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Resistências à Guerra da Argélia

Resistências diversas no seu formato, desde a participação em manifestações ao compromisso com os argelinos, da legalidade à ilegalidade, e nas reivindicações apresentadas (pela paz na Argélia ou pelo direito da Argélia à independência). Por Nils Andersson.
Guerra da Argélia. Imagem publicada em Mémoires des Hommes, Ministère des Armées.

 

 

 

 

 

 

 

Les hommes torturés dans les corps et
pourris jusque dans leurs mots dont tant sont
aujourd’hui déviés de leur pôle naturel...
Faudra-t-il ô victimes être à votre tour
bourreaux pour rendre à leur destin les
essences ?

Michel Leiris (Hugo Vic) Corruptioni

 

Se os testemunhos são numerosos e se algumas investigações e pesquisas foram publicadas, a história da resistência à guerra da Argélia fica por escrever. Resistências diversas no seu formato, desde a participação em manifestações ao compromisso com os argelinos, da legalidade à ilegalidade, e nas reivindicações apresentadas (pela paz na Argélia ou pelo direito da Argélia à independência).

As primeiras resistências

Com o desencadear da luta armada, algumas vozes, muito raras, levantaram-se contra a guerra colonial iniciada pelo governo francês. Poucas semanas depois de 1 de novembro de 1954, Claude Bourdet, dando continuidade ao seu combate contra a Guerra da Indochina, publica em janeiro de 1955, “A nossa Gestapo da Argélia” na France Observateur. François Mauriac, alertado pelos meios cristãos, publica "La question" (seu "J'accuse") no L'Express. Posteriromente surgem contributos essenciais para dar a conhecer as razões desta revolta e a realidade do sistema colonial, como o relatório de Robert Barrat "Un journaliste français chez les hors-la-loi algériens"ii e o livro de Colette e Francis Jeanson, L’Algérie hors la loiiii. Uma primeira frente, a da escrita, foi então aberta.

Muito rapidamente, o governo toma medidas contra o que Jacques Soustelle descreve como “contrapropaganda francesa”. Baseando-se na lei de 1881 sobre a liberdade de imprensa e na lei de 3 de abril de 1955 que habilita as autoridades a "tomar todas as medidas para assegurar o controlo da imprensa e publicações de todos os tipos, bem como das emissões de rádio, exibições de filmes e apresentações teatrais", o governo censurou ou apreendeu France Observateur, L'Express, Témoignage Chrétien, Le Monde, Liberation, então dirigido por d'Astier de la Vigerie, l'Humanité.iv

Em novembro de 1955, o Comité de Ação dos intelectuais contra "uma guerra que é uma ameaça à República e ao mesmo tempo um crime contra o género humano"v, presidido por Jean Cassou, lança um apelo que reúne uma ampla gama de signatários, de Jean Cocteau a Frédéric Joliot-Curie, de André Breton a Abbé Pierre, de Louis Massignon a Michel Leiris.
Em 1955 também ocorrem as primeiras manifestações de recrutas e reservistas. Num folheto distribuído em frente à igreja de Saint-Séverin em Paris, lia-se: "Estaríamos prontos, amanhã, para pegar em armas contra qualquer exército que venha a desempenhar aqui o papel que eles querem que desempenhemos hoje no Norte de África. Não somos objetores de consciência, mas se os nossos braços tremem ao atirar contra os nossos irmãos muçulmanos, é preciso que todos os franceses o saibam, é porque a nossa consciência está elevada”vi.

Em 1956, as manifestações crescem. Em Rouen, o quartel de Richepanse é ocupado; confrontos violentos ocorrem em Grenoble; um comboio é parado mais de vinte vezes entre Carcassonne e Sète; em Saint-Nazaire, os trabalhadores iniciam uma greve de solidariedade com os "disponíveis"; em Saint-Aignan-des-Noyeux, no Loir-et-Cher, por ocasião da partida de um reservista, várias centenas de cidadãos manifestam-se: os dois pelotões da polícia, rapidamente sobrecarregados, tiveram que chamar reforços.

