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Venezuela: Os riscos da violência e da guerra civil

Votações em simultâneo
Para dia 31 de julho, o presidente Nicolás Maduro convocou uma Assembleia Nacional Constituinte, sem convocar qualquer referendo para antes da sua realização, para ouvir o povo sobre se quer ou não a Constituinte, como aconteceu em 1999. Nem convocou nenhum referendo para depois da Constituinte, como ocorreu em 1999, para aprovar ou não a Constituição em definitivo. Em 1999, o presidente era Hugo Chávez e o seu projeto era progressista, transformador e de defesa da democracia. Em 2017, o presidente é Maduro, o seu projeto é manter o poder a qualquer preço. Contra a convocação da Constituinte neste momento, estão a oposição da MUD, mas também muitos outros setores, como os chavistas críticos, e boa parte da população venezuelana. Tal não é de admirar, pois todas as sondagens apontam que a maioria da população está contra o governo, variando os números entre mais de 50% e bem mais de 70%.
Desta forma, Maduro e o PSUV violam e tentam destruir a Constituição chavista de 1999, pretendendo resolver a situação de duplo poder, que se criou com a humilhante derrota que sofreram nas eleições legislativas de dezembro de 2015. Desde então, a ação do executivo centra-se na tentativa de manter o poder a qualquer preço. Primeiro, não reconheceram completamente a Assembleia Nacional eleita em dezembro de 2015 (em que a MUD elegeu mais de 2/3 dos deputados e o PSUV não chegou a um terço)1 e depois acusaram-na de estar em “desacato”. Posteriormente, alteraram a composição do Supremo Tribunal, para garantir nele uma maioria fiel ao governo e, desde abril passado, passaram ao ataque à Procuradora-Geral da República, que não se submeteu aos ditames de Maduro e do PSUV, e tentam passar a controlar totalmente o Ministério Público venezuelano, destruindo-o.
Desde abril passado, a oposição da MUD passou a convocar protestos todos os dias. Em mais de cem dias já morreram, nesses protestos, quase cem pessoas, havendo centenas de feridos e centenas de detidos. Alguns dos presos, estão a ser julgados por tribunais militares, contra a lei e a Constituição de 1999. A maioria das pessoas mortas e feridas nos protestos foram vítimas da violência da GNB (Guarda Nacional Bolivariana), havendo também vítimas da violência de grupos de manifestantes. Tanto no lado governamental, como no da oposição da MUD há violentos grupos paramilitares.
A confrontação diária sobe de tom. PSUV e governo usam e abusam da repressão policial, militar e paramilitar, enquanto a MUD apoia-se externamente na direita e na social-democracia da América Latina e dos EUA para tentar reconquistar o poder, após 18 anos de afastamento.
Para PSUV e MUD, apenas contam os seus projetos de poder, não respeitando a Constituição de 1999, nem defendendo a democracia.
Não admira, por isso, que estejam convocados para o próximo domingo, 16 de julho de 2017, dois processos de votação: A Assembleia Nacional, dominada pela MUD, convocou um plebiscito. O Governo e o Presidente convocaram, através do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) que controlam, um “teste” para preparar a votação para a Constituinte.
No quadro atual a defesa da democracia e da Constituição de 99 é uma questão chave. Se Maduro e o PSUV prosseguissem o caminho de Chávez seriam, obviamente, os melhores defensores da Constituição de 99.
A austeridade na origem da atual crise
Nas eleições de abril de 2013, Nicolás Maduro foi eleito Presidente da Venezuela por 1,5% a mais que Henrique Capriles, da MUD. É certo que a diferença é muito mais estreita do que no tempo de Chávez (em 2012, Chávez venceu Capriles com mais de 10 pontos de diferença), mas talvez a grande questão seja: porque é que tendo Maduro vencido em abril de 2013, dois anos depois, em dezembro de 2015, o PSUV não consegue eleger sequer um terço dos deputados?
O artigo Escassez e falta de alimentos e medicamentos na Venezuela, publicado neste dossier, traça uma análise importante e apresenta excelentes indicadores para entender a grande derrota.
