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Violência banal na Argélia colonial

Trata-se, com esta história de internamento na Argélia durante o período colonial, de deslocar o olhar centrado na história política da França para a da colonização. Por Sylvie Thénault.
Capa do livro de Sylvie Thénault, Violence ordinaire dans l’Algérie coloniale. Camps, internements, assignations à résidence

Em 1888, a Administração Prisional francesa elaborou um mapa dos estabelecimentos sob a sua gestão. A Argélia aparece na imagem, da mesma forma que a Córsega - uma raridade, segundo especialistas em cartografiai. Essa representação não é menos simbólica da “assimilação” da Argélia à França, palavra de ordem da política republicana no que diz respeito à sua colonização no Magrebe. A organização do sistema prisional na Argélia era semelhante à da França continental e da Córsega: incluía uma casa central para homens (Lambèse), uma para mulheres (Le Lazaret), uma penitenciária agrícola (Berrouaghia), um “estabelecimento de educação prisional” para os jovens (M'Zéra) e um depósito para condenados servindo também como depósito para os deportados no exterior (El Harrach). Todos os habitantes da Argélia, qualquer que fosse o seu estatuto, os "nativos", bem como os cidadãos franceses e estrangeiros, estavam sujeitos a serem detidos ali. Estas prisões resultaram da aplicação, na Argélia, das disposições repressivas em vigor no território francês, sobretudo as do código penal. Nada fora do comum.

Uma história de abominação colonial?

Este mapa que assimila os departamentos argelinos ao restante da França penitenciária é omisso quanto aos locais de confinamento específicos da situação colonial. O Governador Geral tinha o poder de internamento, sem a intervenção da justiça. Essa internação administrativa assumiu três formas concretas: detenção em penitenciária “nativa”, sob administração militar; envio para o “depósito para internos árabes” localizado em Calvi, Córsega; “vigilância especial” numa localidade, ou seja, prisão domiciliarii. O internamento era uma das medidas que compunham o regime penal do indigenato, este sistema de punições reservado apenas aos súbditos coloniais. Além do internamento, incluía multas coletivas, sequestro de bens, bem como multas e penas de prisão impostas sem qualquer forma de investigação, defesa ou julgamento. Estas multas e dias de prisão foram aplicados por agentes da administração, para reprimir uma infração registada em lista especial, elaborada para o efeito.

A denúncia desse “monstro legal”iii, hediondo de discriminação e arbitrariedade, não esperou o desenvolvimento de movimentos de protesto nas colónias ou do anticolonialismo metropolitano no século XX. A metáfora da monstruosidade surgiu na década de 1890, no contexto dos debates sobre a aborígeneidade argelinaiv. A República já foi denunciada pelas suas versões ultramarinas, onde foi apanhada em flagrante a contrariar os seus princípios; mais especificamente, as da sua lei repressiva, que deve dar garantias aos suspeitos, réus e acusados.

Com o indigenato, a violência colonial foi consagrada na lei. Legitimada, foi banalizada. Deste ângulo, é menos espetacular do que a violência militar que assume as piores formas. Por outro lado, não se limita aos dois momentos extremos da imposição e depois da desintegração do vínculo colonial: durante a guerra da conquista e a da independência. Nem surge em momentos pontuais, na repressão de levantes. Permeia o longo período dos anos 1830-1962. A diferença de estatuto entre aqueles que beneficiavam da proteção das suas liberdades individuais, por um lado, e os “nativos” sujeitos à arbitrariedade, por outro, delineava assim uma fronteira na sociedade colonialv. Visto por argelinos pertencentes aos nativos, este longo tempo que ultrapassou o século não conheceu uma idade de ouro pacificada. Pois se todas as medidas discriminatórias perderam intensidade no período entre guerras antes de serem totalmente abolidas em 1944, a repressão retomaria formas arbitrárias dez anos depois, durante a guerra da independência.

É o que conta esta história de internamento. Para fazer o quê? Exumar a abominação colonial? Se as práticas repressivas coloniais provocam a perplexidade de quem nelas mergulha, o tom das páginas seguintes não é esse. O objetivo vai além disso. Uma história de internamento parece necessária, enquanto o renovado interesse pela colonização resultou apenas numa redescoberta muito superficial dessa prática, através dos escritos de juristas - especialistas em direito colonial sempre a conheceram. Esta história, sobretudo, ganha todo o seu sentido num momento em que o facto colonial se faz tão presente. A análise dos “campos de estrangeirosvi” no século XX procura assim fazer a ligação entre o tratamento dos súbditos coloniais e o dos imigrantes de várias nações. A condição de “nativos” também emerge das controvérsias sobre a natureza da discriminação contemporânea: discute-se a sua dimensão social, em detrimento da sua dimensão racial, que teria sido subestimadavii De modo mais geral, o facto colonial ressurge a partir da perceção da sociedade francesa como uma sociedade pós-colonial, carregando os estigmas desse passado, tanto nas representações veiculadas quanto nas práticas dos agentes do Estadoviii. Nesse contexto, o internamento colonial tem sido erigido como uma fonte de práticas atuaisix. A respeito? Esta pergunta é a fonte deste livro [Violence ordinaire dans l’Algérie coloniale. Camps, internements, assignations à résidence.].