A reviravolta ocorre na chegada à Argélia, os líderes são enviados para a solitária ou para batalhões disciplinares. Os mais determinados, muitas vezes comunistas, resistem e recusam-se a pegar em armas. É o tribunal militar. Eles são cerca de quarenta a ser condenados a meses e anos de prisão ou à colónia penal de Timfouchivii. Um ato de convicção que, com o voto de poderes especiais, faz do compromisso coletivo um compromisso individual cujo valor deve ser ainda mais sublinhado.

A hegemonia do discurso colonial

Já na Argélia, a “guerra contra-revolucionária”, teorizada pelos coronéis Lacheroy e Trinquier, foi endossada pelo governo de Guy Mollet e deu rédea solta à violência colonial, o naufrágio da Frente Republicana trouxe a França para a guerra.

Na escola, aprendemos que “A Argélia é a França”. A imprensa, a rádio e este novo meio de “informação” que era então a televisão, difundem diariamente a sua propaganda colonialista: os bicot, os ratons [nomes pejorativos para árabes] tornaram-se fellaghas [combatente argelino anti-colonialista] assassinos e o racismo surge como um sentimento natural. Esmagadoramente, a opinião pública escolhe o campo da Argélia francesa ou então pensa que a guerra vai acabar em breve e, primeiros sinais da sociedade de consumo, olha para o outro lado. Aqueles que, por compromisso político ou atitude moral, se opõem à manutenção da ordem colonial são marginalizados.

Recusar o recurso aos choques elétricos e às execuções sumárias requer uma consciência elevada e coragem. Essa consciência e essa coragem foram as de Noël Favrelière que, em setembro de 1956, desertou com um prisioneiro destinado à execução. Depois de chegar à Tunísia, escreveu ao pai: “Se eu tivesse agido de outra forma, se tivesse permitido que Maomé fosse assassinado, realmente acredito que nunca ousaria olhar-te na cara...”viii. Noël Favrelière será duas vezes condenado à morte à revelia.

Esta consciência e esta coragem encontram-se num oficial superior, o general Jacques Pâris de la Bollardière que não aceita o uso da tortura e que, em resposta à diretiva do general Massu que prescreve uma "intensificação do esforço policial" , pediu para ser dispensado das suas funçõesix. Ele é condenado a sessenta dias na fortaleza quando os oficiais torturadores são promovidos e condecorados com a Legião de Honra.

O silêncio impossível é quebrado por quem completou vinte anos em Aurès. Jean Muller, escoteiro de França, morto durante uma emboscada, nas suas cartas aos amigosx e Robert Bonnaud, o primeiro a assinar o seu depoimento, La paix des Nementchasxi, denunciam o indizível. Trauma de uma geração confirmado por Jean Carta, com À l’école des magnétos, Georges Mattéi com Jours kabyles, Jacques Pucheu com Un an dans les Aurès, Jean-Philippe Talbot com Zones interdites, um seminarista, Stanislas Hutin, com Des rappelés témoignent. O grito, doloroso ou revoltado desses recrutas, apesar de tudo, foi ouvido pouco ou nada na época, exceto pelos seus irmãos mais velhos.

Esprit, Les Temps Modernes, os Cahiers de Témoignage cristãos que publicam esses testemunhos são sistematicamente apreendidos. Desafiando a censura, Robert Barrat e Maurice Pagat criam Témoignages et documents, um jornal semiclandestino, no qual são publicados, além de textos proibidos, documentos oficiais como a carta de demissão de Paul Teitgen, secretário-geral da polícia de Argel, que denuncia execuções sumárias.

Guerra negada, mas guerra real. Pierre-Henri Simon publica Contre la torturexii. Henri Marrou escreve no Le Monde: “Aqueles que, como eu, têm filhos e netos: devemos poder falar com eles sem nos cobrirmos com a humilhação de Oradour e os julgamentos de Nuremberg”. Num número especial de Les Temps Modernes sobre "poderes especiais", Jean-Paul Sartre, além da denúncia, manifesta-se a favor da solidariedade ativa com o povo argelino: "A única coisa que podemos e devemos tentar - mas que é essencial hoje - é lutar ao seu lado para libertar tanto os argelinos quanto os franceses da tirania colonial”xiii.