A queda do preço do petróleo provocou uma grande queda nas receitas da Venezuela, a fuga de capitais, a fraude e o pagamento da dívida externa provocaram o colapso, a política decidida pelo governo de Maduro foi a de uma brutal austeridade sobre a população. Escassez, falta de alimentos e medicamentos, destruição de serviços públicos, inflação galopante, foi essa a política de Maduro e o resultado foi a justa revolta da população contra o governo.
Maduro não só não seguiu a política de Chávez, como perante a dificuldade da situação assumiu uma política oposta ao chavismo. Alguma esquerda (ler o artigo publicado neste dossier Venezuela: Quem acusará os acusadores?) em vez de combater e denunciar a política seguida por Maduro e pelo PSUV, considera-a, lamentavelmente, como antiimperialista. De facto, a política seguida por Maduro é uma política austeritária e submissa aos poderes financeiros. Os interesses do povo venezuelano e a defesa da soberania do país nada contaram quando se tratou de pagar a dívida externa. O Governo venezuelano chega até ao ponto de vender títulos da petrolífera estatal com 69% de desconto, aos abutres da finança internacional.
Depois de 2015, os interesses clientelares passaram a contar até mais no governo e o autoritarismo governamental aumentou com a luta implacável pela manutenção no poder a qualquer preço.
Os riscos
Perante a difícil situação económica, social e política da Venezuela, há até alguns riscos de certas saídas agravarem ainda mais a situação do país e da maioria da população venezuelana .
Um primeiro risco, visível para toda a gente, menos para Maduro, aparentemente, é o risco de a crescente violência degenerar numa guerra civil. Esse é um risco real, perante o nível de forças em confronto e os interesses dominantes quer no governo, quer na MUD.
A ultrapassagem deste risco passa naturalmente por um diálogo político e social. Este processo é aparentemente inexistente, mas a libertação inesperada de Leopoldo López, a presença de José Luís Zapatero no país (e a sua visita a Leopoldo López) e a posição dos países caribenhos na OEA (ver notícia da AVN), parecem mostrar o contrário. Num quadro de “diálogo”, surge um segundo risco: o da possibilidade de um acordo contra o povo venezuelano e a soberania do país. O caso do decreto sobre o Arco Mineiro do Orinoco (ler A implosão da Venezuela rentista – III), demonstra a realidade deste risco e o processo constituinte agrava-o.
Este risco pode ainda complementar-se com um terceiro, que é o do papel que as forças armadas podem vir a assumir. A Venezuela tem o segundo maior exército da América Latina (mais de 365 mil, menos mil que o do Brasil) e o maior tendo em conta o tamanho do país (tem uma média de 118 militares por cada cem mil habitantes) – ver notícia no esquerda.net. As forças armadas (FANB) da Venezuela controlam ainda a Guarda (GNB) e as milícias. As FANB têm, no governo, um peso decisivo que tem vindo a aumentar e os seus privilégios são grandes. O decreto do Arco Mineiro do Orinoco e os privilégios que atribui às FANB mostra o papel que os militares podem vir a ter na situação. Um tal peso e papel tem sempre de ser visto como um risco para o país e para a maioria da população.
As próximas semanas são muito importantes para a Venezuela e o seu povo, mas a situação vai continuar a ser muito difícil e complexa. Nem a oposição da MUD, nem Maduro (o seu partido e o seu governo) dão qualquer esperança de continuidade do que, apesar das debilidades, sempre foi exemplo durante a presidência de Chávez. Com o ataque de Maduro e do PSUV à Constituição de 99, a presença do falecido presidente Hugo Chávez poderá vir a reduzir-se apenas aos símbolos e ao chavismo crítico (de que a Plataforma cidadã em defesa da Constituição é um bom exemplo), que não capitulou e continua a lutar em condições bem difíceis.
1 O PSUV não reconheceu os deputados eleitos pelo estado do Amazonas, para não reconhecer que a MUD tinha uma maioria de mais de 2/3 dos deputados.
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