Entre a lógica da exceção e a genealogia colonial

Os historiadores começaram a interessar-se pelas práticas de internamento metropolitana durante as guerras do século XX. A Primeira Guerra Mundial, de facto, viu o internamento em massa de estrangeiros de potências inimigas, em campos abertos em solo metropolitanox. Depois, aquando da Segunda Guerra Mundial, o internamento num campo transcendia o regime de Vichy. O internamento tinha começado antes de 1940, sob a Terceira República, que tinha montado campos para refugiados da guerra espanhola. A prática também se prolongou depois de 1944, nas circunstâncias - e nos excessos - da expurgação de colaboradoresxi. Após esta longa sequência, a guerra da independência da Argélia abriu um terceiro capítulo. Os militantes e combatentes da luta argelina também foram internados, tanto na França continental quanto na Argélia em guerraxii. Nesta área, como em outras, a guerra de independência da Argélia soma-se à Segunda Guerra Mundial como uma sequência inglória do passado, uma sequência ainda de alto risco, que a sociedade francesa deve enfrentar.

Abordado por meio de práticas metropolitanas em tempos de guerra no século XX, o internamento em campo está intimamente associado às circunstâncias excecionais pelas quais passou a França contemporânea. Ela enquadrar-se-ia numa “lógica da exceção”xiii, segundo a qual, na República, o recurso a medidas que contrariem as liberdades essenciais torna-se legítimo sob a ameaça de perigos internos ou externos. Essa lógica remonta aos primórdios do regime republicano, quando, em 17 de setembro de 1793, a “lei dos suspeitos” permitia a prisão, por ordem administrativa, de todos aqueles que eram considerados potenciais inimigos da Revoluçãoxiv. Essa lógica de exceção, no entanto, também é atual. Continua a ser objeto de debate, no âmbito da luta contra o terrorismo, mesmo fora das fronteiras francesas: a sua própria legitimidade, as condições em que podem ser aceites derrogações ao direito comum, os limites que devem ser colocados para evitar a aniquilação das liberdades individuais e públicas, são discutidas. Estas questões são centrais, em particular, na aceitação ou recusa de um centro de detenção como o de Guantánamoxv. Enraizado na longa história de ataques às liberdades sob o regime republicano, de qualquer forma, o internamento parece confinado a períodos de crise, incluindo guerras.

Visto da Argélia, porém, não é assim, exceto para dizer que nas colónias a exceção era a regra. A interpretação do internamento como medida excecional padece de uma lacuna importante. Como muitas vezes - sempre? - na história, as conclusões gerais são tiradas apenas da situação metropolitana. Trata-se, portanto, com esta história de internamento na Argélia durante o período colonial, de deslocar o olhar centrado na história política da França para a da colonização. Era impossível, porém, passar de um tropismo a outro, substituindo uma grelha de leitura baseada apenas na metrópole, por uma grelha de leitura elaborada a partir da redescoberta do facto colonial. Assim, coloca-se a questão do vínculo entre práticas metropolitanas e práticas coloniais: recusando-se a pensar uma sem a outra. Esse viés soma-se a um questionamento desse facto colonial que se tornou tão presente: o que diferencia uma prática “colonial” de uma prática que não o é? A questão deste livro divide-se, portanto, em duas partes: quais são as continuidades entre metrópoles e colónias, ao longo do tempoxvi? O que faz a especificidade do “colonial”?

Responder requer manter constantemente a metrópole em mente, enquanto se mantém firmemente a linha de uma história situada na Argélia. A procura pelas origens das práticas atuais, aliás, é um processo arriscado, pois a história ao contrário puxa um fio, escolhido desde o início, no tecido grosso do passadoxvii. É, portanto, uma história que respeita o sentido da cronologia que deve ser abordada, procurando não omitir nada. A partir do início da presença francesa na Argélia, trata-se de captar a história de uma emergência, na fonte, e não de procurar as origens, a partir do presentexviii. Esta história do internamento colonial na Argélia tenta reconstruir o processo de formação e modificação ao longo do tempo, tendo em conta os efeitos de acumulação, reinvestimento, transformação segundo os tempos e as circunstâncias. Ela não pode ser apenas a história de caminhos finalizados, perduram ao longo de décadas.


Artigo publicado em Histoire Coloniale et Postcoloniale.
Tradução de Mariana Carneiro.