Uma segunda frente

A Batalha de Argel abre uma segunda frente: a dos tribunais. Desde o início da luta de libertação nacional, os advogados, em torno de Pierre Stibbe, já envolvidos na defesa do povo malgaxe após os massacres em Madagascar, o coletivo de advogados comunistas, Nicole Dreyfus, Michel Bruguier, Pierre Braun, e o de advogados da FLN com Omar Oussedik, Jacques Vergès, Michèle Beauvillard, insultados e ameaçados de morte dentro e fora dos tribunais, garantem a defesa dos militantes da FLN na Argélia em condições particularmente difíceis. Para os argelinos presos, eles são o único elo com o mundo exterior. Desafiando os regulamentos prisionais, tanto na Argélia como em França, os advogados transmitem informaçõesxiv. É a eles que cabe o difícil dever de acompanhar os condenados à morte.

O direito à insubordinação

Em França, a repressão contra os argelinos está a aumentar. Antes de 1954, existiam laços estreitos entre padres e ativistas sindicais que levavam ajuda e solidariedade aos argelinos. Mas, quanto mais o conflito se intensificava, quanto mais a FLN em França se organizava, mais aumentavam as necessidades. Para assegurar alojamento e viagens aos ativistas, levar prisioneiros fugitivos através das fronteiras, enviar dinheiro de contribuições, imprimir e transportar documentos, ser francês ou francesaxv permitia evitar ser interpelado. Desde 1956, a rede Jeanson foi organizada ao lado de argelinos e locais. Além disso, outras redes de apoio, baseadas em relações pessoais de confiança, foram formadas.

Para os ativistas que optam pela insubordinação, a natureza do compromisso muda. Eles não colocam as suas vidas em perigo como os argelinos, mas o seu futuro: procurados, acusados ​​de serem "traidores", devem passar à clandestinidade ou exilar-se. Presos, são severamente condenados: são pronunciadas sentenças de dez anos de prisão. Ao mostraram aos argelinos e ao mundo um outro lado da França que não o da "pacificação", são acusados ​​de serem "traidores".

Nesse clima de tensão, Jérôme Lindon e Editions de Minuit publicaram Pour Djamila Bouhiredxvi; La Question de Henri Alleg, que era, para a guerra da Argélia, o que era, para a guerra do Vietname, a foto de Nick Ut mostrando uma criança queimada com napalm; L’affaire Audin, onde Pierre Vidal-Naquet, tornando-se historiador do presente, permitiu conhecer a verdade sobre o assassinato de Maurice Audin e os nomes dos seus algozes.

A decisão de Jérôme Lindon de editar esses documentos deu outra dimensão à frente editorial. La Question é apreendidaxvii. Mas se uma edição de jornal ou revista apreendida é uma edição morta, o tempo do livro não é o mesmo. Republicado, traduzido no exterior, vê o seu impacto prolongado e ampliado. Esta escolha de Jérôme Lindon, que foi também uma escolha individual, merece ainda mais destaque na medida em que ele foi então o único a aceitar publicar estas obras acusadoras.

1958 foi um ano crucial: o de 13 de maio, rebeldes, comités de segurança pública. Para as gerações mais jovens, recusar-se a participar de uma guerra colonial significava “romper com a sua família, separar-se dos seus amigos, do seu mundo. Tendo-se tornado revoltoso ou desertor, atravessando a fronteira, na maioria das vezes espera-o o desconhecido, na melhor das hipóteses um endereço que lhe foi recomendado...”xviii.

Louis Ohrent, Jean-Louis Hurst (Maurienne), desertores, e Jacques Berthelet, membro das redes, criaram a Resistência Jovem na Suíça, em Yverdon: tratava-se de reunir e organizar rebeldes e desertores. A referência à Segunda Guerra Mundial é uma constante, tanto na denúncia da repressão (nazismo) quanto na lembrança de valores (os da Resistência).

