Do abandono do mundo rural aos incêndios florestais como oportunidade de concentração fundiário-florestal

Por Carlos Matias, que estará no Fórum Socialismo 2018, a realizar-se no primeiro fim de semana de setembro na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria.

28 de August 2018 - 11:18
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O Fórum Socialismo 2018 realiza-se no primeiro fim de semana de setembro na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais de Leiria.

1. Introdução: o problema

Desde 1975 temos assistido a perdas anuais de centenas de milhares de hectares de floresta e inclusive, não raro, a dramas sociais. A expansão incontrolada do fogo tem devastado largas áreas florestais e rurais, por vezes rondado circunscrições urbanas e provocado vultuosos prejuízos patrimoniais. Mas o mais trágico são as perdas de vidas humanas. Os fogos de 2017 foram sem dúvida os mais devastadores não só em destruição de bens e empresas com mais de 450.000 hectares ardidos como sobretudo de mais de cem vítimas humanas dizimadas pelo fogo, nomeadamente no Centro e no Norte do país.  A que se deve este flagelo anual dos incêndios?

Às causas naturais (os condicionalismos edafo-climáticos) e comportamentais, como desleixos em queimadas, fogueiras, foguetes, cigarros, ateamentos criminosos ou patológicos. Cabe ainda referir as falhas de entidades (para)estatais, nomeadamente o SIRESP como uma central de negócios sob a figura de parceria público-privada, o abandono do mundo rural pelos diversos poderes nacionais e europeus e a ausência/omissão de políticas de ordenamento do território. Então, perante esta recorrente calamidade nacional, que fazer? Assumir a situação como uma fatalidade da natureza ou como algo socialmente incontornável ou politicamente sem solução? Como se explica esta situação e o que poderá ser feito para revertê-la?  

 

2. Enquadramento teórico básico

Várias foram as teses e estudos sobre comunidades rurais realizadas em Portugal nos últimos 35 anos, os quais identificam os problemas das populações rurais, a especificidade das suas economias e dos seus modos de vida. A relação entre economia camponesa e capitalismo comporta todavia uma velha questão, já iniciada no século XIX e prosseguida no século XX até hoje. Com efeito, se para os liberais, obcecados pela racionalidade única da economia de mercado e pelas suas ‘virtudes’ modernizadoras, os camponeses eram um estorvo na marcha da industrialização e da modernização, para Marx (1974) os camponeses, para além de um ‘hieróglifo indecifrável’ e um atomístico ‘saco de batatas’, constituíam uma classe em desagregação e a ser sacrificada em processo de proletarização no altar da industrialização, tese esta posteriormente sustentada por diversos autores marxistas a começar por Lenine (1977). Perante estas insuficiências teóricas na compreensão e explicação do comportamento camponês, vários autores portugueses como Villaverde Cabral (1981, 1986), Madureira Pinto (1985), Ferreira de Almeida (1986), José Portela (1986), Oliveira Baptista (1986), José Sobral (1999) e sobretudo Manuel Carlos Silva (1987, 1998), este na esteira de vários especialistas clássicos sobre o campesinato como Chayanov (1976), Wolf (1966), Shanin (1972), Guzmán (1979) e Scott (1976), sustentam a tese da economia moral mas reincorporam alguns elementos do pensamento maduro de Marx – que na parte final da sua vida em diálogo com a populista russa Vera Zassoulitch reconheceu virtualidades das comunidades camponesas – e sobretudo, de Max Weber (1978). Ou seja, o principal leitmotiv dos atores rurais, nomeadamente camponeses, perante situações de risco, é o de assumirem como princípio básico o da segurança (safety first), de resto uma tese aplicável não só aos camponeses mas a outras classes sociais, nomeadamente quando não organizadas e em tempo de política de austeridade.

