a saltar de cantautor para cantautor, de projeto para projeto, e depois viver todos os projetos como se estivesse mesmo dentro deles. De vez em quando dormia em casa do Vitorino, dormia em casa do Fausto, vivíamos intensamente a construção do disco que eles estavam a fazer.
O Zeca foi a maior escola que eu tive em termos musicais
Em 1976, fiz o disco “Fernandinho vais ó vinho”, que ainda é uma espécie de opereta rock, ou seja, que ainda faz parte daquele percurso em que estou a largar o rock. Era, no fundo, a história da minha vida, as experiências que tinha tido a nível profissional, social, familiar, etc. Tinha cerca de 40 personagens e cantaram 26 pessoas. Convidei o Zeca, que fez de meu pai. Até se divertiu, foi uma experiência gira. Depois, em 1978, recebo um telefonema do Zeca. Estava a trabalhar no álbum “Com as minhas tamanquinhas” e faltou-lhe um músico, um guitarrista. Convidou-me para tocar “Os Índios da Meia Praia”. Entretanto, o Zeca estava a fazer música para uma peça de teatro, “O Zé do Telhado”, na Barraca, e, uma vez vou a entrar e encontramos-nos lá. Convidou-me para trabalhar com no disco “Fura fura”. A partir daí, estive sempre, sempre com o Zeca. Todos os dias.
O Zeca, não tenho dúvidas nenhumas, foi a maior escola que eu tive em termos musicais. O Zeca não sabia música. Agora imagina: Estamos numa altura em que estamos a construir uma música e é preciso fazer arranjos, orquestração para aquela música. E o Zeca muitas vezes podia não saber qual era o instrumento, ou os instrumentos que, naquela parte, ficavam bem. Voltava-se para mim e dizia: “Ó Júlio, uma vez tive na Beira [em Moçambique] e estavam umas mulheres a dançar e tinham uns guizos nos pés e faziam assim...” e, ao fazer o gesto, mostrava claramente qual era o caminho que aquela parte devia seguir. Não só a nível do embalo, mas qual o som que ficava bem ali. Era nisto que o Zeca era surpreendente. Sendo músico de rock, passei a adolescência a ouvir as violas elétricas ligadas ao rock e adquiri, a nível da viola acústica, da viola ligada ao folk, uma maneira de tocar, que eram dedilhados provenientes dos states. Como gostava muito do Zeca, e gostava muito da sua música, ele mostrava-me uma ideia e eu ia para casa trabalhar toda a noite para ir no outro dia a correr a Azeitão mostrar-lhe o que tinha feito. Lembro-me de um dia, quando lhe estava a mostrar o que tinha feito, ele, mais uma vez, representar a dançar um beat qualquer, que não era aquele que eu tinha feito, obrigando-me a aprender outro. Para ir atrás daquela dança, daquela memória que ele tinha, obrigava-me a aprender um ritmo, novas maneiras de tocar. Vê-se através da forma como toco viola que há ali qualquer coisa diferente do modelo anglo-saxónico de tocar viola. Isto tudo por causa dele. E aqui é uma referência importantíssima na minha vida.
Independentemente de tudo o resto, porque isto é paralelo ao humor que tinha sobre a vida. Tinha comentários surpreendentes sobre tudo o que estava a acontecer. Para comentar uma coisa servia-se do humor para a crítica, em vez do lado sério. E depois também não me posso desligar do facto de o Zeca ser o meu melhor amigo. Era como se tivesse a idade do meu pai, o que acaba por ter sempre uma representação muito grande para nós, a questão das idades, mas a verdade é que ele precisava muito de estar com jovens. Era fundamental para o Zeca. Às vezes não tinha pachorra para a sua geração. Isto era fundamental para ser um criativo, na medida em que precisava de um feedback bom em relação às ideias que tinha. Era muito para a frente em relação à altura. Se ouvires temas como “Redondo Vocábulo” ou “De sal de linguagem feita”, é preciso um grau de loucura do lado de lá para querer levar avante uma história. Porque é uma história que, aparentemente, não faz sentido, não é linear, não é quadrada.