Refratários, rebeldes e desertores, redes de apoio, frente editorial e frente judicial, todos os componentes da insubordinação são então constituídos. Seja qual for a forma de compromisso ou as convicções que os impulsionam, foi para cada um uma escolha individual, mas de forma alguma individualista. Essas escolhas tornar-se-ão uma força coletivaxix.

O livro, cujo papel é reforçado pela criação das edições Maspero e da livraria "La Joie de Lire", foi um importante meio de informação. La Gangrène testemunha o uso da tortura na França; Les Disparusxx revela centenas de casos de Audin; Maurienne em Le Déserteurxxi e Maurice Maschino em Le Refusxxii, explicam a insubordinação; Francis Jeanson esclarece a sua posição e a sua ação em Notre guerrexxiii. François Maspero publica L’An V de la révolution algérienne, onde Franz Fanon mostra como a luta de libertação nacional revolucionou a sociedade argelinaxxiv. Todos esses livros foram banidos ou resultaram em acusaçõesxxv.

Apesar da dificuldade de cruzar as informações, o rigor do trabalho editorial permitiu ouvir o grito das vítimas na Villa Sésini ou na cidade de Ameziane, o eco dos campos de reagrupamento de Djorf, Berrouaghia ou Arzew. Não há um aspeto desta guerra, dos métodos e meios utilizados, que não tenha sido revelado no próprio curso dos acontecimentos. Esses milhares de páginas, factos, nomes constituem verdadeiros “arquivos do cidadão”.

Na frente judicial, o coletivo de advogados da FLN, recorrendo à defesa da rutura, indiciou os tribunais e transformou-os em terreno de confronto político. Em retaliação, Ould Aoudia, membro do coletivo, foi assassinado em 21 de maio de 1959 em frente à porta do seu escritório pelos serviços secretos, a coberto da La Main rouge [organização terrorista francesa operada pela agência de inteligência estrangeira francesa Service de Documentation Extérieure et de Contre-Espionnage, ou SDECE, na década de 1950].

A repressão está a aumentar contra todas as formas de resistência. Em fevereiro de 1960, foram presos membros da direção da Federação Francesa da FLN, da rede Jeanson (da qual Henri Curiel assumiu a direção) e da Jeune Résistance. A questão da solidariedade é, portanto, colocada abertamente. No boletim clandestino da rede Jeanson, Vérités pour..., pode ler-se: "O facto capital da situação atual... continua a ser o elo de causa e efeito que une a guerra na Argélia e o perigo fascista".

A mudança de opinião

A conjunção da causa nacional argelina e da República ameaçada pelos rebeldes amplia o campo de resistência. Nesse sentido, o exemplo da UNEF é esclarecedor. O debate sobre insubordinação foi aberto dentro dele e um dos seus vice-presidentes, Gilbert Barbier, escolheu a insubordinação. Pierre Gaudez, seu presidente, reuniu-se em Lausanne com os líderes da União Geral dos Estudantes Muçulmanos Argelinos (Ugema), banida em França desde 1958, e assinou um comunicado conjunto das duas organizações em 6 de junho de 1960. O governo então cancelou o subsídio que pagava à UNEF.

Em resposta à semana das barricadas em janeiro de 1960, a CGT, a CFTC, a FEN e a Unef convocaram greves e manifestações para derrotar os sediciosos e “expressar claramente o desejo de acabar com a guerra da Argélia”. O PSU, nascido da crise argelina, também levanta a questão da insubordinação. Ele foi o percursor de manifestações e da Ação Cívica Não-Violenta (ACVN). No início, algumas centenas de pessoas mobilizaram-se. Mas isso representou um forte indicador de uma consciência na sociedade francesa, particularmente entre os jovens, os primeiros a serem sacrificados na sua consciência, mas também na sua carne, por esta guerra, que vai cada vez mais claramente contra o curso da história. Portanto, ações clandestinas e iniciativas legais não se fundem, mas combinam-se.

