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Venezuela: Quem acusará os acusadores?

Publicamos aqui, na íntegra, uma resposta ao “Apelo Internacional urgente para deter a escalada de violência na Venezuela”. Esta resposta recolheu subscritores a nível internacional, defende o governo de Nicolás Maduro e do PSUV e acusa o apelo de ser “contra o processo bolivariano na Venezuela”.
Para esta resposta ao “Apelo Internacional urgente para deter a escalada de violência na Venezuela”, os subscritores desse apelo sofrem da “ótica de intelectuais propensos a descrever 'défice' democrático nestas latitudes, sempre a partir de concepções eurocêntricas e consideradas 'universais? sobre o que deve ser democrático”
Para esta resposta ao “Apelo Internacional urgente para deter a escalada de violência na Venezuela”, os subscritores desse apelo sofrem da “ótica de intelectuais propensos a descrever 'défice' democrático nestas latitudes, sempre a partir de concepções eurocêntricas e consideradas 'universais? sobre o que deve ser democrático”

Texto publicado em alainet.org, onde pode aceder à lista de subscritores, e traduzido para português por brasildefato.com.br. Revisão de Carlos Santos para esquerda.net

Sob a implícita fórmula do "eu acuso", algumas horas antes da reunião da OEA em que seria discutida, mais uma vez, a intervenção na Venezuela, centenas de intelectuais e académicos latino-americanos, europeus e norte-americanos assinaram uma petição denominada "Apelo internacional urgente para deter a escalada de violência na Venezuela". A petição constitui toda uma declaração de princípios e posicionamentos em relação à conjuntura bolivariana, elaborando diagnósticos, atribuindo responsabilidades e apontando uma saída para a crise instaurada no país.

Não atacaremos a inteligência e a moral dos assinantes (alguns considerados "sagrados" no mundo académico) questionando os seus compromissos políticos ou as suas competências interpretativas. Assumiremos cada afirmação da petição como aquilo que é, uma tese errónea sobre o processo bolivariano na Venezuela. Como tal, vamos submeter a carta à análise, colocando que os acusadores podem e devem ser acusados. Também os intelectuais, além de pontificarem dentro da torre de marfim académica, deverão dar conta de seus erros e acertos neste dramático impasse continental, que poderá significar tanto o encerramento conservador de um ciclo político em ascensão ou a cessação prévia de uma segunda onda progressista e de esquerda na região. Uma derrota das classes populares latino-americanas respingará nos intelectuais no seu ato de prescindir, na sua incapacidade pedagógica ou na falta de inteligência no momento de emitir juízos certeiros.

O conceito de "guerra de quarta geração"ou "guerra de baixa intensidade", é muito mais que uma hipérbole para assinalar a intensidade de uma conjuntura específica. É, ao contrário, a descrição de toda uma estratégia de insurreição do imperialismo norte-americano para roer a jóia mais dura da coroa: a perseverança da revolução venezuelana que, como a revolução cubana, ofende as aspirações norte-americanas ao fundo do seu quintal. Ainda mais se considerarmos a importância económica e geopolítica da Venezuela para o governo de Donald Trump. Está demonstrada a capacidade venezuelana de unir as experiências progressistas e de esquerda e colocá-las em prática até o limite do possível com uma audaciosa política de integração latino-americana, bem como seu controle sobre importantes recursos estratégicos tão caros aos projetos de desenvolvimento dos países centrais, como o petróleo e a biodiversidade. Só a Venezuela, responsável por este novo ciclo histórico, pode, com a sua queda, selar o seu encerramento irremediável. Assim entendem os Estados Unidos, ao contrário do que parecem ter entendido alguns dos nossos académicos mais prestigiados.

A Venezuela parece estar na dolorosa passagem entre duas das etapas analisadas por Antonio Gramsci nas suas análises sobre a correlação de forças (ou seja, a análise do grau de organização, autoconsciência e homogeneidade alcançados por grupos sociais antagónicos). Há tempo que a Venezuela se deslocou de um momento meramente económico-corporativo para um momento político, com a formação de uma identidade popular comum ao conjunto das classes populares (o chavismo) e com a sua confrontação global com as classes dominantes.

O falido golpe de estado de 2002, a greve petroleira desbaratada e a assunção de um socialismo para o século XXI assinalam esta rota. Agora, este momento político sustentando até 2013, e o consequente empate hegemónico entre blocos sociais, começou a desmoronar-se com a morte de Hugo Chávez e consumiu-se com o fechamento do cerco internacional após a derrota eleitoral do kirchnerismo na Argentina e do golpe institucional que destituiu Dilma Rousseff no Brasil. O terceiro momento analisado por Antonio Gramsci, o inevitável momento político-militar que se precipita, foi, paradoxalmente, alcançado não só pela radicalização endógena do chavismo, como pela reação violenta da direita local e transnacional disposta ao mais baixo revanchismo.

Agora, analisar esse momento político-militar de forma madura implica considerar que as guarimbas da oposição, o assassinato de lideranças chavistas no campo e na cidade, a infiltração incessante de paramilitares colombianos, a formação de milícias bolivarianas, o fortalecimento da união cívico-militar1 e o patrulhamento militar das costas venezuelanas por potências emergentes, são muito mais do que um testemunho da desenfreada paixão caribenha.