 

3. A dimensão rural do país real

O diagnóstico das mudanças de uma sociedade agrária para uma sociedade urbana a partir dos anos 70 é conhecido. Os estudos sobre o desenvolvimento, o aproveitamento e a sustentabilidade (ou não) dos territórios rurais têm sido, por um lado, objeto específico de análise pelas várias ciências, sobretudo das sociais e, por outro, objeto de preocupação na esfera política não só por parte dos Estados nacionais mas também de algumas agências para o desenvolvimento por parte da ONU e de outras instâncias internacionais (UE, BM e FMI) alegadamente para diminuir a pobreza, aceder aos serviços públicos. Porém, contrariamente a proclamações, projetos e boas intenções, o que se verifica é o falhanço do modelo neoliberal e/ou a inoperância de certos modelos ditos institucionais em torno da modernização da agricultura que, através da aplicação de tecnologias (química e mecânica), alegavam promover a modernização do sector, o crescimento e o desenvolvimento do país. Certamente houve mudanças e processos de mecanização e modernização mas, nestas mudanças induzidas e conduzidas desde fora e sobretudo a partir dos interesses dos países centrais expressos na Política Agrícola Comum, os próprios agricultores do sul nomeadamente em Portugal foram perdendo não só a sua relativa autonomia com base na sua tradicional economia, como  o controlo dos processos de produção ou então viram-se obrigados a abandonar a agricultura, porque incapaz de lhes fornecer os meios de subsistência, migrando, na sua maior parte, para os grandes centros urbanos do país ou do estrangeiro. As velhas atividades e funções da floresta (roça de mato, fertilização orgânica das culturas, o corte de lenhas para aquecimento e consumo doméstico, o pastoreio) diminuíram, desapareceram e foram substituídas por equivalentes funcionais como os fertilizantes químicos, máquinas, consumo de gás e electricidade.

Não obstante o processo de crescente abandono das parcelas florestais sobretudo desde os anos 80/90 do século passado por fatores endógenos e exógenos, persiste ainda uma racionalidade camponesa com forte ligação à terra, suas tradições, valores e memórias. Porém, o êxodo rural, assim como os desequilíbrios entre litoral e interior estão justamente relacionados com a concentração de capital em certos espaços, nomeadamente urbanos e do litoral, mas também com o abandono e a ausência de políticas nacionais para os territórios do interior, o consequente envelhecimento da população nos territórios rurais e o desmantelamento de serviços públicos para as comunidades rurais.

Há, contudo, que sublinhar os fatores externos que foram decisivos para o abandono e a desvalorização da pequena agricultura, nomeadamente a aplicação da PAC (Política Agrícola Comum) e sua orientação para as grandes explorações rentistas e/ou orientadas para o mercado. Acresce a adoção de políticas públicas nacionais na produção de monoculturas, com vista ao lucro rápido por parte das indústrias de celulose, desde os anos 80. A liberalização da plantação de eucaliptos, por parte do anterior governo PSD/CDS-PP, a chamada “Lei Cristas” foi o culminar desse processo. Tal vem contribuindo, e muito, para a situação de desordenamento e abandono que hoje em dia se encontram os territórios rurais.

Perante esta situação, o PS e o BE, embora com pressupostos e objetivos diferentes, apresentaram propostas para superá-la. A proposta do PS em torno das Entidades de Gestão Florestal (EGF), ao induzir que os pequenos proprietários delas integrantes percam o direito de influenciar diretamente a gestão do espaço florestal, facilitam tendencialmente a concentração da propriedade, mas não necessariamente a continuidade geográfica. Por seu turno, a projeto do BE em torno da Unidades de Gestão Florestal (UGF), exigindo continuidade territorial, agregam a gestão da propriedade, sem que os proprietários percam o direito de participar nas decisões sobre o espaço florestal conjunto que integram. Não obstante as diferenças entre as duas propostas, as negociações ocorridas no âmbito parlamentar permitiram a sua aprovação, beneficiando ambas as figuras jurídicas de apoios para a sua constituição.