A crise atingiu o seu clímax com a pressão dos golpistas do exército e dos ultras da OAS que abalaram a República. O governo implantou harkis [soldados argelinos que fizeram parte do exército francês durante a Guerra da Independência da Argélia] em França e, durante o ano de 1960, o Serviço de Documentação Externa e Contra-informação (SDECE), usando a capa da Main rouge, multiplicou as chamadas operações "homos"xxvi na Suíça, Bélgica, Holanda, Itália, contra argelinos, separatistas africanos, mas também anticolonialistas. Três pacotes-bomba são endereçados a ativistas solidários com a revolução argelina. Em 25 de março de 1960, em Liège, Georges Laperche foi despedaçado ao abrir a embalagem que lhe era destinadaxxvii.

Para aqueles que podem ser localizados, advogados, editores, livreiros, jornalistas, o principal risco não é mais a prisão, mas um ataque. La Joie de Lire e Éditions de Minuit foram bombardeados pela OAS.

Quando começou o julgamento da rede Jeanson, Vérité-Liberté, jornal semi-clandestino animado principalmente por Robert Barrat, Pierre Vidal-Naquet e Paul Thibautxxviii, publicou o Manifeste des 121 que proclamava: "Respeitamos e consideramos justificado a recusa em pegar em armas contra o povo argelino. Respeitamos e consideramos justificada a conduta dos franceses que consideram seu dever levar apoio e proteção aos oprimidos argelinos em nome do povo francês. A causa do povo argelino, que contribui decisivamente para a ruína do sistema colonial, é a causa de todos os homens livres”xxix. Os signatários do Manifesto são ouvidos por “provocar insubordinação”, alguns são indiciados, outros suspensos dos seus cargos.

O PCF declara que "os comunistas têm uma conceção diferente da paz", mas declara-se "a favor da libertação, absolvição ou exoneração" dos signatários presos "por terem, à sua maneira, participado na luta pela paz". O PSU presta homenagem “à coragem e desinteresse dos réus” do julgamento de Jeanson, mas especifica que eles “põem o problema entre a esquerda francesa e o nacionalismo argelino em termos que não são os do PSU”.xxx As reações ao Manifesto de 121 refletem a divisão dentro da esquerda entre os partidários da resistência legal e os da insubordinação.

Esta guerra, cujo resultado era inevitável, e a ladaínha de lágrimas e atrocidades na Argélia parecia interminável. Em França, multiplicam-se as medidas repressivas. Georges Arnaud foi julgado por ter entrevistado Francis Jeanson e recusou-se a ser um delatorxxxi, Jérôme Lindon e Jean-Louis Hurst por terem escrito e publicado Le Déserteur. Advogados são suspensos, Henri Curiel e membros da sua rede são presos, em Lyon a rede Boeglin é desmantelada, rebeldes são condenados, vigílias são organizadas contra ameaças de tortura.
François Maspero publica a revista Partisans avec, uma nova referência à Resistência, um editorial da Vercors. Sublinhou o sentimento fortemente vivido pela “geração argelina”: “Solidariedade com o povo argelino que luta pela sua independência, recusa em fazer uma guerra injusta. Tivemos que resolver vários problemas sozinhos”.xxxii

Paz no sangue

A história aceleraria em França como na Argélia. Dois eventos sangrentos testemunham isso. O primeiro, 17 de outubro de 1961. "Numa época em que, na chuva, o pavimento enegrecido reflete os letreiros de néon, numa época em que Paris faz fila na porta dos cinemas, quando Paris empurra a porta dos restaurantes, onde Paris abre as suas ostras, quando Paris começa a divertir-se, elas surgiram de todos os lugares... Ninguém pode ainda prever as matanças que virão.xxxiii Em 17 de outubro de 1961, Vérité-Liberté publicou um número contundente: “A evidência está aí: a confluência que temíamos entre os torturadores de Argel e os torturadores do senhor Papon realiza-se nos factos”. “A inspeção geral da polícia estima em 140 mortos... Os argelinos falam em 200 mortos e 400 desaparecidos. Os números contrários aos números ministeriais da época dos factos serão confirmados trinta anos depois.xxxiv

