Rui de Melo Pato nasceu em Coimbra a 5 de junho de 1946. Tinha apenas 16 anos quando começou a acompanhar à viola Zeca Afonso. Foi responsável pelos arranjos e acompanhamentos em mais de 60 temas e em algumas dezenas de espetáculos.
Como conheceu o Zeca Afonso?
Eu conheci o Zeca Afonso através do meu pai, em 1962. O meu pai frequentava a Brasileira, em Coimbra, era jornalista do “O Primeiro de Janeiro”, e o Zeca frequentava a Brasileira porque era onde se reuniam todos os intelectuais, os pintores, os poetas, os escritores, os jornalistas, onde tinham lugar as tertúlias de esquerda. Ia tudo para a Brasileira e, portanto, o Zeca também frequentava o espaço.
Por vezes, o meu pai levava-me com ele para a Brasileira, até para receber explicações de inglês e de matemática de alguns dos seus amigos e eu acabei por conhecer o Zeca pessoalmente lá. Isto independentemente da altura em que comecei a acompanhá-lo.
Que facetas da sua personalidade destaca?
A faceta que eu mais destaco do início do meu contacto com ele é o bom humor. É aquilo a que se chama um indivíduo com uma ironia fina, brincava com tudo, caricaturava tudo, era um indivíduo extremamente bem disposto, embora nessa altura até estivesse a passar por um período difícil, porque era um período de divórcio, de desemprego e de grande carência financeira. Mas encarava tudo de uma maneira muito positiva, era um indivíduo muito alegre. E destaco também a enorme cultura. Carregava sempre dois ou três livros que andava a ler num saco de plástico e passava as tardes nas livrarias a ver o que é que havia de novo. Portanto, muita cultura e muito bom humor. E muita amizade, tinha muitos amigos aqui em Coimbra, felizmente alguns ainda vivos.
Quem não conheceu Zeca Afonso por vezes pode pensar que ele era muito sério...
Com o passar dos anos, com as preocupações que teve, com a sua carência financeira e com a sua falta de emprego, e também com a repressão e a dificuldade que íamos tendo em conseguir fazer espetáculos, em conseguir gravar discos, toda aquela pressão foi tornando o Zeca numa pessoa um pouco mais amarga. Principalmente depois da vinda de Moçambique, em 67, estava mais amargo, com reticências em cantar. Já tinha quatro filhos, estava sem dinheiro e sem possibilidades de fazer espetáculos porque, muitas vezes, a PIDE não deixava. Mas a faceta do seu bom humor de vez em quando saltava cá para cima, mesmo nessas alturas. Eu toquei com ele entre 1962 e 1968 e fui vendo que nunca perdeu certas características. Além da sua bizarria, da sua distração, que era conhecida. Era capaz de se esquecer de uma meia e trazer só uma. Era capaz das coisas mais bizarras possíveis. Esquecia-se do dinheiro. Já casado com a Zélia, quase nunca andava com dinheiro, era a Zélia que tratava de tudo porque ele não tratava de nada. Tinha assim estas características engraçadas e, quem não o conhecia bem, às vezes achava-o um bocado “maluco”.
Mencionou a fase em que o Zeca regressou de Moçambique. Esse terá sido um dos períodos mais difíceis da sua vida?
A partir do momento em que começa a ser expulso ou não admitido no ensino e sem meio de subsistência, o que o obriga a tomar uma decisão, que também não foi solução, que foi ir para Moçambique, tentando melhorar a sua situação financeira, até porque tinha lá familiares que o podiam ajudar. Foi um refugiado. É evidente que ainda teve os seus sobressaltos políticos, chegou a passar uns dias na PIDE, mas creio que a fase mais complicada é aquela em que ele tem de sair de Portugal. Mas claro que isto é uma observação muito subjetiva, outra pessoa poderá pensar que há outro período, e se ele cá estivesse poderia dizer qual foi o período mais difícil para si...