Sylvie Thénault é historiadora e investigadora do CNRS, no Centre d'histoire sociale du xxe siècle. O seu trabalho concentra-se na repressão legal durante a Guerra da Independência da Argélia. É autora de Histoire de la guerre d’indépendance et d’Une drôle de justice. Les magistrats dans la guerre d’Algérie e de Violence ordinaire dans l’Algérie coloniale. Camps, internements, assignations à résidence.

i Obrigada a Hélène Blais por me falar sobre este mapa e o seu caráter excecional.

ii Uma primeira descrição foi dada por Charles-Robert Ageron, Les Algériens musulmans et la France 1871-1919, Paris, PUF, 1968, reedições de Bouchene, 2005, bem como por Claude Collot, Les Institutions de l’Algérie à la période coloniale, Paris/Argel, CNRS/OPU, 1987.

iii Olivier Le Cour Grandmaison, De l’indigénat. Anatomie d’un « monstre » juridique le droit colonial en Algérie et dans l’Empire français, Paris, Zones, 2010.

iv Jacques Aumont-Thiéville menciona isso na sua tese: Du régime de l’indigénat en Algérie, Paris, Arthur Rousseau, 1906.

v Emmanuelle Saada, “Citoyens et sujets de l’Empire français. Les usages du droit en situation coloniale”, Genèses, 2003/4, n° 53, p. 4-24.

vi Marc Bernardot, Camps for Foreigners, Broissieux, Éditions du Croquant, 2008.

vii Ver em particular Didier Fassin e Éric Fassin, Da questão social à questão racial? Representing French Society, Paris, La Découverte, 2006. Ver também a discussão entre Pap N'Diaye e Philippe Rygiel em Le Mouvement social: “For a history of blackpopulations in France. Pré-requisitos teóricos”, 2005, outubro-dezembro, n° 213, p. 91-108; “História das populações negras ou história das relações sociais entre as raças?”, 2006, abril-junho, n° 215, p. 81-86.

viii Para uma abordagem sintética: Marie-Claude Smouts, La Situation post-coloniale, Paris, Presses de Sciences Po, 2007.

ix Olivier Le Cour Grandmaison, Gilles Lhuilier e Jérôme Valluy (eds.), Le retour des camps? Sangatte, Lampedusa, Guantánamo..., Paris, Caso contrário, 2007. Olivier Le Cour Grandmaison retoma neste livro as páginas 210-211 de Coloniser, exterminer. Sobre a guerra e o estado colonial, Paris, Fayard, 2005.

x Jean-Claude Farcy, Les Camps de concentration français de la Première guerre mondiale (1914-1920), Paris, Anthropos, 1995.

xi Denis Peschanski, La France des camps. L’internement 1938-1946, Paris, Gallimard, 2002

xii Sylvie Thénault, Une drôle de justice. Les magistrats dans la guerre d’Algérie, Paris, La Découverte, 2001. E: Sylvie Thénault (dir.), “L’internement en France pendant la guerre d’indépendance algérienne. Vadenay, Saint-Maurice-l’Ardoise, Thol, le Larzac”, Matériaux pour l’histoire de notre temps, 2008, octobre-décembre, n° 92.

xiii A expressão é de Denis Peschanski em La France des camps, op. cit.

xiv Para uma primeira abordagem: Jean-Claude Farcy, L’Histoire de la justice française de la Révolution à nos jours, Paris, PUF, 2001.

xv Uma análise detalhada dessas questões a nível internacional pode ser encontrada em: Élisabeth Lambert-Abdelgawad (dir.), Juridictions militaires et tribunaux d’exception en mutation. Perspectives comparées et internationales, Paris, Éditions des archives contemporaines, 2007.

xvi Na historiografia, o debate sobre continuidades diz respeito a todas as práticas administrativas. Aborde esta questão, em particular: Alexis Spire, Étrangers à la carte. L’administration de l’immigration en France (1945- 1975), Paris, Grasset, 2005; “La colonie rapatriée”, Politix, 2006/4, vol. 19, nº 76; Jim House e Neil MacMaster, Paris 1961. Les Algériens, la terreur d’État et la mémoire, Tallandier, 2008 (pela carreira de Maurice Papon). Para uma avaliação sintética e mais ampla: Romain Bertrand, “Histoires d’empires. La question des « continuités du colonial » au prisme de l’histoire impériale comparée”, in Pierre Robert Baduel (dir.), Chantiers et défis de la recherche sur le Maghreb contemporain, Paris/Tunis, Karthala/IRMC, 2009, p. 537-562.

xvii Uma abordagem comum numa perspectiva pós-colonial, partindo do legado do passado colonial no presente, criticado por Frederick Cooper em Colonialism in question. Theory, Knowledge, History, Berkeley et Los Angeles, University of California Press, 2005, p. 18-19.

xviii Sobre a noção de emergência e a sua oposição a uma procura pelas origens: Jean-François Bayart, “Les chemins de traverse de l’hégémonie coloniale en Afrique de l’Ouest francophone: anciens esclaves, anciens combattants, nouveaux musulmans”, Politique africaine, 2007, mars, n° 105, p. 203.

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