São, por outro lado, sintomas de toda uma etapa que merece categorias de análise específicas, para entender a radicalização militarista do imperialismo norte-americano na sua longa, mas irrefreável, decadência global. Na nossa opinião, ignorar a dimensão deste processo leva a análises superficiais que intuem avaliações autoritárias, supostos autogolpes, ou militarizações ociosas da classe política dos governos latino-americanos. Sempre sob a ótica de intelectuais propensos a descrever "défice" democrático nestas latitudes, sempre a partir de concepções eurocêntricas e consideradas "universais" sobre o que deve ser democrático.

Evidentemente, há um processo de militarização e uma escalada de violência, mas que está longe de ser o resultado de fatores internos, esta militarização é permanentemente induzida pela ameaça imperialista em todos os seus níveis (diplomático, político, económico, militar, mediático, financeiro). Ou por acaso devemos enumerar os golpes de estado nas Honduras, no Paraguai e no Brasil que antecedem o presente ataque? De nada servem as teorias grosseiras sobre dois demónios para analisar as causas da violência venezuelana: ou o que significa então a "origem complexa e compartilhada da violência" assinalada pela petição? Ou a identificação, aparentemente simétrica, de "extremistas" de direita e totalitários de esquerda, que redunda ao finalizar o texto com a indicação de um único e inaudito responsável pela violência: o Estado e o governo bolivariano. Justamente aqueles que insistem numa estratégia de paz. O que deveriam ter feito, segundo estes intelectuais, Fidel Castro e os revolucionários cubanos diante da invasão da Playa Girón? Iniciar um diálogo com diplomatas inexistentes enquanto as bombas caíam na Baía dos Porcos? Enfrentar os fuzis dos mercenários com cédulas eleitorais? Apresentar uma petição ante à OEA?

A mais elementar análise crítica precisará ter a capacidade de separar o trigo do joio, de distinguir a violência fundadora da mera violência reativa das classes e dos governos populares, e de entender, como Antonio Gramsci, que não há resolução pacífica ou democrática (no sentido estritamente liberal do termo) para a luta de classes.

Cedo ou tarde as classes dominantes, na sua impotência eleitoral, acudirão a golpes brandos comandados por corporações judiciais ou mediáticas, e, quando esses se tornarem inúteis, farão soar novamente "la hora de la espada".

Por isso, a pretensa visão "para além da polarização", essa tentativa vã de de escrutinar uma realidade límpida por trás da névoa de uma luta política sem trégua é impossível. Trata-se, novamente com Gramsci, de "tomar partido", o que não significa apoiar cegamente um processo político ou a sua eventual condução, mas escolher o campo a partir do qual se enunciam as críticas e se cumprem as tarefas específicas da práxis intelectual. O intelectual "orgânico" não é um modelo de intelectual de esquerda, mas o único modelo no sentido estrito: isto é, aquele que reflete em conjunto, ombro a ombro, sem a mediação de pedestais odiosos, com os sujeitos populares organizados. Não deixa de ser sugestivo que uma petição assinada por académicos de tão alto nível prescinda das mais elementares categorias de análise do arsenal político crítico, caindo por terra a tentativa de fundar uma caracterização certeira sobre o processo bolivariano. Nem classes sociais, nem dependência estrutural, nem tampouco o imperialismo são mencionados no apelo, enquanto estas são ferramentas que qualquer pessoa comum da Venezuela tem incorporada no seu vocabulário político, o que constitui outra face do processo de democratização (e da socialização do poder) bem radical.

Encontramos na petição uma fetichização notável da democracia nos seus formatos liberais. Por que, a partir de que outra concepção de democracia é possível julgar como antidemocrático um processo que combate uma Assembleia Legislativa em desacato por juramentar deputados eleitos de maneira fraudulenta, e que tentou, sem ter atribuições constitucionais para isso, destituir quatro vezes o presidente Maduro - o que sem dúvidas constituem tentativas de golpe de Estado - e que, no entanto, é mantida em pleno funcionamento? De onde se intui uma avaliação antidemocrática num processo que ainda mobiliza ativamente centenas de milhares de pessoas e que sustenta e amplia elementos democráticos qualitativos como são as comunas e os conselhos comunitários? Onde estão os elementos autoritários de um governo que responde à agressão institucional e à violência das ruas com a mais protagonista das respostas, isto é, uma convocatória re-constituinte que relance a radicalidade de um processo estagnado por causa do assédio externo e dos erros internos?

Voltar a historicizar a democracia, separar o ideal das suas imperfeitas realizações institucionais, desfetichizar os seus elementos formais e compreender as suas novas modalidades emergentes, resulta imprescindível para não se tornar presa de uma valorização liberal-republicana e, em suma, colonial, sobre o que é democrático. Acreditamos que nem sequer é possível criticar o processo bolivariano a partir de uma visão liberal consequente que, como nenhum outro projeto, soube aprofundar e radicalizar a democracia liberal formal com mecanismos de consulta, plebiscitários e revogatórios absolutamente inéditos. Não há democracia universal, pura, à margem da história e à margem das determinações classistas, nacionais, étnicas e de género da luta política. Há, ou haverá democracia dos trabalhadores, dos camponeses, dos pobres, dos indígenas, dos negros, dos estudantes, dos migrantes, dos aposentados, das mulheres. E esta só será conquistada quando os interesses das classes populares se impuserem: de que modo se dará, se será por métodos consuetudinários ou violentos, por via eleitoral ou por uma violenta guerra civil, decidirão sempre os que têm tudo a perder, mas também tudo a ganhar na Venezuela e no conjunto da Nossa América.


1 Na versão do Brasil de Fato está escrito o fortalecimento da ala militar encarnada em Diosdado Cabello” em vez de “o fortalecimento da união cívico-militar” como está no original em espanhol (Nota do esquerda.net)

(...)

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