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“Two Pack”: O visto prévio e a austeridade permanente

As novas regras para reforçar a supervisão dos orçamentos nacionais, também conhecidas por "Two Pack", preveem que os Estados-Membros tenham de sujeitar os seus planos orçamentais, planos nacionais de emissão de dívida, e programas de investimento à aprovação da Comissão Europeia.
Foto de Georges Boulougouris/Lusa

Nos últimos anos, têm vindo a ser aprovadas inúmeras medidas que reforçam o poder da Comissão Europeia no que respeita à sua ingerência nas políticas económicas dos Estados-Membros.

O “Two Pack”, cujo objetivo final passa por uma união fiscal integral e uma política económica comum na qual a Comissão Europeia e o Conselho Europeu têm o poder de vetar os orçamentos nacionais e impor reformas neoliberais, vem completar o ciclo legislativo austeritário.

A supervisão reforçada das políticas económicas dos países em dificuldade na Zona Euro e, inclusive, a sujeição dos orçamentos nacionais ao visto prévio da Comissão Europeia, abrem caminho à austeridade permanente.

O que é o “Two Pack”?

Em novembro de 2011, a Comissão Europeia (CE) apresentou, com base no Artigo 136[i] do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), duas propostas de regulamentos com o objetivo de reforçar o processo de supervisão orçamental na Zona Euro.

Estes dois regulamentos, conhecidos como “Two Pack”, que vieram a ser adotados pelo Parlamento Europeu (PE) e Conselho Europeu (CE)[ii], visam:

- Reforçar a supervisão económica e orçamental dos Estados-Membros afetados ou ameaçados por graves dificuldades no que diz respeito à sua estabilidade financeira na área do Euro (Regulamento UE nº 472/2013 do PE e do CE, de 21 de maio de 2013[iii]);

- Estabelecer disposições comuns para o acompanhamento e a avaliação dos projetos de planos orçamentais e para a correção do défice excessivo dos Estados-Membros da área do euro (Regulamento UE nº 473/2013 do PE e do CE, de 21 de maio de 2013[iv]).

O “Two Pack” é um dos elementos base do sistema de governação económica[v] da União Europeia (UE), a par do Semestre Europeu para a Coordenação da Política Económica[vi], da legislação “Six Pack”[vii] e do Tratado Orçamental.

Estes elementos vieram reforçar o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), e introduziram um sistema de vigilância macro económica a nível da UE.

O “Two Pack” não necessitou de ser transposto para as legislações nacionais, tendo entrado em vigor em 30 de maio de 2013. A sua aplicação é um primeiro passo no sentido da adoção de novas medidas para o reforço da União Económica e Monetária (UEM), tal como previsto pela CE no seu "Projeto para uma UEM profunda e genuína", publicado em novembro de 2012, e tão acarinhado por Olli Rehn e Durão Barroso.

Reforço da supervisão económica e orçamental dos Estados-Membros

O Regulamento UE nº 472/2013 transfere imensos poderes para a CE, estabelecendo disposições para reforçar a supervisão económica e orçamental dos Estados-Membros cuja moeda seja o euro e que “se encontrem afetados ou ameaçados por graves dificuldades no que diz respeito à sua estabilidade financeira ou à sustentabilidade das suas finanças públicas” ou “solicitem ou recebam assistência financeira”.

Os Estados-Membros sob “supervisão reforçada” devem fornecer regularmente informações à CE sobre as medidas que tomaram para eliminar as causas, ou potenciais causas, das suas dificuldades. Caso a Comissão conclua que são necessárias novas medidas, pode propor ao Conselho recomendar ao Estado-Membro em causa a adoção de medidas preventivas corretivas, ou a implementação de um programa de ajustamento macroeconómico.

Este regulamento introduz ainda um novo sistema de vigilância pós-programa de assistência financeira. Até que tenham pago um mínimo de 75% da ajuda recebida, os Estados-Membros permanecerão sujeitos a vigilância reforçada.

O “visto prévio”

Já o Regulamento UE nº 473/2013 estabelece disposições para “melhorar o acompanhamento das políticas orçamentais na área do euro e para assegurar que os orçamentos nacionais sejam coerentes com as orientações de política económica emitidas no contexto do PEC e do Semestre Europeu”.

No documento, é previsto que “os Estados-Membros cuja moeda é o euro deverão consultar a Comissão e os restantes Estados-Membros antes de aprovarem planos de significativa alteração da sua política orçamental”.

Os orçamentos anuais dos Estados-Membros da Zona Euro passam também a ser sujeitos ao visto prévio da Comissão antes de se tornarem vinculativos. A CE analisa e emite um parecer sobre cada orçamento até 30 de novembro. Os Estados-Membros são então persuadidos a acatar as “recomendações” da CE, sendo que a “falta de seguimento dado às orientações” da Comissão será considerado como um “fator agravante” na hora de declarar a existência de um défice excessivo.

Caso “identifique qualquer incumprimento particularmente grave das obrigações de política orçamental estabelecidas no PEC”, a Comissão deve ainda “dar parecer no prazo de duas semanas a contar da apresentação do projeto de plano orçamental”, requerendo um projeto de plano orçamental revisto.

Os Estados-Membros devem informar antecipadamente o Eurogrupo e a Comissão dos seus planos de dívida pública.

A imposição de um calendário orçamental comum

No documento é previsto ainda um “calendário orçamental comum” para os Estados-Membros da Zona Euro:

- De preferência até 15 de abril e no máximo até 30 de abril de cada ano, os Estados-Membros devem tornar públicos os seus planos orçamentais nacionais de médio prazo de acordo com os seus quadros orçamentais de médio prazo;
- Até 15 de outubro, deve ser publicado o projeto de orçamento da administração central para o exercício seguinte e os principais parâmetros dos projetos de orçamento para todos os outros subsetores das administrações públicas;
- Até 31 de dezembro, deve ser aprovado ou fixado e tornado público o orçamento da administração central, juntamente com os principais parâmetros orçamentais atualizados dos outros subsetores das administrações públicas.

É estipulado que os Estados-Membros devem dispor de organismos independentes para fiscalizar o cumprimento das regras orçamentais.

Procedimento relativo a défices excessivos

O Regulamento UE nº 473/2013 inclui também um capítulo sobre a correção das situações de défice excessivo, prevendo que, “caso o Conselho decida que existe um défice excessivo num Estado-Membro”, este será alvo de uma fiscalização mais rigorosa, devendo apresentar à CE e ao Conselho “um programa de parceria económica descrevendo as medidas de política económica e as reformas estruturais necessárias para garantir uma correção eficaz e duradoura do défice excessivo”.

Caso a Comissão detete algum risco na correção da situação, poderá dirigir diretamente uma recomendação ao Estado-Membro, deixando claro que este deve fazer tudo o que for necessário para evitar entrar em incumprimento e, assim, escapar das respetivas sanções financeiras.

 

[i] Este artigo prevê que os Estados-Membros da Zona Euro adotem medidas no sentido de aprofundar a coordenação e a vigilância das políticas orçamentais para assegurar a disciplina orçamental na União Económica e Monetária.

[ii] A estrutura abrangente das regras inicialmente propostas, que dão à Comissão Europeia mais poderes para fiscalizar a política orçamental de um país, foi preservada.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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