Em Les Temps Modernes podemos ler: “Pogrom; a palavra até agora não tinha sido escrita em francês... De repente, no meio da rua, no coração da capital, o que até então estava escondido pela sombra das delegacias e porões... Mas o autarca que ordena, o ministro que autoriza, o governo que cobre o ignóbil desencadeamento do racismo desonra-se em vão”.
Em 27 de outubro de 1961, cerca de uma centena de manifestações proibidas foram organizadas por iniciativa da UNEF. A rejeição da guerra e a luta contra a ameaça fascista cresciam. Em 8 de fevereiro de 1962, CGT, CFTC, FEN, SNI e Unef organizam uma manifestação de protesto contra sete ataques terroristas cometidos pela OAS em Paris. No momento da dispersão, no metro de Charonne, os bandidos de Debré, Frey e Papon intervêm com extrema violência, são nove mortos, membros da CGT ou comunistas.

Este é um crime a mais, um milhão de pessoas acompanharam as vítimas ao Père Lachaise. O equilíbrio de poder é modificado: diante da irredutibilidade do povo argelino e da mobilização popular em França, é hora da negociação, a Argélia é independente.

Duas estratégias

A linha divisória que surgiu durante a guerra assumiu um caráter antagónico. Era uma realidade política e ideológica. É possível hoje que os partidários dessas diferentes linhas, a das lutas jurídicas e a da insubordinação, discutam sem alegar que uma dessas opções teria sido a única correta. A vida política e militante nunca pode ser resumida assim.

Os partidários da insubordinação, por estarem na prisão, na clandestinidade ou no exílio, não puderam participar das manifestações que exigiam o fim das hostilidades e se opunham à ameaça fascista, mas nunca contestaram a sua importância. Porque elas estavam em consonância com a razão pela qual nunca deixaram de lutar, a tomada de consciência da dura realidade dos factos e da importância do perigo para modificar o equilíbrio de poder.

Por outro lado, alguns defensores de lutas legais opuseram-se à insubordinação ou denunciaram-na como “traição”. Jean-Jacques Servan Schreiber (embora um defensor da paz na Argélia) escreveu na sua Lettre d’un non-déserteu: "Aqueles que enviam meninos para as masmorras da justiça militar para desertar terão, sem dúvida, o direito, a nosso ver, a ainda menos indulgência que os usurpadores do poder. Fui claro, espero”.xxxv

Não se pode ignorar os longos anos de guerra até à mudança de equilíbrio do poder. Durante esses anos, a insubordinação – escolha moral, escolha política, escolha cívica – era o único vínculo de fraternidade com o colonizado. Sem ela, para aqueles que se levantaram contra o sistema colonial, havia apenas a linguagem da fúria e do ódio. O papel e o significado da insubordinação não podem, portanto, ser negados: essa escolha individual, muitas vezes tomada contra o seu próprio círculo, as suas filiações, se às vezes foi dolorosa, sempre foi uma escolha de convicção.

Certamente, não se trata de opor a linha da massa à insubordinação. Uma reflexão serena deve ser possível para analisar esta linha divisória. Devemos questionar por que razão durante uma guerra colonial, que foi a luta de libertação nacional mais importante do século 20, juntamente com a do povo vietnamita, o tecido social das instituições, dos partidos, dos media, como o tecido familiar, não soube responder às perguntas e ao desespero de uma geração, que teve que escolher entre a culpa da submissão e a ilegalidade da insubordinação.


* Nils Andersson - Nascido em 1933, Nils Andersson desempenhou um papel importante na luta contra a guerra na Argélia: a fundação das edições La Cité em Lausanne possibilitou a publicação de textos censurados em França. Hoje, participa em particular nas atividades da Attac e do Instituto de Documentação e Pesquisa para a Paz.

Artigo publicado na edição 21 de setembro de 2012, da revista Savoir/agir e reproduzido em Histoire Coloniale et Postcoloniale.
Tradução de Mariana Carneiro.

