Zeca Afonso: Instantes de vida

Com o Zeca, companheiro-intérprete de uma geração, aprendíamos as canções pilares de resistência, de esperança. Nas palavras certas para dizer revoltas e sonhos cabiam revolucionários, pacifistas… e todos os homens de boa vontade. Por Maria Antonieta Garcia.

22 de fevereiro 2017 - 15:49
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Compositor genial foi o criador do hino da revolução de abril, fez-se a voz da utopia. E se há dias em que os astros se conjugam para encantarem o mundo, em 25 de abril o país converteu-se em arquiteto da liberdade, igualdade e fraternidade. Ouviu-se a Grândola em todos os tons e até as armas ostentaram cravos pregoeiros de que era possível emocionar mulheres e homens do meu país.

Conheci o Zeca Afonso, em Setúbal. Quem bem se entende, sempre se encontra e os opositores ao Estado Novo sabiam os trilhos que abriam portas ao convívio e à amizade.

Lecionávamos na mesma escola. Comentávamos aulas, alunos, educação, o país, o mundo…

Em nossas casas, na praia, nos cafés, no Círculo Cultural de Setúbal, no Moinho do monte do Cabrito, na Serra da Arrábida, vivíamos momentos pontuados por cumplicidades, ironias, impaciências… rendidos à sedução de uma utopia de essência ética. Assim, apurávamos a militância e cantávamos. Solto o sonho do pão, da paz lutávamos por construir um país de “amigos maiores que o pensamento”.

Do outro lado, “senhores à força, mandadores sem lei” contrariavam anseios, como podiam (e podiam muito!), proibindo, perseguindo, prendendo… O medo peregrinava no país. Agentes da PIDE esquadrinhavam vidas, traçando o momento adequado para enterrar no pânico os frouxos, deter os mais audazes e dissuadir muitos de intervir na res publica. Respondíamos mantendo e reforçando a amizade, arriscando apoios, repetindo poemas / canções em busca de mais coragem, de energia, de arrojo.

À beira da prisão de Caxias, onde eu ia visitar o António, propunha-lhe:

- Não vá! É mais uma acusação!

Ia, esperava até ao fim da visita, era visto.

- O que posso fazer? – Perguntava.

Pertencíamos a uma geração portadora de um projeto que cultivava a paixão de modelar o mundo, caldeando, o “corrido com o lido”, sofrendo com notícias de soldadinhos que não voltavam, com meninas de olhos tristes, com exílios, prisões, fomes… dores que se desprendiam, inquietando, alvoroçando quem ouvia…

O Zeca era o criador que nos inventara “filhos da madrugada”, o trovador de baladas, e o vate de Maria Faia, Janeiras, Entrudo chocalheiro, O meu menino é de oiro, Senhor Poeta… de cantares líricos intemporais. Explicava:

- Os Vampiros e outras… são datadas!

Na Beira, estas trovas reanimavam, faziam erguer a taça fraternal! E, depois de abril, o Zeca veio, andou, partilhou alegria, amizades, inquietudes. Em Belmonte, nem faltaram memórias de ventura:

- Oh Senhor Dr … O Zeca desaprovava o tratamento, sorria a senhora.

Os abraços sucediam-se; para pessoas mais idosas, era ainda o menino, para outros o registo era diferente: Lembras-te…?

Um companheiro de escola até desafiou: E quando me atiraste com uma pedra…?

- O pá, desculpa lá! - Respondeu desajeitado o Zeca.

Entretanto, confidenciava que o seu primeiro amor, na infância, fora uma judia belmontense, a quem nunca confessara a paixão…

Bom, sensível, amigo, quando lhe elogiavam a voz, a interpretação, os poemas, desassossegava:.. Com um sorriso breve, calava ou desmerecia, mesmo com os amigos:

- Olhe aqui os versos de um amor serôdio!

Li: “Fragância morena / Portal de marfim / Ondina açucena / Chamando por mim // (…) Mal rompe a manhã / Na luz e nas trevas / Foi-se a louçã // (…) Na aurora lunar / Num jardim suspenso / Do seu folgar //”.

Espectador do mundo e de si mesmo, o canto chão da Beira fascinava-o; uma réstia de sol, um grupo de amigos, a montanha, a simplicidade franciscana, a cultura animi, abria visões de um futuro a haver.

Tinha com o mundo material, vulgar e “sebentarizado”, uma relação distante:

- O Zeca tem os discos de platina e de ouro atrás da porta! Ninguém os vê! – Surpreenderam-se os meus filhos, ainda pequenos, quando o visitámos, já doente…

A vaidade, o dinheiro eram notas marginais da vida; não comprava nada, mesmo para si. Não sabia! E todavia, entusiasmou-o a aquisição de uma casa, em Monsanto. Foi antes de 1974. Queria-a para abrigar clandestinos, gente que fugia à prisão política, à guerra colonial… Quem os descobriria em Monsanto? E se houvesse qualquer suspeita…pertinho de Espanha depressa se poriam a salvo…

- Esta é a casa do Senhor Dr. José Afonso… Informam monsantinos orgulhosos.

Em abril, vamos celebrar de novo o criador do hino: “Terra da Fraternidade/ Em cada esquina, um amigo/ Em cada rosto igualdade”.

O Zeca conjura todos para a construção de um país de bem-querer. Com a fraternidade de luz e de lucidez disse-nos, na última visita:

- Já não volto à Beira!

(“Rios que vão dar ao mar / Deixem meus olhos secar / Águas / Das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto / A cantar”.)

Estremeceu-nos este anúncio do humanista em demanda da Manhã clara… Que é do Verbo solidário que o Zeca sabia conjugar em todos os modos e tempos?

Em Portugal, há meninos com fome, velhos sós, aldeias despovoadas. A pobreza criou metástases inclusive em classes sociais que se julgavam ao abrigo de tamanhas angústias.

Olá Zeca, principezinho exuperyano, de caracóis revoltos! Recorde-nos as papoilas, os cravos revolucionários, idealistas, únicos no mundo… Será que ainda sabemos cantar?


*Maria Antonieta Garcia nasceu em 1945 no Fundão. Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Professora Associada na Universidade da Beira Interior (aposentada) tem desenvolvido as suas investigações no âmbito do Judaísmo e das Identidades.

Testemunho enviado ao Esquerda.net a 20 de fevereiro de 2017.

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