Venezuela, meu amor

porJoana Mortágua

A esquerda de que faço parte nunca foi ambígua sobre a condenação de regimes que oprimem o povo e sufocam a democracia. Isso vale para Angola e para o regime venezuelano. Artigo de Joana Mortágua

14 de julho 2017 - 10:03
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Foto Guillermo Lengemann Garcés/Flickr

Todos os dias vemos imagens de uma Venezuela destroçada às mãos de um poder que recusa encontrar no sofrimento do seu povo razão suficiente para renunciar. Nas ruas de Caracas, os protestos acompanham a pobreza, os supermercados estão vazios e a fila do racionamento só alimenta o mercado negro, onde os trabalhadores perdem tudo e as máfias prosperam.

Em plena crise humanitária, a miséria é mais que muita, mas a Venezuela continua a sugar as suas poucas reservas para o pagamento da dívida externa. O desespero por dólares é tanto que o país está a aceitar qualquer negócio, até com o diabo, como aconteceu recentemente com a venda de títulos da dívida da empresa Petróleos da Venezuela (PDVSA), a preço de saldo, à Goldman Sachs.

Enquanto os gigantes financeiros especulam com o destino da Venezuela, Nicolás Maduro tenta resistir ao seu. O chavismo que mobilizou a esperança de multidões de ex-pobres morreu afogado num poço de petróleo, deixando como lastro uma retórica nacionalista anti- -ianque e uma veia caudilhista que já se sentia em Chávez e pulsa em Maduro.

O mesmo petróleo com que Chávez tirou milhões da pobreza também serviu para corromper o exército, a burguesia e um batalhão de burocratas. A petroeconomia rentista e desértica, sem investimento noutros setores produtivos nem serviços públicos robustos, acabou por traçar o seu próprio destino. O colapso do preço do petróleo levou o país à rutura e atirou a base social de apoio do chavismo de volta para a pobreza, sem rede pública de segurança.

Sem outra resposta para a contestação popular, o regime endureceu e as oposições engrossaram fileiras, incluindo as que sempre agiram e até promoveram golpes de Estado a mando dos Estados Unidos. Sim, Maduro tem a infeliz história da América Latina do seu lado quando fala de imperialismo, mas a verdade é que enquanto Chávez teve apoio popular não houve intervencionismo que o impedisse de ganhar eleições.

Pelo contrário, Maduro perdeu-as. Com uma assembleia dominada pela oposição, o presidente passou a governar por decreto presidencial com a cumplicidade do Supremo Tribunal. Os abusos contra os restantes partidos são constantes, da inutilização da assembleia à ameaça de ilegalizar o Partido Comunista da Venezuela.

O regime manobra contra todos os instrumentos democráticos constitucionais, incluindo o referendo revogatório, que permitiria ao povo expulsar o presidente a meio do mandato. A última farsa foi a convocação de uma assembleia nacional constituinte sem sufrágio universal nem participação dos partidos, uma verdadeira assembleia corporativa como a que conhecemos por cá no tempo da ditadura.

O chavismo passou de projeto do povo a ditadura de caudilho, e não há democrata no mundo que aceite pactuar com isso. A tragédia que todos temos medo de antever só pode ser evitada pela realização de eleições presidenciais. É essa a saída democrática exigida pelo povo venezuelano, é a que exigiríamos se lá estivéssemos, sem esquecer os tantos portugueses entre a população diariamente sujeita às pilhagens e à miséria.

Bem sei que há uma esquerda cega que, 25 anos depois da queda do Muro, ainda acha que vale tudo na defesa de regimes pseudocomunistas. É escolha sua se Brejnev ainda lhes aquece os corações. A esquerda de que faço parte nunca foi ambígua sobre a condenação de regimes que oprimem o povo e sufocam a democracia. Isso vale para Angola e para o regime venezuelano, ainda que as calúnias da direita ignorante insistam que lhes temos amor.

Artigo publicado no jornal “I” a 7 de junho de 2017

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