Pode falar um pouco sobre a repressão de eram alvo, a dificuldade em fazer espetáculos e a forma como iam contornando essa mesma repressão?
As dificuldades eram sempre sentidas, tinham é que ser torneadas. Sempre que se planeava um espetáculo e havia censura prévia, ou a própria comissão que organizava o espetáculo tinha medo da PIDE ou da repressão, era preciso escolher os temas, que tinham que parecer “inofensivos”. Tínhamos que dizer que íamos cantar isto ou aquilo e depois fazer um encore com uma ou outra música mais complicada. E, às vezes, havia mesmo repressão. As próprias empresas discográficas também punham muitas reservas que gravássemos determinadas músicas. Muitas vezes, existia censura por parte da empresa que editava os discos. As empresas tinham medo de editar os discos e eles serem aprendidos e não poderem vendê-los. Era sempre muito complicado.
E as vossas músicas foram imediatamente bem recebidas, e compreendidas, pelo público em geral e pelos outros músicos?
É como a coca-cola. Primeiro estranha-se e depois entranha-se. No início aquilo era muito bizarro, muito estranho e nem todos aderiram. Acabaram por ser aqueles meios intelectuais e de esquerda, aqueles meios artísticos, que conseguiram compreender melhor a música e as letras dele e aderiram imediatamente. Nos anos 60, ele era um cantor desconhecido e bizarro. Ele começa a ser mais conhecido a partir do momento em que a música começa a ser mais comprometida, com “Os vampiros”, o “Menino do Bairro Negro”, entre outros. E a partir daí começamos a ser mais requisitados pelas coletividades operárias, as associações estudantis, e por esses meios de esquerda. E é aí que nasce o prestígio dele. Mas isto após uma travessia no deserto aí de uns três anos em que ele cantava umas coisas esquisitas a que não muita gente dava grande valor.
Creio que posso dizer que Zeca Afonso foi seu companheiro de música e de estrada. Quais foram as experiências que mais o marcaram no convívio com o Zeca?
As experiências que mais me marcaram no convívio com ele acabaram por ser na fase da criação das coisas, das nossas músicas. Com ele fiz mais de 50 melodias, mais de 50 trechos. As primeiras gravações foram todas comigo e foi numa fase em que não tínhamos mais ninguém a não ser nós os dois. Ele aparecia com uma melodia muitas vezes só assobiada ou, às vezes, com um pouco mais do que a letra e uns tons ligeiros, e depois eu é que tinha de arranjar aquilo tudo, os acompanhamentos. Dava-me azo a ser criativo, o que era muito bom para mim, que naquela altura era um jovem e gostava de experimentar coisas novas na guitarra. Ele dava-me essa possibilidade. Aqueles momentos de ensaio, tanto a sós como também ensaios quase coletivos, com amigos, eram grandes momentos de convívio onde aprendi muito sobre o ponto de vista cultural e social.
Esses ensaios eram fervilhantes em ideias revolucionárias e ativismo político?
Também. Acabavam sempre por ter essa componente. Era tudo gente de esquerda.
Qual É maior herança que o Zeca deixou?
A maior herança que ele deixou foi o seu pensamento, quanto a mim. Para além das músicas e dos poemas, ele deixou, digamos, uma herança que é quase um mito, daquilo que é um homem comprometido e que faz da sua arte uma luta.
O que é que o Zeca representa, atualmente, na música e na sociedade portuguesa?
Na sociedade portuguesa, através, inclusive, dos seus companheiros que formaram a Associação José Afonso, ele acaba por ser um representante, um símbolo da liberdade e da luta pela liberdade. Sobre o ponto de vista musical, ele é que atirou a pedrada ao charco. Há música portuguesa antes do Zeca Afonso e depois do Zeca Afonso.
Testemunho gravado pelo Esquerda.net via telemóvel a 13 de fevereiro de 2017.