4. Algumas conclusões e recomendações

O flagelo nacional dos incêndios rurais não é certamente uma fatalidade nem um destino nacional. Num primeiro momento, o que parece evidente é que manter a situação de desorganização só favorece quem dela retira lucros e rendas (grandes proprietários, empresas de celulose e alguns madeireiros sem escrúpulos). Por outro lado, pretender nacionalizar a propriedade rural, nomeadamente a florestal, pode seduzir mentes coletivistas de horizontes mais urbanos, mas esbarra com a realidade do país rural minifundiário no Norte, no Centro e no Algarve. Perante a ausência de políticas nacionais para a pequena agricultura familiar – que, perante inexistência de apoios reais da política nacional e da PAC, se vê obrigada também a recorrer à produção de espécies mais rentáveis de curto prazo – a estrutura minifundiária, com média de 2000 m2 por parcela e dispersas, com vários herdeiros, bastantes emigrados ou em eventual litígio de partilhas, não se desfaz por decreto. Para estas pessoas e famílias a terra, além de eventual fonte de subsistência, é o eixo de ligação à aldeia e suas memórias.

A propósito da floresta, os defensores da situação atual, sem propostas de lei e sem vontade política, dirão hoje que a atual legislação é suficiente ou não se pode legislar à pressa e sem qualidade. Porém, o que ninguém pode ignorar é que, sob razão ou pretexto de terras abandonadas para as quais importa procurar uma solução, há todavia estratégias por parte de determinados grupos económicos ligados aos negócios dos eucaliptos e das celuloses que pretendem aumentar o eucaliptal e concentrar para o efeito a propriedade através da compra a saldo de terras abandonadas, de resto já incentivados pela legislação saída do governo PSD/CDS. As posições de inércia ou omissão – que também é uma forma de política favorável ao statu quo – por parte das entidades responsáveis vão ao encontro de certos grupos económicos, acabando por manter o desordenamento territorial, enquanto pasto explosivo para novas catástrofes de incêndios rurais.

Vários estudos sobre as comunidades rurais concluem serem necessárias políticas públicas firmes para intervir nos territórios rurais. Políticas indicativas mas eficientes, em que seja possível a participação dos produtores e se incentive a criação de unidades de gestão (associativas ou cooperativas) e eventual emparcelamento e/ou intervenção em escala com recurso a financiamento público (fundos nacionais e europeus). No que concerne a floresta, a alternativa realista que se impõe consistirá, portanto, em enveredar por uma via de intervenção estatal em conjugação com entidades associativas, societárias ou cooperativas de produtores através de uma das figuras jurídicas existentes, desde que essa intervenção seja aprovada pelos próprios proprietários sob o princípio de um voto por proprietário e com redistribuição de custos e ganhos conforme as parcelas possuídas. Donde, impõe-se:  

(i) Definir um registo dos proprietários, um programa de ordenamento, aproveitamento, tratamento e gestão coletiva e equilibrada da floresta, em termos de protagonistas (Estado, autarquias, associações/cooperativas e proprietários em UGF’s);

(ii) Ter em conta a biodiversidade de espécies a reflorestar, com prioridade às autóctones, na base duma planificação estatal-municipal negociada com os pequenos produtores/proprietários;

(iii) Promover e valorizar os múltiplos recursos da floresta e remunerar os serviços ambientais prestados, designadamente o seu contributo para a redução dos GEE e para o comprimento dos Acordos de Paris, sobre o Ambiente;

(iv) Implementar medidas de prevenção estrutural e contenção de fogos (aceiros, corredores ecológicos, estradões florestais, faixas corta-fogos), compensando justamente os pequenos proprietários afetados;

(v) Apresentar e promover uma abordagem e política integrada a médio-longo prazo que corrija a dualidade entre litoral e interior, diminua a desigualdade estrutural do país, que   preserve o ambiente, a natureza e os ecossistemas florestais, que valorize as energias renováveis e as economias locais, nomeadamente a agrícola e florestal, o artesanato e o turismo, estimulando o regresso e repovoamento dos territórios rurais.

(vi)  Reforçar o apoio técnico de proximidade aos agricultores e produtores florestais, transferindo para o terreno os resultados da investigação e do saber científicos.

 

 

Manuel Carlos Silva ( [email protected] )

António Cardoso ( [email protected] )

Carlos Matias ( [email protected])

 

Bibliografia

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