 

i L’Honneur des poète, coleção coletiva, Éditions de Minuit, 1944.

ii Nouvel Observateur, 15 de setembro de 1955.

iii Editions du Seuil (fora da coleção).

iv Le cadavre encerclé de Kateb Yacine, dirigido por Jean-Marie Serreau, é proibido de se apresentar, Mouloudji que canta Le Déserteur de Boris Vian é retirado do ar, Le petit soldat de Jean-Luc Godard é proibido, a pretexto de que a representação da tortura seria um mau exemplo para a juventude francesa!

v Os seus fundadores são Robert Antelme, Dionys Mascolo, Louis-René des Forêts e Edgar Morin.

vi Panfleto dos reservistas do 401º regimento de artilharia antiaérea, 29 de setembro de 1955.

vii Quatro anos de prisão para Alban Liechti, prisão e trabalhos forçados para Jean Clavel.

viii Apenas em 1960 a sua recusa à desonra será conhecida com a publicação de seu conto, Le désert à l’aube, pelas Éditions de Minuit.

ix Carta endereçada ao General Salan, L'Express, 27 de março de 1957.

x Dossier Jean Muller, « De la pacification à la répression », Cahiers de Témoignage chrétien, février 1957

xi Esprit, abril de 1957

xii Em Éditions du Seuil.

xiii Número de março-abril de 1956

xiv Na Irlanda, os ativistas do Sinn Fein não beneficiaram dessa “cumplicidade” dos seus advogados.

xv A contribuição das mulheres para as redes foi muito importante.

xvi Documento de Georges Arnaud e Jacques Vergès, 1957.

xvii Após o confisco de La Question, André Malraux, Roger Martin du Gard, François Mauriac e Jean-Paul Sartre assinaram um discurso solene ao Presidente da República, intimando-o a condenar o uso da tortura. Questionado, Albert Camus recusou-se a assinar.

xviii Nils Andersson, Ils étaient, chrétiens, bolchéviks, tiers-mondistes, dreyfusards... Résister à la guerre d’Algérie par les textes, Éditions Les Petits Matins, 2012.

xix Pierre Vidal-Naquet classifica os opositores da guerra da Argélia em três “temperamentos”. Os Dreyfusards, que dizem “o que faço, faço pela França”, os bolcheviques e os terceiro-mundistas, incluindo os cristãos. Os cristãos, fortemente comprometidos desde 1954, parecem-me definir um temperamento específico, distinto daquele dos terceiro-mundistas, que apareceu mais tarde, em particular com as teses de Frantz Fanon.

xx La Cité-Éditeur, Lausanne, 1959.

xxi Éditions de Minuit, 1960.

xxii Éditions François Maspero, 1960.

xxiii Éditions de Minuit, 1960.

xxiv São igualmente publicados: Germaine Tillion, L’Algérie en 1957, Éditions de Minuit, 1958 ; Pierre Bourdieu, Sociologie de l’Algérie, PUF, 1958.

xxv Dez obras das Éditions de Minuit foram apreendidas ou cobradas, quinze das Éditions François Maspero, seis da La Cité-Éditeur e cinco de outras editoras.

xxvi Ataques individuais.

xxvii Os pacotes continham La Pacification de Hafid Keramane, um trabalho publicado pela La Cité-Éditeur em Lausanne, e escavado para colocar o artefacto explosivo.

xxviii Vérité-Liberté desempenhou um papel essencial na informação, análise e denúncia da guerra ao lado do Comité Maurice Audin, do qual Laurent Schwartz foi um dos fundadores. Outra fonte anticolonial, La Voie Communiste.

xxix O texto veio dos amigos da Rue Saint-Benoît, Maurice Blanchot, Dionys Mascolo, que o escreveu, Robert Antelme e Maurice Nadeau.

xxx Para entender a intensidade do debate, citemos Charles Richet, membro da Academia de Medicina: “Cada época tem o seu excremento. Conhecemos, em 1917, tais destroços morais... Então, Clemenceau... mandou fuzilar uma dúzia de traidores. A França recuperou a confiança, foi a vitória”.

xxxi Georges Arnaud, Mon Procès, ilustrações de Siné, Éditions de Minuit. 1961.

xxxii Partisans, nº 1, Editions François Maspero, 1961.

xxxiii Ratonnades à Paris, Éditions François Maspero, 1961.

xxxiv Jean-Luc Einaudi, La Bataille de Paris. 17 octobre 1961, Le Seuil, 1991.

xxxv L’Express, que continha a Lettre d’un non-déserteur, foi entretanto apreendido, porque o governo proibia qualquer referência ao Manifesto do 121.