Vi, pela primeira vez, alguém criar algo sem esforço, sem voltar atrás, sem trabalho
O Zeca também foi importante para me ter desenvencilhado sobre uma questão que passava pela genialidade. Para mim o Dali era um génio. Mas, mais tarde, dei-me conta que o génio é outra coisa. Não só é genial no que faz, no que tem a ver com o seu trabalho concreto, é genial em tudo. Com os outros, com a vida. E, aí, não tenho dúvidas de que o Zeca, face a todos os homens que eu tinha conhecido na vida, tinha essa representação. Uma vez, em Vigo, ao pé de um hotel onde nos hospedámos, estávamos numa espécie de uma ponte e o Zeca diz-me: “Eh pá, se eu tivesse aqui o gravador...”. Fui ao hotel buscar o gravador. O Zeca gravou a música toda do “Achégate A Mim, Maruxa”, que tinha a letra da Rosalía de Castro. Pensei: “Isto é que é ser génio”. Recordo-me de ter falado noutra altura com o Zeca sobre a genialidade em geral e de ele estar totalmente em desacordo com essa história da genialidade. Para ele, a genialidade era o trabalho. Mas, naquele dia, deu-me um amostra de que genialidade é outra coisa. Vi, pela primeira vez, alguém criar algo sem esforço, sem voltar atrás, sem trabalho. A música saiu exatamente como a gravei. Mas acredito na tese do Zeca, as coisas nascem do nosso trabalho, e é muito raro alguém compor uma música toda sem qualquer esforço e emenda.
Contava coisas ao Zeca que não contava a mais ninguém
Contava coisas ao Zeca que não contava a mais ninguém, como o Zeca me contava a mim. Falávamos de sexo. Na altura ninguém falava de sexo abertamente. Com o Zeca não existiam tabus. Éramos amigos, ponto final. Chateámos-nos uma vez por questões pessoais e, mais uma vez, o Zeca deu-me uma 'chapada da vida' muito grande, porque me pediu desculpa. É a primeira vez que uma pessoa mais velha do que eu me pede desculpa. Adorava que lhe contasse histórias. Deixava-me tão à vontade que lhe contava toda a minha vida, sem qualquer pudor. Fartava-se de rir. E tinha sempre uma atitude de espanto. Vou dar-te dois exemplos: quando faço os arranjos do “Galinhas do Mato” utilizei um computador, um Apple, que parecia uma máquina de escrever. Consegui o primeiro interface que os japoneses inventaram para se poder ligar um teclado com software de gravação. Estamos a falar de 1982 ou 83. Isto era algo totalmente inovador. Quando mostro ao Zeca os arranjos diz-me: “Que giro, um computador ao serviço de África!”. Na altura, a reação face a esta nova tecnologia era, em geral, muito negativa, porque se dizia que o computador vinha desumanizar as relações. Já em 1984, fiz um disco chamado “Cadói” e fui a Londres buscar uma viola ultra revolucionária que tinha um aspeto de metralhadora. Os meus amigos fizeram um ar crítico e assustado. Já o Zeca achou fascinante o design da viola. São pequenos exemplos para mostrar que o Zeca precisava da juventude, precisava de coisas novas. Para ele era importante conviver com o que acontecia. Estas duas reações são incrivelmente significativas, se pensares que, à época, se estavam a dar os primeiros passos para a tecnologia.
Sente de uma maneira catastrófica a falência do 25 de Abril
A saúde do Zeca teve um peso muito grande em tudo. Entro na vida do Zeca numa fase em que ele sente de uma maneira catastrófica a falência do 25 de Abril. A tristeza dele é profundíssima. Acredito piamente que as duas coisas tão interligadas - aquilo que ele viveu e sentiu e a sua própria doença. O fator psicológico tem uma enorme importância. O Zeca viveu de uma maneira muito forte o 25 de novembro. Está expresso de uma maneira criativa num disco que, infelizmente, os media acharam que era o pior disco daquele ano: “Com as minhas tamanquinhas”, onde imita o Eanes e faz um tema a um coronel do 25 de Abril - “Como se faz um canalha”. Um disco que é talvez o mais panfletário. É curioso, passados este anos todos, imaginares que, naquela altura, o país já não ia muito à bola com o Zeca. Como é que os media conseguem considerar que é o pior disco ano quando inclui temas intemporais, como o “Alípio de Freitas”, “Teresa Torga”, “Os Índios da Meia-Praia”...? Mas não nos podemos esquecer que, a partir desta época, acontecem duas coisas em simultâneo: a degradação da sua saúde e o que o país está a viver, a nível político e social. O Zeca foi-se muito abaixo nessa altura. Sendo seu amigo, ia partilhando todo o seu quotidiano. Com o agravar da doença, a única coisa que nos preocupava, aos amigos, era mantê-lo animado.
*Julio Pereira - Músico: Compositor, Multi-instrumentista e Produtor.
Testemunho gravado pelo Esquerda.net a 21 de fevereiro de 2017.