(...)

Neste dossier:

60 anos de independência da Argélia

Decorridos mais de 130 anos de colonização francesa, e após uma longa guerra de libertação, a Argélia conquistou a independência a 5 de julho de 1962. Dossier organizado por Mariana Carneiro.

A Organização Armada Secreta francesa e a sua ligação a Portugal

Criada em 11 de fevereiro de 1961 em Madrid, na Espanha franquista, a OAS constituiu o braço armado clandestino e sanguinário dos ultras da "Argélia Francesa". Alguns dos seus membros estabeleceram-se em Portugal durante o Estado Novo e tornaram-se pontas de lança da política colonial portuguesa. Por Mariana Carneiro.

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Benjamin Stora: "A Guerra da Argélia não eclodiu misteriosamente após décadas de convívio"

Em entrevista, datada de 2019, à revista francesa L’Obs, o historiador Benjamin Stora afirma que não vamos compreender este conflito de oito anos se não olharmos para o século XIX, e aponta que França continua a omitir a história da ocupação e colonização da Argélia.

A guerra de independência da Argélia

No dia 5 de Julho de 2022, a Argélia celebra o 60º aniversário de independência, que obteve após uma longa guerra de libertação contra o colonizador francês, que conquistou a Argélia em 1830, então colónia do império otomano, e com uma decisão histórica do general Charles de Gaulle, o então presidente da França. Por Toufik Hadjadji.

 

Krivine: “Boa parte da extrema-esquerda teve origem no apoio à revolução argelina”

Neste artigo, de 2004, Alain Krivine fala sobre a posição do Partido Comunista Francês em relação à revolução argelina e defende que o apoio a esta causa está na origem da formação dos “quadros” de 1968 e da “nova extrema esquerda”.

Frantz Fanon: “A guerra da Argélia e a libertação dos homens”

A Argélia, ponta de lança do colonialismo ocidental em África, tornou-se rapidamente o vespeiro onde caiu o imperialismo francês e onde se desmoronaram as esperanças insensatas dos opressores ocidentais. Artigo publicado em novembro de 1958 por Franz Fannon.

A FNLA e a independência da Argélia

A Revolução Argelina deve ser celebrada por todos os que lutam pela autodeterminação e soberania dos povos. O grito de rebeldia de 1 de novembro de 1954 foi um grito de todos os explorados. Por Fabetz.

A revolução argelina mudou o mundo para melhor

A Argélia tornou-se uma nação independente a 5 de julho em 1961. A luta argelina pela libertação do imperialismo francês foi absolutamente central para a paisagem política do século XX. Hoje devemos lembrar a sua história e honrar o seu legado. Por Robert Masey.

Argélia. Fuga para a independência

Independência de França só chegou a 5 de julho de 1962. Quatro anos antes, tinha sido criado o Onze da Independência: jogadores de origem argelina que atuavam em França e abdicaram das carreiras para formar a equipa da Frente de Libertação Nacional e defender a Argélia dentro de campos de futebol espalhados pelo mundo. Por Rui Pedro Silva.

Violência banal na Argélia colonial

Trata-se, com esta história de internamento na Argélia durante o período colonial, de deslocar o olhar centrado na história política da França para a da colonização. Por Sylvie Thénault.

Face à guerra da Argélia, artistas insurgentes

Pequenas constelações de artistas lúcidos denunciavam os massacres de civis, as torturas, todos os desastres da guerra colonial. Por Nils Andersson.